DE NOVA YORK A TÓQUIO, UMA
TENDÊNCIA QUE MEXE COM OS MODOS DE VIDA
Inexpressivo há 50 anos, o número
de pessoas sozinhas explodiu. Alguns veem isso como um sinal de isolamento
social ou mesmo como uma forma de narcisismo. Porém, o estudo das condições que
possibilitaram essa transformação revela um quadro com mais nuances, que
combina individualismo e riqueza ns relações
por Eric Klinenberg
No início do Antigo Testamento,
Deus criou o mundo realizando uma tarefa por dia: o céu e a terra, a luz, as
espécies vegetais e animais de todos os tipos etc. Em relação a cada uma de
suas obras, Deus comentou com satisfação: “Isso é bom”. Mas o tom mudou quando
criou Adão e descobriu a imperfeição da criatura humana: “Não é bom que o homem
esteja só”, disse a si mesmo. Como resultado, ele criou Eva para fazer
companhia a Adão.
Com o tempo, as injunções para
combater a solidão humana deixaram o perímetro teológico para irrigar a
filosofia e a literatura. O poeta grego Teócrito assegurou que “o homem terá
sempre necessidade do homem”, enquanto Marco Aurélio, imperador romano
fortemente ligado ao estoicismo, assimilou os homens a “animais sociais”. Nada
expressa melhor a necessidade da vida coletiva que a invenção da família. Em
todas as épocas e em todas as culturas, é a família, e não o indivíduo, que
forma a base da vida social e econômica. Os evolucionistas chegam mesmo a
garantir que, nas sociedades primitivas, viver em grupo representava uma
vantagem decisiva na luta pela sobrevivência em termos de segurança, mas também
de alimentação e reprodução.
Durante os últimos cinquenta
anos, nossa espécie se envolveu em um experimento social sem precedentes. Pela primeira
vez na história da humanidade, um grande número de indivíduos de todas as
idades e de todas as condições decidiu viver como singleton(ver boxe). Até
recentemente, a maioria dos norte-americanos se casava jovem e ficava junto até
a morte. Se um dos cônjuges morria, o outro rapidamente voltava a se casar.
Hoje em dia, quando se casam, é mais tarde e por menos tempo. De acordo com o
Pew Research Center, dos Estados Unidos, a idade média do primeiro casamento
atingiu “o nível mais alto jamais registrado, com um aumento de cinco anos ao
longo da segunda metade do século passado”.1 Quer resultem de divórcio, morte
ou recusa em se casar, os períodos de vida solitária duram anos, até mesmo
décadas. Os ciclos de vida são, dessa forma, marcados por acordos em que a
estrutura familiar ocupa apenas um lugar temporário ou condicional.
“Doente”, “imoral” e “neurótico”
No entanto, apesar da extensão do
fenômeno, viver sozinho constitui um dos temas menos discutidos e, portanto,
menos compreendidos do nosso tempo. Os indivíduos em questão, assim como
aqueles que os rodeiam, veem essa condição como uma experiência estritamente
privada, quando na verdade se trata de uma condição cada vez mais comum, cujas
repercussões na vida social deveriam ser levadas em conta. Mas, nas raras
ocasiões em que essa nova tendência se torna tema de um debate público, os
comentaristas só a abordam em termos psicológicos ou sociais, como um sintoma
de narcisismo, de voltar-se para si mesmo, ou da dissolução do “viver em
conjunto”. Porém, essa mutação espetacular se revela infinitamente mais
interessante – e menos excludente – que a imagem de desolação que o espaço da
mídia lhe reserva.
A disseminação do estilo de vida
“solo” não é nem mais nem menos que uma experiência de transformação social em
grande escala. Ela orienta a concepção do espaço urbano (habitação, transporte
etc.) e o desenvolvimento da economia dos serviços pessoais (manutenção em
domicílio, serviços de baby-sitter, delivery de alimentos etc.). Ela afeta a
maneira de crescer, envelhecer e morrer. Ela gera um impacto em todos os grupos
sociais e em quase todas as famílias.
