Leituras Pertinentes - IV

SÃO TODOS ILEGÍTIMOS

CLÁUDIO ABRAMO
Rev.Senhor-12.8.86

                   O problema da debilidade das instituições oficiais brasileiras, de sua monstruosa incompetência, inadequação e inadimplência, começando em muitos ministérios e terminando em fundações (muitas de caráter privado), é a ilegitimidade dos ocupantes. Não é a ilegitimidade oriunda de alguma perversão legal, pois esses problemas no fundo só interessam aos ingênuos e aos românticos.

                   A ilegitimidade de que falamos é a ilegitimidade oriunda da absoluta inadequação específica da grande maioria dos ocupantes dos cargos de direção, sejam ministros, secretários de Estado, diretores de departamentos, chefes de divisão, diretores e presidentes de fundações, de institutos e de sociedades de caráter público, de curadores, de diretores, até mesmo de chefes de seção. Esse malefício se estende freqüentemente a governadores de Estado, a prefeitos, para não falar de deputados federais e estaduais, senadores, pois mesmo os eleitos - e até com maior frequência - se ressentem da mesma ilegitimidade intrínseca, pois eleitos por uma maioria que não sabe nada, nada discerne e nem sequer sabe escolher por si própria, segundo seus interesses, votando como reflexo de propostas abstratas divulgadas pela televisão ou pela intriga.
                   Assim, não é de admirar que um secretário de Estado, digamos, não tenha a menor idéia do que vai secretariar, pois foi nomeado por um governador movido por motivos que nada tem a ver com as funções dessa secretaria. Poderíamos, sem sair de São Paulo, enumerar muitos casos de secretários de Estado que não entendem nada do que fazem, e que estariam melhor, e com maior dignidade, atrás de um balcão, vendendo ações, escrevendo livros ou oferecendo produtos variados numa feira. Da mesma forma secretários municipais, ministros, e assim por diante.
                   O exemplo mais dramático desse fenômeno típico de nosso país e de outras nações do Terceiro Mundo é o prefeito de São Paulo, o qual tem, sobre a administração de uma cidade, noções que datam de 30 ou mais anos. Mas seria injusto pensar que ele é o único, e seríamos ingênuos se pensássemos que na esfera estadual, aqui, essa inadimplência absoluta não está presente na maioria das dependências estaduais. No Brasil é quase tudo assim.
                   Acontece que um grande número desses servidores (ou de homens ou mulheres com mandato) tem, no fundo, a noção, a consciência de sua total inadequação para o cargo ou a função que exercem, e não raro chegam a entender que o fato de estarem ocupando tais cargos, por amizade, compadrio, influência política, barganha, ou seja, lá o que for, é no fundo uma profunda injustiça, um abuso; alguns até reconhecem - mas são pouquíssimos - que o fato de estarem numa secretaria de Estado, ou do município, ou numa fundação, como diretores, ou presidentes, ou curadores, chega a ser - como é - uma vergonha. Embora nem todos cheguem a esse ponto, o certo é que, pelas nossas verificações, um grande número de ocupantes desses cargos: 1) acham, no fundo, que o fato de estarem ali é realmente um cochilo da história: e 2) o fato de estarem ali significa que eles estão, realmente, "no lucro".
                   É fácil imaginar como esse sentimento, que está permanentemente presente no espírito de uma parcela dessa gente, gera uma confusão conceitual muito grande, o que acaba explicando por que a maioria desses senhores e dessas senhoras não adota atitudes firmes e enérgicas, decisivas no desempenho de suas funções; na verdade eles sabem que são usurpadores de cargos que deveriam realmente estar em outras mãos e concluem que, portanto, como usurpadores, não podem exigir de outros, dos subordinados, o desempenho correto de suas próprias funções (mesmo porque freqüentemente nem sabem transmitir as ordens com a precisão necessária).
                   Assim, se estabelece uma corrente de incompetências e inadequações, que emperra toda a máquina administrativa, atinge a sociedade e espolia o contribuinte. Há também os casos - e poderíamos enumerar vários - nos quais essa consciência sutil da usurpação provoca uma atitude diametralmente oposta: os ocupantes de tais cargos, desprovidos da menor condição de ocupa-los, adotam um tom agressivo e prepotente, tornando a ofensiva uma cortina para a sua incompetência. A ilegitimidade provoca, portanto, dois tipos de reação, igualmente nocivos ao trabalho, ao bom funcionamento das instituições e à sociedade em geral: a timidez, que estimula a incapacidade generalizada, que incentiva o ócio, a baixa produtividade ou, pior, a produtividade equivocada; e a arrogância (esta é pior porque evoluiu para a arrogância intransigente e neurótica), que estimula a má vontade, elege adversários indefesos e inimigos gratuitos, com os mesmos resultados.
                   Essa síndrome da ilegitimidade operacional não se limita, contudo, à atividade pública; ela deve ter começado, no Brasil, com os primeiros proprietários de vendinhas ou fazendas, tendo depois se estendido a vastos domínios empresariais. É o que distingue o patrão brasileiro do patrão europeu. Este último já aprendeu que o seu império, vasto ou limitado, deveu-se ao seu esforço e ao trabalho suado dos seus operários e das várias esferas de empregados; o patrão brasileiro, num grande número de casos, construiu seu império à custa de tais artifícios e artimanhas contra os seus próprios trabalhadores; que acabam instalando no fundo de sua mente a mesma consciência da usurpação. O Brasil é um dos poucos países do mundo no qual muito freqüentemente os patrões têm medo dos ou rivalizam com os empregados graduados ou não.

                   Parece que no coração de suas mentes existe a consciência de que estão ali mais ou menos como usurpadores materiais de um bem que não lhes pertence de verdade. Só que construir um país moderno com tudo isso é duro. 

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