Nesse momento, é possível assistir, com nitidez cristalina e ao vivo,
cada etapa da linha de produção de uma nova ideologia. E já que a mercadoria
ainda não está pronta, é fundamental tomarmos nota de seus componentes para não
corrermos o risco de fornecer matéria-prima
por Silvia Viana
Um bom começo para a reflexão que deve se seguir ao
dia de ontem (e acompanhar aqueles que virão): observar atentamente a
reconstrução do discurso da grande mídia.
Nesse momento, é possível assistir, com nitidez
cristalina e ao vivo, cada etapa da linha de produção de uma nova ideologia. E
já que a mercadoria ainda não está pronta, é fundamental tomarmos nota de seus
componentes para não corrermos o risco de fornecer matéria-prima.
As anotações que se seguem são relativas à
audiência da cobertura do Globo News de ontem e da quinta-feira passada; do
Jornal da Record e do Jornal do SBT de ontem; e do Cidade Alerta de quinta
(sim, eu ainda tenho estômago):
O elemento central do discurso que ora se monta é a
minimização dos fins em relação aos meios.
Ao longo das duas horas que assisti a Globo News,
em momento algum foi discutida a questão do aumento das tarifas. O fundamental
são os meios: o manifesto foi violento ou não, houve, ou não, negociação entre
as partes, quais os trajetos e pontos ocupados, quantas pessoas aderiram etc.
Essa técnica tem um foco político autoevidente:
ignorar o objetivo do movimento; e outro opaco: apontar para a Manifestação
como um fim em si.
Não os subestimemos, a manobra é esperta, pois
reflete uma forma de fazer política que tem se tornado usual em SP: ocupar
espaços públicos por ocupar, "sem bandeiras", "por amor",
"porque a cidade é nossa" etc.
Desse modo, a manifestação se assemelha a uma forma
de terapia: faz bem, é gostoso, alivia frustrações etc. Ela é democrática,
logo, vale por si mesma...
Mas não mencionar o verdadeiro mérito da questão é
apenas uma das técnicas de anulação da causa e, nesse momento, seria frágil,
não fosse a técnica complementar de abstração dos fins: “não são só 20
centavos, não é só o transporte, não é só a copa...”. As negativas crescem até
que o protesto pareça um movimento por nada.
Por outro lado, é importante construir uma falsa
positivação, também ela vaga. Uma matéria significativa foi feita na Globo News
nesse sentido (e reprisada duas vezes): os repórteres entrevistaram pessoas
aleatórias na passeata, cada qual com uma demanda diferente e nenhuma delas
referente à finalidade concreta do ato: "saúde",
"educação", “segurança” etc.
Essa tipificação clássica e simplificadora é útil,
pois, por um lado, compartimenta a política em módulos passíveis de gestão,
excluindo a estrutura que as amarra; por outro, recusa soluções imediatas – por
exemplo, a exigência é por educação, e não pelo aumento de 17% para os
professores da rede municipal. Nesse âmbito médio, tanto a crítica sistêmica
quanto a exigência do movimento se esfumam.
Nesse tópico (abstração dos fins), cabe um
comentário: assisti aos dois blocos finais do Roda Viva, com os líderes do
Movimento Passe Livre, sua postura foi um belo antídoto contra o que estou
descrevendo: eles afirmaram que as passeatas são sim pela redução dos 0,20.
A partir dessa "migalha" foi possível a
construção de inúmeras contradições e a recomposição de questões estruturais:
dos 20 centavos ao transporte, à estrutura urbana, ao sentido do público,
chegando à matriz que, hoje, o organiza: o mercado.
Então vamos à terceira técnica no que tange aos
fins.
Como eu afirmei antes, a classificação da política
por nichos de demanda é útil por excluir a lógica estrutural subjacente.
Mas a mídia está fabricando uma amarração
artificial: a "corrupção". As palavras finais da âncora de um dos
jornais do Globo News foram mais ou menos essas: "Encerramos, então, nossa
cobertura desse dia de manifestações contra a corrupção, o superfaturamento e tudo
o que está errado no país".
A corrupção, que também é uma abstração, aparece
como fonte original de todas as mazelas e móbile principal das expressões de
descontentamento. Trata-se da falsa bandeira mais útil para a grande mídia por
uma razão ideológica: ninguém em sã consciência seria favorável à corrupção,
trata-se de uma bandeira imune ao conflito (que é o princípio da política). Mas
é útil também por ser moeda valiosa nas negociatas entre as grandes empresas de
mídia e os partidos e governos.
Por fim, a corrupção é um produto ideológico
pronto. Ela aparece como um problema moral, portanto pontual, que toca apenas o
poder público, e não tem relação alguma com o assim chamado “livre mercado”.
Também nesse ponto, o Movimento Passe Livre e sua
reivindicação precisa, são uma criação política extraordinária.
É impossível discutir o aumento das tarifas sem nos
darmos conta da origem sistêmica da corrupção: a relação, ao mesmo tempo
espúria e estrutural, entre as empresas privadas (nesse caso, de transporte) e
o poder público.
Dito isso, cabe pensar o gigantismo dos meios nos
discursos midiáticos.
O ponto central é, evidentemente, o uso ou não da
violência.
Quanto a isso, foi possível acompanharmos quatro
momentos discursivos claramente delimitados:
1. “Os manifestantes são vândalos, bárbaros,
imbecis e a polícia cumpriu muito bem o seu papel” (Marcante nesse momento foi
aquela coisa proferida por Arnaldo Jabor, que dispensa adjetivações);
2. “Há uma violência equivalente de ambos os lados,
a polícia está despreparada para lidar com esses malditos vândalos”.
