Por Oliveiros S. Ferreira*
Carta Maior
De repente, não mais que de
repente, um raio no céu azul. O trovão foi estrondoso o suficiente para abalar
a confiança em nossa capacidade de entender e explicar os fatos. Apesar disso,
é necessário fazer um esforço intelectual para buscar compreender um movimento
que não apenas abalou − sem causar danos irreparáveis nela − as estruturas
políticas tradicionais, como, o mais importante, nosso conhecimento das coisas.
Tentemos entender o que se
passou.
Se o que vemos é um fato social,
deve ser tratado como “coisa”, diria Durkheim. As coisas devem ser examinadas
antes de tudo por seus aspectos exteriores.
Como os representantes do
Movimento Passe Livre disseram e continuarão dizendo, esse movimento resultou
da ação no tempo de uma organização horizontal. Isso significa que nele não há
hierarquia, neste sentido de que não há um centro diretivo que traça estratégias,
define objetivos e orienta quem a suas idéias adere.
A idéia de “organização
horizontal”, porém, é uma contradição em termos. Sim, porque, de início, houve
quem imaginasse fazê-la assim e em torno de sua idéia de como as coisas
deveriam ser feitas reuniu outros, que o apoiaram.
Houve, portanto, uma organização
responsável pela convocatória dos movimentos até a última sexta-feira, 21. Não
apenas ela, contudo. Não é logicamente compreensível que 70 mil pessoas tenham
saído às ruas – e, depois, muitos mais − porque uma organização e apenas uma
(horizontal que seja) as convocou para manifestar-se. Se o Passe Livre convocou
as manifestações, outras organizações também o fizeram, usando os mesmos
recursos virtuais. A evidência disso está na decisão do Passe Livre,
sexta-feira, 21, de não mais convocar manifestações porque elementos
conservadores se infiltraram nas anteriores − e tudo indicaria que o recuo se
deveu ao grande número de “conservadores” que foram às ruas para reclamar seus
direitos…
Disso tudo se conclui que as
manifestações foram organizadas por diferentes “comitês diretivos”, cada qual
perseguindo seus propósitos. Da mesma maneira que não se deverá afastar a
hipótese (mais que isso, a constatação da realidade das coisas!) de que aos que
atenderam às convocatórias juntaram-se outros que, de repente, não mais que de
repente, sentiram chegado o momento de pôr para fora aquele amargo sentimento
de que estavam sendo tratados como cidadãos de quinta categoria nos hospitais,
no transporte, nas escolas públicas… e a consciência clara de que havia
corrupção!!!
É preciso ter presente, na
análise de acontecimentos dessa importância, que estamos diante de um fato
social que indicaria, citando o velho Trotski, um “salto na consciência
coletiva”, produto do cansaço de centenas de milhares de brasileiros. As massas
− tomemos a palavra em seu sentido mais amplo, de magnitude − a rigor só se
movem quando levadas pelo amargo sentimento de não suportar mais o status quo.
A velha e boa Sociologia, se não
explica como se dá, em cada um de nós, a passagem de um estado individual de
apatia (que não é “tédio”, tal como alguns cientistas políticos a querem
explicar) para uma ação coletiva, preocupa-se com buscar explicar os fenômenos
coletivos que, de repente, transformam a realidade fazendo uso da noção de
“correntes sociais” ou de “correntes livres do psiquismo coletivo”. São
correntes de opinião e sentimentos “livres” porque não há norma social alguma
que os regule. No seu quefazer cotidiano, “A” transmite a “B” sua insatisfação
e seu desassossego. “B” não só considerará o que ouve de “A” como acrescenta à
conversa o seu próprio desassossego e sua própria insatisfação, que já havia
considerado em conversas tidas com “C”. E “A” considerará o que ouvir de “B”.
As insatisfações e o desassossego de “A” e de “B” continuarão sendo os mesmos,
mas já estarão transformados por um fenômeno de causação circular. Um bom dia,
insatisfações e desassossegos transformam-se em revolta coletiva, e os
indivíduos romperão os padrões de comportamento expressos nos usos e costumes
cristalizados nas organizações sociais, criando símbolos novos que espelham o
somatório das insatisfações e desassossegos de todos.