É tentador considerar a
proliferação de singletonscomo um fenômeno tipicamente norte-americano, a
manifestação do que o crítico literário Harold Bloom chamou de “religião de
cada um por si”. Contudo, a força motriz dessa evolução ultrapassa a cultura
dos Estados Unidos. Prova disso é que o país tende a ficar para trás nessa
área, muito a reboque de nações consideradas menos inclinadas ao
individualismo. As nações estatisticamente mais favoráveis para viver sozinho
são Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca, onde ossingletonsrepresentam 40% a
45% dos domicílios. No Japão, onde a vida social é historicamente enraizada no
culto da família, essa taxa está agora perto dos 30%. Na Alemanha, na França e
no Reino Unido, mas também na Austrália e no Canadá, a proporção é maior que
nos Estados Unidos. E o fenômeno não se limita às antigas potências
industriais, uma vez que é na China, na Índia e no Brasil que ele avança mais
rapidamente. De acordo com um relatório do Euro Monitor International, um órgão
de análise de mercado com sede em Londres, o número de singletonsexplode no
mundo inteiro: teria passado de 153 milhões em 1996 para 202 milhões em 2006,
um aumento de 33% em dez anos.2
Como explicar essa mudança
espetacular? Obviamente, ela está ligada ao desenvolvimento econômico e à
segurança física que dele decorre para uma parte da população. Em outras
palavras, se os singletonsnunca foram tantos, é porque eles agora podem se
sustentar. Mas a economia não explica tudo. De acordo com um estudo realizado
em 1957, mais da metade dos norte-americanos considerava as pessoas não casadas
como “doentes”, “imorais” ou “neuróticas”, contra apenas um terço que tinha uma
opinião neutra a respeito. Na geração seguinte, em 1976, a relação se inverteu:
um terço dos julgamentos era desaprovador, metade era de opinião neutra e havia
até mesmo a aprovação de um em cada sete cidadãos.3 Ainda que o estigma
negativo associado à recusa da vida de casado não tenha desaparecido, as
determinantes culturais em vigor nessa área mudaram profundamente.
É uma evidência bastante
enraizada na ideologia dominante que a busca do sucesso e da felicidade tem
menos a ver com laços tecidos com os outros do que com a capacidade de se
destacar e aproveitar as melhores oportunidades. Liberdade, desprendimento,
desenvolvimento pessoal: muitas virtudes caras à sabedoria contemporânea. O
demógrafo Andrew Cherlin chega a sugerir que “uma pessoa tem primariamente uma obrigação
consigo mesma, antes de tê-la para com seu parceiro ou seus filhos”.4
Não faz muito tempo, uma pessoa
que quisesse se divorciar devia primeiro justificar seu pedido. Atualmente, há
uma tendência para a lógica oposta: se a vida conjugal não preenche
completamente uma pessoa, ela deve se justificar por não querer terminar o mais
rápido possível – tão forte é a ideia de que alguém precisa “fazer o bem a si
próprio”. Essa tendência também se traduz por um apego cada vez mais frágil aos
lugares em que se vive. O mesmo vale para a ligação com o trabalho,
caracterizada por uma instabilidade permanente dos cargos, dos salários e do
amanhã – para sobreviver, por favor, pense só em si mesmo. “Pela primeira vez
na história”, observam os sociólogos alemães Ulrich Beck e Elisabeth
Beck-Gernsheim, “o indivíduo está se tornando a unidade básica da reprodução
social”.5
Se o culto do indivíduo inaugurou
seu reinado no século XIX, foi somente a partir da segunda metade do século XX
que ele perturbou em profundidade as sociedades industrializadas, graças a
quatro grandes mudanças sociais: o reconhecimento dos direitos das mulheres, o
desenvolvimento das comunicações, a urbanização e a extensão da expectativa de
vida. A combinação desses quatro fatores criou condições propícias para a
irrupção do individualismo e da vida solitária no Ocidente e depois além.