3. A mudança no segundo discurso ocorreu ao vivo,
durante a transmissão do ato de quinta-feira, em São Paulo: a tarja explicativa
das imagens (não sei o nome técnico dessas tiras de engodo destilado) na Globo
News afirmava: "briga e confusão no protesto...".
Após a divulgação da notícia de que alguns
repórteres haviam sido feridos, a frase mudou: “confronto no protesto...”.
Já a fala do âncora do Cidade Alerta se tornou
esquizoide, oscilando entre posições irreconciliáveis contra e a favor da ação
da polícia, do Estado, dos manifestantes, da violência.
4. O quarto momento é (está sendo) a reorganização
desse ponto de ruptura. Os telejornais já não podem manter o primeiro ou o
segundo discursos, não apenas pela aprovação popular às manifestações, mas
porque o reacionarismo anti-manifestação, que se alastrou nos últimos anos,
apareceu em seu paradoxo de modo irrecusável: não é possível defender a
democracia e ser contra o conflito.
Visto que, de uns dias para cá, ficou inviável
associar qualquer forma de dissenso à violência (oh! Meu direito de ir e
vir...), a solução, por ora, é negar o conflito por outra via: o problema não
são as manifestações, mas o momento em que elas “descambam” graças a alguns
“elementos extremistas desgarrados”.
Esses, que passaram do total de manifestantes, no
primeiro momento, a parte do movimento, no segundo, tornaram-se uma exceção que
deve ser prontamente eliminada.
Ontem, esse argumento apareceu de modo sutil na
Globo News através de uma interminável e repetitiva entrevista a um repórter
que acompanhou os conflitos no Rio – sua visão “objetiva” dispensou o âncora de
articular a mentira de forma direta.
Já no Jornal SBT, bem menos sofisticado, a balela
era escancarada, algo como: “a imensa maioria é pacifista e apenas quer se
manifestar, os demais são aproveitadores que só querem fazer baderna; para
esses, a força policial ainda é indispensável e deve ser enérgica”.
Mais uma vez, os fins somem: uns estão lá para uma
linda terapia de massa, outros para fazer baderna.
Essa dualização ficou plasmada na transmissão ao
vivo da Record. Intencionalmente ou levados por algum tipo de automatismo
inconsciente, os editores dividiram a tela ao meio: de um lado, imagens dos
manifestantes na Av. Paulista, em um ponto no qual já não caminhavam, pois
haviam chegado a seu destino; do outro, imagens dos confrontos no Rio de
Janeiro. Naquela metade, a imagem estava clara e brilhante; na outra, a
iluminação vinha das fogueiras, tudo em volta era escuridão. A narração
confirmava a edição (lembremo-nos: edição, pois as imagens em São Paulo eram ao
vivo e as do Rio, corriam em loop): o bem e o mal, o aceitável e o inaceitável.
Através dessa simplificação é possível a
construção, não apenas de um novo discurso, mas também de uma nova pauta: o
importante é a Paz!
Os meios, então, se convertem, ainda uma vez, em
objetivo e o reacionarismo se segura como pode, rearticulando os acontecimentos
sob a chave-mestra da ideologia contemporânea: a segurança.
Outra técnica para lá de esperta, pois a mídia não
apenas desloca o conflito verdadeiro, como dá a pinta de ter matizado seu
segundo momento discursivo (e as “desculpas” do Seu Jabor se encaixam aqui); ou
seja, a noção de que há uma equivalência de forças e razões entre manifestantes
e o aparato repressivo dos estados, se mantém: os policiais ainda “apenas
reagem”.
Há ainda muito a se refletir se partirmos desse
material asqueroso que subitamente se tornou rico (para quem quer pensar, é
claro!): o retorno de uma patriotada descabida (nada como uma ideologia basilar
como a Nação para nublar o conflito); os descontentamentos específicos que
ficaram de escanteio, como os reais motivos das manifestações contra a copa (o
problema não é a corrupção, mas o fato de que os grandes eventos são, em si
mesmos, a subtração de tudo o que ainda possa haver de público); o ponto de
inflexão que foi a brutalização dos jornalistas na quinta-feira passada – e a
ideia subjacente de que há os espancáveis e os não espancáveis; o uso descarado
dos embates em torno das bandeiras partidárias nas manifestações; a fácil
apropriação do slogan “acorda Brasil”, que poderia ter sido formulado pelo
publicitário da Johnnie Walker, e por aí vai.
Mas muito ainda pode mudar tendo em vista a
despolitização, pois se há algo ilimitado é a cara-de pau de nossa mídia
monopolista, bem como o poder de urgência das ruas.
Eu acabei de escutar, no boteco aqui em frente, o
Marcelo Rezende afirmando: “eu também estou nas ruas com eles”. Para que não
esteja, e saiba que não está, vale a pena escutar quem importa. O atendente do
boteco, um motoboy e um morador de rua, que presta serviços esporádicos para o
comércio local, conversavam: “Eles estão certos, quem é pobre que sabe o que é
pagar ônibus”. “Mas tem o vandalismo...”. “Eu acho que só não tem que quebrar
comércio pequeno, se quebrar o Congresso vou achar ótimo”. “Não é vandalismo
não, que vandalismo é quando não tem porquê”.

Comentários
Postar um comentário
12