A história nos mostra alguns
desses símbolos: o barrete frígio na Revolução Francesa, a foice e o martelo
associada à bandeira vermelha na Russa, a cucaracha na Mexicana. E se quisermos
ficar nos exemplos tupiniquins, convém lembrar a “vassoura” que simbolizou o
movimento janista em 1953, 1954 e 1960 − sendo conveniente assinalar que, em
1953, a vassoura vinha associada a uma palavra de ordem: “revolução do tostão
contra o milhão”, que desapareceu.
Que símbolos novos se vêem em
todos os movimentos que perturbam o marasmo no Brasil, hoje? O único símbolo
que se viu foi a Bandeira brasileira, nada mais. Havia cartazes com
reivindicações e afirmações tipo “O Gigante despertou” − mas palavras de ordem
de incentivo ou de reivindicação não são símbolos. Símbolo novo, indicativo do
que pode distinguir este movimento atual de qualquer outro, não houve. Se o
Passe Livre recuou porque percebeu “conservadores” nos movimentos, enganou-se
na avaliação − porque simbolicamente os movimentos são conservadores já que
aquilo que os símbolos comuns de Norte a Sul traduziram até agora é
simplesmente a pertença ao Brasil. Mas, atenção: há os que insultam a Bandeira
e pretendem acabar com o “nacionalismo”. Merecem consideração à parte.
Ainda que a horizontalidade da
organização permita que se ouçam muitas vozes que traduzem o desejo de outras
melhorias públicas além da redução da passagem nos transportes coletivos, a
idéia de organização horizontal como expressão legítima (e única) da democracia
é, impõe-se reconhecer, a negação da Política − como sempre foi entendida seja
por liberais, fascistas e comunistas. A Política, desde sempre, fez-se em
sociedades desiguais, em que há dirigentes e dirigidos. As organizações
políticas, igualmente, possuem um centro diretivo com autoridade suficiente
sobre aquilo que chamamos de “base” para traçar objetivos e estratégias que
definem interesses sociais, econômicos, quaisquer que sejam – exceto os que se
confundam com a procura de vantagens pessoais. A Política, essa exige que todos
os que querem transformações sociais, econômicas ou políticas tenham um
objetivo. O que se procura na Política é a conquista do Poder de Estado, pois
será a partir dele que será possível realizar ações no campo da economia e da
organização social que favoreçam os vencedores.
Desde a Revolução Francesa, para
não mais longe, os que pretendem fazer Política organizaram-se em Partidos − à
direita ou à esquerda, como é a tradição que veio de 1789. Haverá, sempre, um
Partido a traçar os objetivos a serem atingidos a partir da tomada do poder e
as estratégias para alcançá-los. Em um jogo que não é de soma zero, os que
triunfam cuidam de não excluir os vencidos, acenando-lhes com a possibilidade
de, amanhã, conquistarem o poder. No jogo de soma zero, os perdedores são
excluídos do Estado. Os jacobinos mandavam os “inimigos da Pátria” para a
guilhotina. Os bolchevistas, sob Stalin, para o Gulag. Os nazistas, para os
campos de concentração ou extermínio. Na Guerra Civil espanhola, ambos os lados
fuzilavam seus adversários: não havia lugar para eles no Estado.
Chegar ao Poder de Estado para
fazer que o Estado pereça (!) depois de longo processo foi a proposta dos que
formaram na velha Social-democracia ou até mesmo, enquanto proposta, no
Bolchevismo. Só os Anarquistas, os de velha e boa tradição, sonharam com o
desaparecimento do Estado pela ação das massas ou, no mito soreliano, pela
greve geral. E houve os que acreditavam que a violência era a única maneira de
chegar ao poder. Foi a violência contra os adversários ou supostos inimigos do
“Partido” que marcou a marcha ascendente de Mussolini e Hitler ao poder.
A ausência de outro símbolo senão
a Bandeira, que significa? Que as insatisfações e os desassossegos dos que
formam nas multidões não sofreram as transformações possíveis pela causação
circular a ponto de criar novas formas de sociabilidade, novos valores a serem
traduzidos em ações políticas concretas: a Revolução proletária, ou o
predomínio da raça ariana, ou o triunfo do Estado sobre a Nação e o Indivíduo
como na doutrina fascista.
