Em entrevista à Carta
Maior, Paolo Gerbaudo, pesquisador do Kings College e especialista em
movimentos sociais, fala sobre as semelhanças e diferenças entre os protestos
de rua que sacudiram países como Egito, Turquia, Espanha e Brasil. Gerbaudo
aponta a força desses movimentos, mas também indica seus limites. "Há uma
contradição entre o que se defende como parte de um movimento autônomo que
rechaça o Estado, mas que, ao mesmo tempo, depende do Estado para a satisfação
de suas demandas. Os movimentos podem ter um efeito autodestrutivo. É o que
ocorreu em certa medida no Egito", adverte. Por Marcelo Justo, de Londres.
Marcelo Justo
Carta Maior
Londres - Os protestos
que sacudiram os sistemas políticos de nações tão díspares como Egito e Brasil
nos últimos três anos não provem da estrutura política tradicional, mas sim da
rua, de uma tradição movimentista. Na Europa da austeridade, no Brasil de Dilma
Rousseff, na Primavera Árabe e na Turquia pró-islâmica de Recep Tayyip Erdogan
estes movimentos – chamem-se indignados, Movimento Passe Livre ou Occupy – têm
traços organizativos similares, uma mescla de espontaneidade, demandas
específicas e escassas consignas programáticas. Em entrevista à Carta
Maior, Paolo Gerbaudo, pesquisador do Kings College, especialista em
novos movimentos sociais, analisou as expectativas e os limites destes
movimentos políticos e seu significado no caso particular do Brasil.
Você vê alguma semelhança entre o que ocorreu no Brasil e na Turquia e os
movimentos sociais europeus como os indignados ou o movimento occupy?
Paolo Gerbaudo: Esses movimentos são, ao mesmo tempo, similares e
diferentes. A diferença diz respeito ao meio social no qual ocorrem. Os
movimentos no Brasil e na Turquia expressam diferentes realidades daquelas da
Espanha e dos Estados Unidos. Não se pode postular uma tendência unilinear. Mas
há semelhanças que podem ser vistas na maneira pela qual os manifestantes expressam
seu protesto, nos símbolos que usam. A máscara do V de Vingança, como símbolo
de certo anarquismo antiautoritário, é um exemplo. Ela pode ser vista nos
protestos de Dubai, do Egito e em muitos outros lugares. Na capa de um jornal
turco apareceu uma foto muito interessante durante as manifestações do Brasil.
Na metade da capa, aparecia um manifestante com a máscara do V e a bandeira do
Brasil. Na outra metade, havia um manifestante na Turquia com a mesma máscara e
a bandeira turca.
Isso mostra outro elemento importante. Ao contrário dos movimentos
antiglobalização estes movimentos são nacionais como se vê pela presença das
bandeiras. Nos movimentos antiglobalização, há um forte elemento contracultural
e de presença de minorias. Um postulado básico era a diversidade de táticas e
pertencimentos: anarquistas, feministas, ecologistas eram parte de um movimento
que se baseava na ideia de resistência em um momento no qual a maioria sentia
que o sistema estava oferecendo coisas suficientes para se manter em conformidade
com ele. Não é a situação agora, quando há um forte rechaço do neoliberalismo.
Se alguém pergunta a alguém o que pensa dos bancos ou do sistema econômico, a
resposta intuitiva, sem usar uma linguagem técnica, é quase unânime de
indignação sobre a disfuncionalidade do sistema.
Mas, se na Europa dos anos 60 ou 70 tivesse ocorrido uma austeridade como a
que ocorre agora, a resposta teria sido muito mais forte, quase uma situação
pré-revolucionária. Uma coisa que surpreende no que está acontecendo é que
tenha levado tanto tempo para ocorrer uma resposta. O que é que está faltando?
Paolo Gerbaudo: Estes movimentos não começam com uma identidade centrada
em uma ideologia. São lugares de convergência que compartilham a sensação de
ser vítima do sistema. Não é um movimento de minorias. Estive na Espanha e uma
coisa que me impressionou muito foi que nas assembleias aparecia um
especialista em computação dizendo “eu também estou indignado” e, ao seu lado,
havia uma aposentada que tinha sofria uma forte redução em sua aposentadoria e
que dizia o mesmo, ou seja, que ela também estava indignada. Este “também” é
fundamental. Esses movimentos ainda estão lutando para ter uma visão coerente,
que não se resuma à oposição de modo geral a tudo que está aí. As Assembleias
Populares são uma tentativa de construir esta visão. Em um certo sentido são um
passo fundamental, mas é preciso não se iludir, não é o caso de idolatrá-las.
As assembleias não são uma solução, nem produzirão resultados. Na Assembleia,
reúne-se gente que compartilha as mesmas demandas, mas que têm identidades
políticas distintas. Os indignados estão se dividindo agora entre os que têm um
perfil liberal-conservador, onde há até um membro da Opus Dei, e os que são
autonomistas.
Na Argentina, hoje, pode-se ver um ciclo completo das Assembleias. No início
da crise, em 2001-2002, foram muito importantes, mas depois, à medida que a
economia se recuperou, foram se diluindo. Hoje são politicamente irrelevantes.
Esse não é um problema de todos estes movimentos que dependem totalmente de uma
crise?
Paolo Gerbaudo: Totalmente. As Assembleias são uma espécie de sonho
anarquista de que é possível funcionar com um sistema de assembleias. Isso se
viu na Argentina, na Grécia e na Espanha. Há um extraordinário entusiasmo
quando o movimento começa com a ideia de que vão substituir os governos, mas
isso não ocorre, em parte porque as assembleias requerem um gasto de energia
extraordinariamente grande. Atribuem a Oscar Wilde uma frase que reflete isso:
“o socialismo requer demasiadas reuniões nas noites de quarta”. As pessoas se
encantam com as reuniões, mas elas acabam se tornando cansativas. As
Assembleias são um meio, parte das ferramentas disponíveis para uma mudança. O
perigo é acreditarmos que os meios são o importante. É o que diz um dos
ideólogos do movimento Occupy Wall Street, David Graeber, o “importante são os
meios corretos”. Isso é como dizer: não importa a ideologia, a visão de mundo,
importa a democracia.
