Marcelo Justo
Carta Maior
Londres - A desocupação do Parque
Gezi, em Istambul, e a repressão no Rio de Janeiro têm em comum o mesmo que a
maioria das manifestações de 2013, seja pela violação de uma pessoa na Índia,
por reivindicações estudantis no Chile ou trabalhistas no México ou contra a austeridade
na Europa: o gás lacrimogêneo. No orçamento da Espanha, uma das raras exceções
aos cortes foram os gastos com material anti-distúrbio. Enquanto ocorreram
cortes nas áreas da saúde, educação e seguridade social, o gasto com esses
materiais disparou de 173 mil euros para mais de 3 milhões de euros em 2013. No
Oriente Médio, a Primavera Árabe resultou em uma panaceia para a indústria da
segurança: no ano passado, o mercado da segurança interna alcançou os 6 bilhões
de euros, um aumento de 18%.
É um mercado de paradoxos e
discursos duplos. No momento em que os Estados Unidos aprovaram o fornecimento
de armas aos rebeldes na Síria, com o argumento de que foram atacados com armas
químicas, ninguém lembra que o gás lacrimogêneo é com siderado uma arma química
pela ONU e que as empresas estadunidenses são dominantes no mercado, com a
crescente competição de empresas chinesas e da brasileira Condor Non-Lethal
Technologies. O próprio Departamento de Estado defende abertamente seu uso
dizendo que é uma arma “não letal” que “salva vidas e protege a propriedade”.
Carta Maior conversou sobre esse tema com Anna Feigenbaum, que investiga a
história política do gás lacrimogêneo na Universidade de Bournemouth, no Reino
Unido.
A história do gás lacrimogêneo
parece ter sido reescrita nas últimas décadas. É uma arma química ou não? É uma
arma letal ou não?
Nos protocolos de guerra da ONU é
uma arma química. O que ocorre é que, ao final da Primeira Guerra Mundial,
vários países, em especial os Estados Unidos, se lançaram em uma ofensiva para
manter sua produção em tempos de paz. Os EUA lançaram uma estratégia específica
de marketing com a polícia e a guarda nacional, realizando inclusive exibições
especiais na Casa Branca para demonstrar sua utilidade. Assim criaram a demanda
pelo produto. Pelo lado da oferta, ou seja, da produção, a indústria do gás
lacrimogêneo modernizou o complexo industrial-militar que havia começado a se
desenvolver no início do século aceitando a cooperação entre químicos da
universidade, militares, a burocracia estatal e as corporações privadas.
Mas hoje esse produto foi
rebatizado. Não se fala de “arma química” como na Primeira Guerra Mundial. Isso
causaria pavor. O que temos é uma arma “não letal”.
Este jogo com a linguagem ocorre
desde o início. Por um lado, se oferecia o gás lacrimogêneo como uma arma de
multiuso, para ataque e defesa, que no princípio teve como principal aplicação
enfrentar greves. Ao mesmo tempo se enfatizava que não era “tóxico” e que não
produzia nenhum dano duradouro. Foi uma grande iniciativa de relações públicas
que acabou exposta por uma investigação em 1939.
Em que momento se “universaliza”
o uso de gás lacrimogêneo para o que se chama de controle de multidões?
Nos anos 30 se começa a exportar
o produto para colônias e países periféricos. Os Estados Unidos o utilizam nas
Filipinas e no Panamá, o governo britânico o usa na Índia. Ele também é
utilizado no Oriente Médio nessa época, ainda que haja certa discordância entre
os historiadores a respeito.
Na década de 60, ele se tornou
parte habitual da paisagem das manifestações na América Latina.
Essa é uma das coisas mais
perigosas que aconteceram porque se naturalizou o uso de gás lacrimogêneo
quando, na verdade, trata-se de um veneno que, do ponto de vista médico, causa uma
série de danos comprováveis muito mais sérios do que se admite em nível
oficial. Ele é particularmente perigoso para pessoas com problemas
respiratórios ou com problemas epilépticos. Do ponto de vista político, também
é muito perigoso, porque está se naturalizando um tipo de resposta repressiva
contra o direito de livre expressão e reunião.
O argumento da indústria e dos
governos é que ele é preferível às armas para o controle de manifestações e
distúrbios. São chamados de não letais e o Departamento de Estado diz que
“salvam vidas”.
Na Turquia, no Egito, no Bahrein,
o gás lacrimogêneo está sendo utilizado como se fosse uma arma, ou seja, é
usado em lugares fechados e, às vezes, como munição que se dispara contra
alguém. A ideia de que é melhor que outro tipo de arma, como arma de fogo, tem
dois problemas básicos. O primeiro é que, do ponto de vista dos direitos civis,
coloca-se que a alternativa é entre uma arma de fogo ou o gás lacrimogêneo, ao
invés de se concentrar na possibilidade de mediação, diálogo e solução dos
problemas que motivaram o protesto. A opção passa a ser: ou os metralhamos ou
os envenenamos com gás lacrimogêneo. O segundo problema é que o gás
lacrimogêneo é usado normalmente com outras formas de controle de massas como
os carros hidrantes ou as balas de borracha. Isso faz parte de sua origem
militar.
Na Primeira Guerra Mundial, o gás
lacrimogêneo foi desenhado como um precursor de outras formas de ataque já que
obrigava os soldados a sair de suas trincheiras e os expunha a outras armas
mais letais. Algo similar ocorre nas manifestações. O gás lacrimogêneo cria
caos, impede que as pessoas possam se proteger e as expõe a outras formas de
ataque.
Você tem um mapa do uso em nível
mundial do gás lacrimogêneo em 2013. É notável que, na Europa da Austeridade,
há vários países que o utilizaram, desde a Alemanha e a Bélgica até a Espanha e
a Grécia.
Houve um aumento dos protestos
desde o estouro financeiro de 2008 e outro aumento desde que começaram as
medidas de austeridade. Paralelo a isso, temos visto uma resposta cada vez mais
violenta aos protestos. Nestes protestos mais recentes temos visto um maior uso
de gás lacrimogêneo, balas de borracha e o resto do material anti-distúrbios.
Também estamos vendo um novo deslizamento semântico com a crescente importância
da indústria antiterrorista desde 2001. Nos últimos anos tem ocorrido uma
confluência entre a indústria antiterrorista e os métodos para lidar com
protestos.
Recentemente, uma especialista
israelense em políticas policiais comentou-me que estava sendo utilizado contra
os militantes israelenses a tecnologia, o tipo de treinamento e de forças que
se utilizam para casos de terrorismo. É o uso de táticas militares para o
treinamento da polícia. Isso também faz parte da naturalização dos métodos de
repressão.
Tradução: Marco Aurélio
Weissheimer
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