Folha
de São Paulo, 20.08.97
Você conhece
alguma pessoa que tenha ficado religiosa por ter tomado aulas de religião na
escola?
Alguns duvidam
da existência do Diabo. Eu tenho razões para acreditar. É que ele me visita com
certa freqüência.
Em tempos
passados se relatava à boca miúda que a aparição do Cremulhão se fazia anunciar
sempre por meio de ruidosas e malcheirosas ventilações - daí a crença de que o
Diabo tem cheiro de enxofre. Há, inclusive, uma lenda que diz que foi numa luta
fétido-gasosa que Lutero o derrotou, graças à química explosiva da culinária
alemã, que nos legou a temida combinação de chucrute, batata cozida e
linguição. Mas não sei se esse relato é digno de crédito.
Nas visitas
que ele me faz, ao contrário, ele sempre se apresenta como um cavalheiro
impecavelmente trajado, perfumado com loção pós-barba Polo, polido, fino e
inteligente, o que me faz lembrar o Mefistófeles de Goethe. A única coisa que
me incomoda um pouco é o sorriso sarcástico que ele sempre tem no rosto.
Apareceu-me,
faz poucos dias, com seu charme, perfume e sorrisos habituais. Mas havia um ar
de tristeza no seu rosto. E fez o que nunca havia feito: um desabafo.
"Se as
coisas continuarem do jeito como vão, eu logo vou ser forçado a me aposentar.
Porque agora os homens fazem, não por maldade, mas por pura burrice, aquilo
que, em outras épocas, eu só conseguia após uma longa batalha de tentações. Que
tempo é esse em que os homens não mais precisam ser tentados? A vida perdeu a
graça..."
"Veja só
o que os religiosos fizeram, movidos pelas intenções mais puras: conseguiram
que os políticos de Brasília aprovassem uma lei que introduz o ensino religioso
nas escolas. Pensam que, assim, vão conseguir inculcar valores cristãos na
cabeça das crianças e dos adolescentes. Tolos. Ensino religioso é como vacina:
quem recebe uma dose na escola fica livre pelo resto da vida."
"Você
conhece alguma pessoa que tenha ficado religiosa por ter tomado aulas de
religião na escola? Seria bom que os religiosos aprendessem de Noel Rosa, que
disse que samba não se aprende no colégio. Religião também não se aprende no
colégio."
"Bem se
diz que 'o caminho para o inferno está pavimentado com boas intenções'. As boas
intenções, freqüentemente, são inimigas da inteligência. E, se há uma coisa que
eu detesto, é a burrice."
"Pois é,
com o tal ensino, quanta gente vai ser vacinada! E gente vacinada contra a
religião não precisa ser tentada. Se fosse no tempo da subversão, eu
suspeitaria que o autor do tal projeto era um comunista disfarçado, que queria
mesmo era acabar com a religião."
"Os
religiosos não sabem o perigo que estão correndo. Antigamente, por medo, a
criançada decorava os catecismos. Mas esse tempo já se foi, há muito."
"A
meninada é inteligente. Vão perguntar, vão questionar, vão escarafunchar, vão
infernizar a vida dos professores. Não por malvadeza. Mas porque a capacidade
de pensar ainda não lhes foi totalmente tirada. E, mais cedo ou mais tarde,
acabarão por chegar ao essencial."
Aí ele se voltou
para mim com um sorriso de zombaria e me pôs à prova: "Diga-me, doutor: o
que é o essencial no cristianismo?"
Seguro dos
meus conhecimentos de teologia, respondi logo: é o amor de Deus. É o céu. É a
opção preferencial pelos pobres. É a fraternidade.
Ele riu de
mim. Teologuei. Mencionei a Trindade, a encarnação, a expiação, a ressurreição.
Ele gargalhou.
"Não é
nada disso", ele afirmou. "Você nada sabe sobre teologia. O essencial
é o inferno. O que é o essencial? O essencial é aquilo que, se for tirado, faz
o edifício inteiro ruir. Pois experimente tirar o inferno do edifício cristão e
veja o que acontece com ele. Ele cai por terra. Pois a encarnação, a igreja, os
sacramentos só têm sentido se o inferno existir. Tudo isso existe para que os
homens não sejam lançados no inferno. Mas, se o inferno não existe, tudo isso
perde a razão de ser."
"Sei
muito bem que bispos modernos e teólogos da libertação evitam falar sobre o
inferno e até duvidam da minha existência. É isso que não suporto: a falta de
rigor intelectual. Pois, se eles fossem rigorosos, compreenderiam que tudo o
que se pensou e se fez nestes 2.000 anos da história eclesiástica foi feito
para livrar os homens do inferno. Se o inferno não existe, então eles não terão
medo, e os valores cristãos se dissolverão no ar."
"Pois
é", ele continuou triste. "Eles não percebem que, se forem
intelectualmente honestos e rigorosos, serão forçados a fazer propaganda do
inferno. Estou com medo; se eles fizerem isso por iniciativa própria, então eu
ficarei desnecessário e obsoleto. Serei forçado a me aposentar. Mas a vida de
aposentado não tem a alegria de quem estava na ativa. Já imaginou? Quando me
perguntarem a profissão, eu terei de responder: 'Diabo aposentado"'.
Enxugou uma
lágrima, assoou o nariz e me disse adeus. Confesso que fiquei com dó dele.
Rubem Alves, 63, educador,
escritor e psicanalista, doutor em filosofia pela Universidade de Princeton
(EUA), é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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