No entanto, há sinais de ideologia em todos estes movimentos. Em uma carta
do movimento passe livre a Dilma Rousseff é dito que “o transporte deve ser
público de verdade, acessível a todos, ou seja, um direito universal.
Questionar a tarifa é questionar a própria lógica da política tarifária que
submete o transporte ao lucro dos empresários e não à necessidade da
população”. Essa carta também sustenta que este critério deveria ser aplicado
não só ao transporte, mas sim à saúde, à educação, etc. Isso parece uma semente
de ideologia.
Paolo Gerbaudo: Exatamente. Mas tem uma limitação. Não apontam um
caminho. Por que? Porque recusam que o Estado é o caminho para a resolução do
problema. A quem estamos fazendo esta demanda? Ao Estado. No caso do Brasil,
isso é claro. Há uma contradição entre o que se defende como parte de um
movimento autônomo que rechaça o Estado, mas que, ao mesmo tempo, depende do
Estado para a satisfação de suas demandas. Mas, sim, há uma semente de uma
ideologia baseada nos direitos sociais, baseada em visões de gente do povo, uma
ideologia que põe a ênfase no direito ao espaço cidadão. É uma série de
demandas que refletem a estrutura social no movimento, a precária classe média
que quer hospitais, espaços públicos, parques, educação, transporte.
No Brasil os cincos pactos propostos por Dilma a governadores e prefeitos se
centram nesses pontos: saúde, educação, transporte, reforma fiscal e reforma
política. Você acredita que isso pode colocar um fim à crise?
Paolo Gerbaudo: Não sei. Esses movimentos estão criticando o sistema de
partidos políticos. Não sei se a cooptação seletiva será suficiente para
desarmar estes movimentos. Pode ser. Estas concessões podem pacificar certos
setores do movimento. Mas ao mesmo tempo é provável que criem novos partidos
que tentem integrar estes elementos.
No Brasil há um paradoxo. Os protestos ocorrem com um governo popular que
aumentou as políticas sociais em um país com pleno emprego. Não se dá a crise
europeia da austeridade.
Paolo Gerbaudo: Há uma maneira de entender esses protestos que é pensar
que se alimentam da privação. Neste caso a lógica seria quanto mais fome mais
protestos. Mas pode ocorrer também a lógica inversa. Quanto mais direitos
alguém consegue, mais quer. No Brasil, a situação hoje é muito melhor. Mas como
diz Rodrigo Nunes, em um artigo na Al Jazeera, há que diferenciar entre
crescimento quantitativo e qualitativo. Ganha-se mais, mas os serviços são
piores. Não estive no Brasil, mas muita gente me falou que a infraestrutura de
transporte e o sistema de saúde são terríveis. Tudo isso afeta a qualidade de
vida em um momento no qual o país parecia ir muito bem. Isso ocorre também na
Turquia. Pode haver muito desenvolvimento, mas a resposta da população é que
não se trata simplesmente de aumentar um critério abstrato de medição como é o
PIB, mas sim de viver melhor.
Nestes episódios a reação dos governos e da polícia parece cumprir um papel
disparador e aglutinador. Isso é uma parte essencial na aparição de movimentos
como estes que, da noite para o dia, passam a dominar toda a agenda política?
Paolo Gerbaudo: Em princípio o que os une é o Estado. No Egito, o que
uniu todo o mundo foi a polícia. Todo mundo odeia a polícia. A reação da
polícia representa que só há a vara: não há a cenoura. E o Estado está
representado na polícia. Não é a polícia usada para manter uma ordem social
justa, mas sim a polícia que serve para a injustiça social, um imã que unifica
todo mundo.
Uma coisa que estes movimentos trazem à superfície é o problema da
representação política. Estes movimentos sociais são uma crítica implícita ou
explícita aos partidos políticos tradicionais.
Paolo Gerbaudo: Os partidos sempre existiram. Nos tempos de Roma,
existia o partido popular e o dos patrícios. Hoje se critica os partidos
políticos, mas a realidade é que eles têm uma base massiva. Mesmo em um país
tão apolítico como o Reino Unido, os conservadores têm cerca de três milhões de
membros. Isso significa que esses partidos têm certa legitimidade. Inclino-me
pela tese de Gramsci, que defende a convivência de movimentos e partidos.
Os movimentos podem ter um efeito autodestrutivo. É o que ocorreu em certa
medida no Egito, onde os movimentos rejeitaram toda organização e estrutura e o
resultado foi que abriram a porta para a vitória da Irmandade Muçulmana que
hoje governa o país com resultados desastrosos. Quanto ao modelo de partido
leninista, creio que o desafio é ver como nos movermos para novas formas de
representatividade política que consigam ir além do centralismo democrático.
Não se trata simplesmente de uma discussão intelectual. Vê-se isso claramente
no movimento na Itália, onde se coloca a criação de novas formas de
participação democrática por meio da internet. Tudo isso é bastante
problemático porque o movimento tem um terrível paradoxo entre ser
participativo e ter um líder paternalista como Beppe Grillo que decide quem
está no movimento. É algo que o Partido do Futuro, nascido do movimento dos
indignados, está tentando responder na Espanha. Como vamos usar a internet e os
meios de comunicação para reconstruir formas de participação que não são
possíveis hoje com os partidos?
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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