Poucos jamaicanos acreditam que o
novo plano de ajuste estrutural atualmente em negociação com o Fundo Monetário
Internacional (o 14º desde 1977) vai tirá-los da pobreza. A indústria
fonográfica desperta mais esperanças – até aceitar todos os sacrifícios para
tentar atingir a glória
por Romain Cruse
(O cantor Elephant Man durante
apresentação em Nova York)
Mocassins impecáveis, calça
clara, camisa imaculada e boné branco, Courtney é um desafio ambulante à poeira
da capital, uma das mais quentes e secas do Caribe. Em Kingston, é possível ser
pobre edigno. O swag– a aparência – conta ainda mais quando se quer ser, um
dia, uma estrela do dancehall (ver box).
Esse termo, que em sentido
literal significa “pista de dança”, designa um gênero musical que surgiu nos
anos 1980. De maneira mais geral, trata-se de um sinônimo de “música
jamaicana”, englobando, por extensão, todas as práticas ligadas à sua produção
e consumo, do estilo de roupa aos grupos de dança, passando pelo sound
system.1Courtney canta; ele se prepara para gravar uma nova música.
Tendo como família apenas uma tia
que vive do outro lado da cidade, sem dinheiro no banco, com um trabalho que
lhe garante 12 mil dólares jamaicanos (R$ 270) a cada quinze dias2 para fazer a
manutenção dos jardins das mansões da burguesia de Beverly Hills, Courtney não
está perto da glória. Seu salário o coloca na média do país. Ele paga o
aluguel, as contas, compra comida – mas raramente os três ao longo do mesmo
mês. À imagem de centenas de jamaicanos, o jovem passa boa parte do tempo livre
numa das dezenas de estúdios de gravação existentes na cidade: como diz o
provérbio, “ninguém fica rico trabalhando”, e a música constitui o atalho mais
óbvio para uma vida menos miserável, pelo menos para os que se mantêm afastados
das armas e das gangues.
Fazer sucesso, muito rápido,
gravando um hit: a esperança se alimenta do percurso de um punhado de estrelas
saídas do gueto – Mavado, Elephant Man, Beeni Man, Vybz Kartel etc. – cujos
cachês ultrapassam às vezes R$ 100 mil por show. Pode-se vê-los passear pela
Hope Road, a principal avenida da capital, dirigindo carros conversíveis
alemães, e a imprensa local alardeia suas aventuras. Mas, para a grande maioria
das pessoas, odancehallcontinua sendo a música que acompanha a lida do dia a
dia, nas mil e uma atividades do setor informal (45% do produto nacional bruto
[PNB] e dois terços da população envolvida), na indústria do turismo ou nas
zonas francas (o setor terciário representa cerca de 30% da produção de riqueza
real do país).3
Para circular entre o estúdio de
gravação, os jardins dos bairros chiques e seu apartamento, Courtney pedala uma
velha mountain bike vermelha, que ele freia com a sola do sapato na roda
traseira. Situado ao pé da colina de Wareika, seu quarto faz parte de uma
pequena “guarnição”, bairros pobres controlados por gangues ligadas aos
partidos políticos da Jamaica. Estamos na zona leste da cidade, no coração de
um emaranhamento de bastiões desse tipo, que floresceram sobre o que restava
dos belos bairros construídos na época da independência, em 1962. Concebidos
para a classe média, os imóveis foram abandonados há muito tempo por sua
população original. Divididos em quartos, eles são hoje ocupados pelos que não
têm meios de ir para outro lugar, mas puderam escapar das favelas construídas
na zona oeste de Kingston em torno do lixão, em Riverton ou no manguezal, em
Seaview, por exemplo. Os muros que rodeiam as avenidas são pintados com as
efígies do herói nacional Marcus Garvey,4 do lendário Bob Marley, do ex-primeiro-ministro
socialista Michael Manley (no poder de 1972 a 1980, depois de 1989 a 1992) e de
alguns chefes de guarnição locais, os Dons.
O quarto de Courtney é grande o
suficiente para abrigar uma cama coberta por um colchão de espuma, uma velha
geladeira, uma pequena televisão, um aparelho de som hi-fi e uma grande bacia
destinada a recolher as goteiras mais importantes do teto. Cortinas rosa com
flores escondem as venezianas de metal que permanecem constantemente fechadas.
O fio de eletricidade pirateado atravessa o quarto em diagonal, carregado de
alguns cabides com roupas. Uma tomada isolada grosseiramente com fita preta
pende na parede, permitindo o funcionamento permanente de um ventilador com
controle remoto. A luz se acende ao rosquear a lâmpada, a porta se fecha
colocando um pedaço de caneta no gancho reservado ao cadeado. No resto da
cidade, a simples menção do nome de um desses bairros suscita um gesto de
desdém e medo: o clientelismo político, o tráfico de drogas e a luta pelo
controle da extorsão dos comércios da capital encheram essas guarnições de
armas de guerra. Os membros das gangues se matam e as armas se encontram nas
mãos de jovens adolescentes, os gunbwoy...