A ausência de símbolos não
significa, porém, que os que se reuniram não chegaram a seu limite de aceitação
do status quo. Já não o aceitam mais, pelo menos nas palavras de ordem que
gritam a todo instante. Mas os que se dedicaram a comparar os atuais movimentos
com outros, deveriam deter-se em um momento na crise de 1968 na França. O
General De Gaulle manteve-se calmo diante do quebra-quebra, designando-o com
palavra chula, que um liberal argentino do século XIX traduziria por “mazorca”
(baderna). Classificou-o assim até o momento em que a Renault entrou em greve.
Então, as coisas mudaram porque às agitações de Paris juntou-se a ação de parte
da massa operária. Que fez? Foi à Alemanha assegurar-se do apoio do Exército
francês ali estacionado sob o comando do General Massu (seu adversário na
Argélia em 1958), dissolveu a Assembléia Nacional e convocou eleições gerais. O
movimento murchou…
Chamo atenção para Paris, 1968,
para que se possa avaliar com um mínimo de distorção o que aconteceu e prever,
com um mínimo de desvio do Norte, o que pode vir a acontecer, se acontecer. O
recuo do Passe-Livre indica que outros agrupamentos reunidos na dita
organização horizontal poderão convocar novas manifestações − agora para pôr à
prova a capacidade de resistência passivo-ofensiva das forças de segurança –
mobilizando ainda quem se mobilizou pela redução do preço das passagens e quer
mais que isso. Para que finalidade? Levantar o proletariado? O mesmo
trabalhador que foi impedido de chegar ao trabalho? Comover, levando-os a
participar, outros segmentos da dita classe média tradicional, cujos membros
tiveram dificuldade de chegar a casa com as ruas e estradas bloqueadas ou de
pegar um avião? Atenção! Nas redes sociais, há convocações a que se organize a
periferia (lembrando movimentos menores de bloquear ruas que aconteceram em
algumas regiões da periferia) na “luta de classes” contra os “fascistas” e,
isto o mais grave, outros apelos, de sentido diferente, para que os liberais e
anticomunistas se armem para impedir o golpe comunista… São apelos para manter
Dilma no poder, uns; para que ela saia, outros!!!
Não há dúvida de que os milhares
de cidadãos que foram às ruas encontraram a maneira (pacífica ou violenta, não
importa agora) de extravasar sua raiva, se assim podemos dizer. Que pretendiam,
contudo, os portadores de cartazes? Que não fosse votada a PEC 37, que acabasse
a corrupção, que houvesse transportes coletivos de qualidade pelo menos
razoável e hospitais públicos dignos, que os partidos políticos não se
intrometessem nas manifestações − e políticos e analistas já falam em reforma político-partidária
− e quantas coisas mais ocorressem a este ou aquele indivíduo como forma de
dizer “não agüento mais”. Nada mais que isso − o que significa que o movimento,
não tendo símbolo que traduza o que de fato se combate, não tem Inimigo. E não
o tem porque não há um Partido que proponha alguma coisa que se considere
viável, nem que seja para depois de amanhã… Até agora!
O Movimento Passe Livre recuou −
depois de sair vitorioso. Vitorioso não apenas porque as passagens no
transporte público e privado foram reduzidas, mas porque pôde comprovar que sua
tática foi a correta: a violência (a massa na rua é uma forma de violência
passiva) conseguiu que os governantes voltassem atrás. Provou, assim, que é
possível fazer que o Estado se transforme em Governo para administrar as coisas
desde que o Povo assim o deseje e reclame nas ruas, perturbando o sossego dos
bons burgueses que nos governam. Estuda, agora, como se fará a redução a zero
das tarifas e, depois, a reforma urbana. Será aí, em torno dela, que se travará
a batalha entre os que governam este combalido Estado, os que pretendem
empenhar-se em uma Política de oposição para alcançar o poder do Estado e os
que pregam a democracia direta nas ruas. Até lá, a “classe política” (e Dilma é
seu representante maior) cuidará de colocar gases e esparadrapo nas feridas das
instituições, votando às pressas reformas sobre mobilidade urbana, Partidos
etc. Reformas que serão votadas pelos mesmos que, tudo indica, mereceram o
repúdio não nas urnas, mas nas ruas.
É a forma
tupiniquim-institucional da democracia direta ou, como diria Lampeduzza, a
maneira de fazer a revolução para que tudo continue como está?
*Publicado originalmente em
http://www.oliveiros.com.br/
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