por Roberto Leher
A expansão das matrículas do
ensino médio, o recrutamento de força de trabalho pelo capital e as
mobilizações de estudantes e docentes em prol de uma reforma universitária
tornaram improrrogável a questão da democratização do acesso à educação
superior. O crescimento econômico motivou a emergente classe média a investir –
como o passaporte para a mobilidade social – em cursinhos pré-vestibulares para
garantir o acesso de seus filhos à universidade. Os estudantes excedentes
(aprovados, mas sem vagas) saíram às ruas em protestos que abalavam a imagem do
“Brasil potência”.
Diante das pressões, o governo
argumentou que as vagas públicas não poderiam atender prontamente à demanda.
“Sensível” aos reclamos sociais, induziu a abertura de vagas no setor privado,
em instituições universitárias ou não (uma firula, diante da causa
democrática), por meio de pesadas isenções tributárias e empréstimos estudantis
fortemente subsidiados pelo poder público. Assim, o anseio dos estudantes
poderia ser realizado “aqui e agora”. Ao mesmo tempo, contemplaria os
interesses capitalistas dos empresários da educação, segmento que demonstrara
força política no processo de elaboração da Lei de Diretrizes e Bases.
Evidentemente, referimo-nos até
aqui à ditatura civil-militar de 1964. O sistema de bolsas foi colocado em
prática pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, que determinava a criação de
bolsas de estudo restituíveis, e pelo artigo 20 da Constituição de 1967, que
vedava à União, aos estados e aos municípios a cobrança de impostos sobre
renda, patrimônio e serviços dos estabelecimentos de ensino. Houve uma
acentuada expansão das matrículas no ensino superior: entre 1960 e 1980, de 200
mil para 1,4 milhão (cerca de 500%), mas o grande impulsionador da expansão foi
o setor privado (crescimento superior a 800%), quepartiu de um patamar de 42%
das matrículas no início dos anos 1960, alcançando 50% em meados dos 1970 e, em
1980, sendo responsável por 63% do total. A solução emergencial do problema do
acesso expandiu e diferenciou as instituições de ensino superior privadas,
legitimando a contrarreforma de 1968, calibrada pelos Acordos MEC-Usaid. Ao
final da ditadura, o sistema público assumiu função complementar ao privado. As
frações mais pauperizadas teriam de se conformar com cursos aligeirados,
adequados para formar o exército industrial de reserva.
A crítica à ditadura colocou em
evidência o perverso modelo privado-mercantil: embora ofertando cursos, em
geral sem qualidade, os lucros do setor ampliaram exponencialmente sob o manto
da filantropia. Daí por que a luta na Constituinte ter priorizado a consigna:
verbas públicas para as escolas públicas. Derrotas e avanços coexistem no
capítulo da educação da Carta de 1988. O artigo 207 consagra a universidade
como uma instituição autônoma e referenciada na indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão, mas o artigo 209 estabelece que o ensino é livre à
iniciativa privada, e os artigos 150 e 213 admitem a possibilidade de repasse
de recursos públicos (apenas) para as instituições “sem fins lucrativos”
(comunitárias, filantrópicas e confessionais).
Fernando Henrique Cardoso
institucionalizou o caráter privado-mercantil das “particulares” (Decreto n.
2.306/1997). A expansão, doravante, foi liderada por essas instituições com
fins lucrativos (em 2008, das 2.016 privadas, 1.579 eram particulares). Após o
boomdas matrículas privadas entre 1995-1999, o setor educacional foi afetado
por uma crise semelhante à dos anos 1980: não havia mercado consumidor, com
renda, para comprar o serviço educacional. Nesse contexto, o poder do atraso se
impôs. O resgate das organizações privadas dar-se-ia em nome do interesse
público. Tratava-se de democratizar o acesso “aqui e agora”, ainda que
financiando as instituições privadas. O diagnóstico do governo era de que o
setor público não daria conta e era pouco eficiente nos gastos. O setor privado
seria auspiciado por uma dupla medida já conhecida: a) oferecer isenções
tributárias para as organizações privadas (Programa Universidade para Todos),
ultrapassando até mesmo os limites da Constituição (ao conceder isenções às
instituições com fins lucrativos) e b) turbinar o programa de empréstimos
subsidiados para os clientes (Fies).
Muitos estudantes se beneficiaram
do ProUni. E devem ser apoiados em seu direito à educação superior. Não resta
dúvida de que outros muitos se beneficiaram da expansão e das bolsas na
ditadura. O problema é que tal política destrói qualquer projeto democrático de
nação. A opção pelo setor privado leva ao encolhimento do setor público. Em
2002, apenas 27% das matrículas eram públicas; em 2010, 25%. Difunde-se um
padrão de educação minimalista e desvinculado das necessidades do país: apenas
0,002% das bolsas do ProUni foram para Geologia e 0,6% em Medicina, por
exemplo; o grosso se destina a cursos de “humanidades”, tecnológicos de curta
duração (sem relação com as áreas tecnológicas duras) e ciências sociais
aplicadas, cursos fast deliverydiploma.
O próprio nome do programa é
enganoso: não é universidade para todos, já que as vagas estão dispersas em
todo tipo de instituição de ensino superior, inclusive nas mal avaliadas pelo
MEC. É de baixa efetividade. Em 2005, apenas 77% das vagas anunciadas em
maciças campanhas publicitárias foram ocupadas. Em 2008, apenas 58% das vagas
anunciadas. O custo-aluno para o Estado é enorme, muito acima da mensalidade
média das empresas: a) organizações com fins lucrativos: R$ 436; custo do
bolsista: R$ 495; b) sem fins lucrativos beneficentes: R$ 597; valor pago por
aluno: R$ 1.043 (2006).
Uma diferença em relação aos anos
da ditadura precisa ser realçada. Atualmente, o setor é controlado por
corporações e fundos de investimento com grande participação de capital
estrangeiro. Não se trata mais de empresas familiares, mas de negócios que
compõem o rol de investimentos especulativos do setor financeiro. Permitir, em
nome da democracia, que a juventude brasileira permaneça prisioneira dessa
educação mercantilizada é algo brutal. Urge mudar a direção da política
educacional. E o eixo tem de ser público e universal. Uma universidade aberta a
todos os que possuem um rosto humano. A história se move!
Roberto Leher
Professor titular da Faculdade de
Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ, além de
pesquisador do CNPq
Ilustração: Orlando
Comentários
Postar um comentário
12