“Monday morning blues, bills to pay and the
youth want shoes, another Monday morning blues, it’s not easy leaving downhere
in the ghetto, everyday is another trial, don’t you know...”5 Courtney aprendeu
a cantar na igreja. Ele aperfeiçoou sua arte ao longo dos anos, sem
realmente pensar a respeito. Com um timbre de voz de soul norte-americano, ele
cantarola de manhã, arrumando os sapatos, os hinos melancólicos do gueto. À
noite, diante da passagem de uma jovem que ele considera bonita, improvisa em
patwa, o crioulo jamaicano, num tom mais atrevido. Um amigo o acompanha batendo
a rítmica característica do dancehall com duas garrafas.
A cena acontece diante do pequeno
bar do bairro. Na indiferença geral, uma menina de uns 10 anos carrega um galão
de água, o corpo retorcido para o lado da mão livre. Um pouco mais acima,
crianças com a pele brilhante, torso nu, brincam de polícia e bad
bwoy(“bandido”), com pistolas de madeira. Uma estudante de uniforme revista os
bolsos do irmão menor imitando os modos violentos dos squadies (policiais). O
menino tem as mãos contra a parede e as pernas separadas enquanto a irmã lhe
tateia os bolsos e administra golpes fortes atrás da cabeça. De repente, as
crianças debandam. Um silêncio pesado enche a rua. Dois jipes do Exército
patrulham lentamente a rua esburacada, abrindo caminho para um cortejo de cinco
viaturas de polícia. O comboio é protegido por trás por dois veículos
militares, com armamento pesado e atirador no teto. A polícia jamaicana foi
formada pelos colonos britânicos para impedir os pobres de se revoltar. Meio
século depois da independência, ela protege os ricos jamaicanos das gangues que
essa mesma burguesia criou para conservar o poder: as gangues jamaicanas
nasceram com os primeiros partidos políticos, protegendo os encontros de uns,
atacando os do partido adversário, impedindo certas pessoas de chegar aos
locais de voto. No início, foram empregados nessa função estivadores do
sindicato dos anos 1940. Depois passaram a pagar grupos de jovens de certos
bairros. As primeiras armas chegaram ao gueto com o apelido de vote
getters(“conquistadores de votos”).
Foi nesse ambiente que Courtney
cresceu; é o cenário de suas canções. É também o cenário do dancehall. Os dois
artistas mais populares do país, Vybz Kartel e Buju Banton, estão atualmente na
prisão, respectivamente por assassinato e tráfico de drogas. O terceiro, Jah
Cure, conheceu o sucesso no centro penitenciário de Santa Catarina, onde
cumpriu pena de oito anos por estupro.
O sistema de produção de uma
canção se organiza em três etapas: a gravação de um título, a mixagem e a
promoção. Muito raros entre os jovens são os que gravam um tune(uma canção) em
menos de três horas, no valor de 1.500 dólares jamaicanos (R$ 34) a hora no
Cell Block e quase o dobro em um estúdio renomado como Tuff Gong. Um corista
para as harmonias? Some nada menos que 5 mil dólares jamaicanos. A mixagem, uma
etapa indispensável, já que torna o título comercializável? Mais 5 mil dólares
jamaicanos, no mínimo... Mas o mais duro, e o mais caro, ainda está por vir:
conseguir que sua música seja notada no meio dos milhares de títulos produzidos
todos os anos no país.
Então é indispensável tocar em
uma das principais rádios, como a Irie FM, e idealmente em seus charts, assim
como nos das redes de televisão dedicadas ao dancehall, como a RE TV ou a Hype.
O que quer que digam os responsáveis, o acesso é pago. Uma simples difusão
cotidiana durante três meses em um dos programas da primeira rádio da ilha
custa cerca de 50 mil dólares jamaicanos (R$ 1.125) por baixo do pano. No
entanto, nem todas as músicas são aceitas, e mais vale passar por uma pessoa
que conhece bem o apresentador, um agente, por exemplo. O que aumenta ainda
mais os custos... A transação é informal, por isso, não há nenhuma garantia de
que a música vai realmente ser tocada. E ter acesso aos charts custa ainda mais
caro. A mesma coisa para ter acesso aos programas de televisão: acesso pago,
mais a realização do vídeo... Apenas essa etapa de promoção, caso se queira que
seja benfeita, custará muito mais que um ano do salário de um jovem como
Courtney. É apenas a esse preço que um artista pode esperar obter um reconhecimento
local, depois internacional, e enfim começar a viver de sua música.