O que eu quero, quando eu quero
Primeiramente, a emancipação das
mulheres. As conquistas alcançadas nessa área a partir da década de 1950 não
constituem menos do que uma revolução: as mulheres tiveram acesso à educação,
investiram no mundo do trabalho, assumiram o controle de sua vida sexual e
doméstica. A maioria dos países desenvolvidos experimentou mudanças semelhantes
na segunda metade do século passado, de modo que o equilíbrio entre homens e
mulheres no ensino superior e no trabalho nunca foi tão balanceado – mesmo que
discriminações ainda persistam.
Ao mesmo tempo, a conquista, por
parte das mulheres, da contracepção feminina e do controle de natalidade abalou
o quadro tradicional das relações heterossexuais, com casamentos mais tardios e
um rápido aumento das separações e dos divórcios. Nos Estados Unidos, a
probabilidade de um casamento terminar por meio de um divórcio é duas vezes
maior que cinquenta anos atrás. Para uma mulher, deixar seu cônjuge ou escolher
viver sozinha já não é sinônimo de abstinência pela vida inteira, muito pelo
contrário. Agora, como explica Michael Rosenfeld, sociólogo da Universidade
Stanford, muitas mulheres de classe média na casa dos 30 anos aspiram à nova e
despreocupada embriaguez de uma “segunda adolescência”. Esse hedonismo está no
coração do que Rosenfeld chama de nossa “era de independência”: viver sozinho
dá tempo e espaço para desfrutar a companhia de outros.6
O culto do indivíduo também se
apoia na revolução das comunicações, que permite aproveitar os prazeres de uma
vida social sem sair de casa. Em 1940, só um em cada três lares
norte-americanos tinha telefone; após a Segunda Guerra Mundial, a proporção
subiu para 63%; hoje, 95% o possuem. A televisão se espalhou ainda mais
rapidamente. EmBowling alone [Jogando boliche sozinho], o cientista político
Robert Putnam lembra que entre 1948 e 1958 o número de lares norte-americanos
que dispunham de um aparelho de TV aumentou de 1% para... 90%. Durante a última
década do século XX, foi a internet que balançou o jogo, combinando o potencial
de relacionamento do telefone com a passividade consumista da televisão. Com a
internet, qualquer pessoa pode unir solidão e conexão, falta de contato físico
e riqueza nas relações.
A maioria dos singletonsdispõe de
outra maneira de se ligar aos outros: sair de casa e aproveitar a vida social
que a cidade oferece. A urbanização constitui assim a terceira força motriz da
individualização do mundo. Ao facilitar reagrupamentos de indivíduos em função
de valores, gostos e estilos de vida em comum, a urbanização produz subculturas
que, muitas vezes, acabam por prosperar, se estabelecer e se incorporar à
cultura dominante.
Ao longo das décadas, essas subculturas
se espalharam, impregnando os códigos culturais da vida urbana; o signo
distintivo virou padrão. De tal forma que hoje o solteiro bem de vida não
precisa mais se isolar nas áreas de fumantes ou atrás de cortinas vermelhas
para prosperar socialmente. Uma grande variedade de locais e serviços –
academias, bares, complexos residenciais, comidas delivery, lavanderias – está
lá para satisfazer suas necessidades e interesses específicos. Juntos, como
apontou Ethan Watters em Urban tribes, esses solteiros podem ajudar uns aos
outros a viver sozinhos.7
A quarta mudança que impulsionou
a onda de viver sozinho tem a ver com uma exploração coletiva que, no entanto,
raramente é percebida como tal. Na medida em que as pessoas estão vivendo mais
e mais, a experiência de envelhecimento solitário se torna um fenômeno cada vez
mais maciço. Em 1900, nos Estados Unidos, 10% das pessoas idosas estavam
sozinhas; um século depois, a proporção subiu para 62%.8
Envelhecer sozinho não é fácil.
As dificuldades comuns da terceira idade – administrar a aposentadoria, tratar
as doenças, aceitar as deficiências, ver os familiares morrerem um após o outro
– podem ser assustadoras quando as confrontamos sozinhos. Ainda assim, isso não
é necessariamente um suplício. Um estudo realizado no Reino Unido mostrou que
singletonsidosos levavam uma existência mais feliz e mantinham relações
melhores com aqueles que lhes proporcionavam cuidados e conforto (enfermeiro,
médico, ajuda em casa...) do que suas contrapartes que viviam como casais. Há
algumas décadas, os idosos geralmente têm preferido viver sozinhos em sua
própria casa a se mudar para viver com a família, com amigos ou numa casa de
repouso.9 Mais uma vez, o fenômeno não é de forma alguma exclusivamente
norte-americano. Do Japão à Alemanha, envelhecer sozinho tornou-se a norma
inclusive no seio de grupos tradicionalmente ligados ao modelo familiar
intergeracional.10
Aqueles que optam por viver
sozinhos fazem isso por um propósito: concretizar os valores sacrossantos –
liberdade individual, autocontrole, autorrealização – que guiam a vida desde a
adolescência até o último suspiro. A vida solitária permite a cada um fazer o
que quer, quando quer e do seu jeito. Essa condição liberta da tediosa tarefa
de levar em conta as necessidades e desejos de um parceiro em detrimento dos
seus. Ela permite concentrar-se em si mesmo. Na era da mídia digital e das
redes sociais, que se tornaram tão invasivas, a condição de singletontraz um
benefício ainda mais considerável: tempo e espaço para uma solidão reparadora.
Viver sozinho e sofrer de solidão
são dois estados bem diferentes. Muitos estudos indicam, de fato, que é a
qualidade e não a quantidade das interações humanas que faz uma barreira para a
solidão. Em outras palavras, não importa que as pessoas vivam sozinhas: o que
importa é que não se sintam sozinhas.
Ilustração: André Dahmer
O mundo dos singletons
O termo singletonaqui se refere a
uma pessoa que vive só. Essa população constitui um conjunto separado dos
solteiros no sentido estrito. Na verdade, é possível alguém ser solteiro, mas
viver com outra pessoa na mesma casa, um dos pais, filhos... Da mesma forma, é
comum estar “casado”, mas viver separadamente.
1 “The decline of marriage and rise of new
families” [O declínio do casamento e a ascensão de novas famílias], Pew
Research Center, Washington, nov. 2010.
2 Euromonitor International, “Single living:
how atomisation – the rise of singles and one-person households – is affecting
consumer purchasing habits” [Viver só: como a atomização – o surgimento de
lares de solteiros e de uma pessoa – está afetando os hábitos de compra dos
consumidores], jul. 2008.
3
Citado em Frank Furstenberg Jr., Sheela Kennedy, Vonnie McLoyd, Rubén
Rumbaut e Richard Settersten Jr., “Growing up is harder to do” [Crescer é mais
difícil], Contexts, n.3, Berkeley, 2004.
4
Andrew Cherlin, The marriage-go-round: the state of marriage and the
family in America today [Marriage-go-round: o estado do matrimônio e da família
na América de hoje], Knopf, Nova York, 2009.
5 Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim,
Individualization: institutionalized individualism and its social and political
consequences [Individualização: individualismo institucionalizado e suas
consequências sociais e políticas], Sage, Londres, 2002.
6 Michael Rosenfeld, The age of independence:
interracial unions, same-sex unions, and the changing American family [A idade
da independência: uniões inter-raciais, uniões do mesmo sexo e a mudança da
família norte-americana], Harvard University Press, Cambridge, 2007.
7 Ethan Watters, Urban tribes: a generation
redefines friendship, family, and commitment [Tribos urbanas: uma geração
redefine amizade, família e compromisso], Bloomsbury, Nova York, 2003.
8
Claude Fischer e Michael Hout, Century of difference: how America
changed in the last one hundred years [Século da diferença: como a América
mudou nos últimos cem anos], Russell Sage Foundation, Nova York, 2006.
9 Dora
Costa, The evolution of retirement: an American economic history – 1880-1990 [A
evolução da aposentadoria: uma história econômica norte-americana – 1880-1990],
University of Chicago Press, 1998.
10
Robert Ellickson, The household: informal order around the hearth [O
lar: ordem informal em torno da lareira], Princeton University Press, 2008.

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