O dancehall alimenta de forma
mesquinha uma grande parte da população jamaicana: vendedores de bebida e
comida durante os shows, motoristas de ônibus e táxis, dançarinos, seguranças,
técnicos, vendedores de CDs piratas, responsáveis de manutenção, funcionários
dos pequenos salões de beleza aos quais vão as mulheres antes desses eventos, e
todos os reis do jeitinho que gravitam em torno dos shows e dossound systems.
Mas o dinheiro se concentra em outro lugar, lá onde o capital é investido:
agentes de artistas, produtores, promotores, investidores, grandes marcas
internacionais patrocinando os eventos, gravadoras estrangeiras... e
traficantes de drogas. Pois as conexões tecidas pela música através do mundo
servem ao tráfico. Assim, a economia dodancehall,com sua organização piramidal,
reflete a do país: lucros concentrados nas mãos de uma pequena burguesia de
pele clara, para a qual a independência não abalou a dominação, e de uma nova
classe rica negra, surgida no fim dos anos 1970, principalmente no setor
financeiro.
Se a economia jamaicana se
diversificou desde a independência (indústria da mineração, zonas francas,
turismo, “indústria da música”), sua estrutura não evoluiu. Alguns economistas
caribenhos falam de uma “economia da plantationmodificada”:6 uma economia de
plantationcujos lucros se concentram nas mãos da burguesia local e dos
investidores estrangeiros, mas que não depende mais unicamente do setor
agrícola. Como anunciado desde 1961 por Frantz Fanon em Os condenados da Terra,
as novas classes ricas locais se concentraram quase em todos os lugares em
diversificar o sistema colonial... para mantê-lo igual.
BOX:
Do “grito do porão” aos gemidos
do gueto
Na Jamaica, a cultura musical do
dancehall surgiu na época das plantations. Como a própria linguagem crioula,
ela carrega muita coisa da África, mas se transformou pelo sincretismo do
contato com os europeus. Essa cultura “muda com a troca, sem se perder”,
segundo a expressão cara ao poeta martiniquense Édouard Glissant.1 Desde então
o dancehall evoluiu, como a economia jamaicana, mas sua estrutura permanece a
mesma. As pessoas se reuniam na época em volta de tambores e instrumentos
improvisados para dançar nos confins da fazenda. Ali se zombava dos senhores,
fazia-se comentário social, agradecia-se, cantavam-se cantos de encorajamento e
canções de amor por vezes atrevidas: todos os ingredientes do dancehall
contemporâneo, por trás de suas rítmicas agora criadas por computador.
Nesse meio-tempo, o mento, o ska
e o reggae foram algumas das manifestações da evolução dessa música.
Encontramos esses temas tocados por rumba box,2 sardin tin guitars3 e também
por instrumentos mais modernos. Poderíamos aqui retomar a análise de outro
escritor martiniquense, Patrick Chamoiseau, sobre os contadores e outras formas
de pré-literatura caribenha, e ver nascer o dancehall no “grito do porão” dos
navios negreiros, durante a passagem do meio (a travessia do Atlântico).4 Na
ilha, a música teve, ao longo de sua história, a função de válvula de escape
psicológica, oferecendo uma saída artística ao sofrimento dos sem raízes com
condições de vida miseráveis. Quando Bob Marley encontrou um de seus primeiros
produtores jamaicanos, no início dos anos 1970, este lhe disse: “Você vem de um
bairro onde as pessoas gemem o tempo todo. Vocês serão os ‘wailers’...”.5 (R.
C.)
Romain Cruse
Professor da Universidade das
Antilhas e da Guiana (UAG_Martinica) e do Centro de Estudo e Pesquisa em
Economia, Gestão, Modelização e Informática Aplicada (Ceregmia)
Ilustração: Paul Hawthorme /
Getty Images
1 “Material de som”. Designa por
extensão grupos que animam noitadas típicas da cena dancehall graças à ajuda de
uma parede de caixas de som gigantesca. Trata-se da principal forma de consumo
da música na Jamaica, antes dos shows.
2 O salário mínimo é de 20 mil
dólares jamaicanos por mês (R$ 450), tendo aumentado 11% em julho de 2012.
3 As estatísticas oficiais
aumentam o número para 79% da produção da riqueza nacional. Mas elas não levam
em conta a economia informal nem os envios de dinheiro da diáspora.
4 Célebre pan-africanista,
militante do repatriamento dos afro-americanos para a terra de seus ancestrais,
a Etiópia.
5 “É o blues da segunda de manhã,
contas para pagar e o jovem quer sapatos, mais um blues da segunda de manhã,
não é fácil viver aqui no gueto, cada dia é um novo desafio, não sabe...”
6 Cf. Lloyd Best e Kari Levitt,
Essay on the theory of plantation economy [Ensaio sobre a teoria da economia de
plantation], Editora da Universidade de West Indies, Kingston, 2009.

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