Promovidas sob a ditadura para conectar o país, as novelas brasileiras
evoluíram. Acompanhadas pelo conjunto da população, elas representam um espelho
para uma sociedade em efervescência. A transformação do gigante não pode ser
resumida pela divisa “ordem e progresso”, como mostram as recentes
manifestações de rua
por Lamia Oualalou
"Não vai ter ninguém!” A equipe da campanha de Fernando Haddad, à
época na corrida pela prefeitura de São Paulo, foi clara: a presidente Dilma
Rousseff não poderia pensar seriamente em organizar um comício para apoiar o
candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) naquela sexta, 19 de outubro,
exatamente na hora em que seria transmitido o último episódio de Avenida
Brasil, a telenovela sensação da Rede Globo. Naquela noite, dezenas de
milhões de brasileiros assistiriam ao confronto final entre as duas heroínas,
Nina e Carminha, a fim de finalmente saber quem matara Max. Convencida, a
presidente adiou o evento para o dia seguinte.
Avenida Brasil parece ter voltado a atingir as massas, marcando o retorno da
reunião da maioria das famílias diante da telinha. Um desafio quando se lembra
de que a telenovela brasileira, ou simplesmente novela, como preferem chamá-la
por aqui, celebrou seu sexagésimo aniversário em 2012.
Quando a televisão surgiu no Brasil, as soap operas norte-americanas
já tinham conquistado Cuba via Miami. E foi naturalmente para os autores da
ilha, amedrontados pela revolução, que se voltaram as redes de TV, a começar
pela pioneira, a TV Tupi. Dessa forma, O direito de nascer, lançada
em 1964, foi uma adaptação do folhetim radiofônico homônimo que inundara as
ondas da ilha caribenha em 1946. Como em Cuba, o folhetim teve um fim, enquanto
nos Estados Unidos se prolongou por décadas. Pela primeira vez, a vida parava
em São Paulo e no Rio de Janeiro por meia hora, várias vezes por semana... mas
não ao mesmo tempo. A novela ainda não era diária e a transmissão em rede não
existia: tão logo o episódio ia ao ar em São Paulo, a gravação era encaminhada
por avião ou carro para o Rio de Janeiro, então a capital do país.
Na época, as tramas eram propositadamente exóticas, como evidenciado por
títulos comoO rei dos ciganos, O sheik de Agadirou A
Ponte dos Suspiros. Em 1968, Beto Rockfellermarcou uma ruptura.
Pela primeira vez, o herói vivia em São Paulo. Ele trabalhava em uma loja de
calçados em uma rua popular da metrópole, mas fingia ser um milionário que
morava em outro endereço. Com um vocabulário do dia a dia, referências às
coisas boas e aos desafios do Brasil urbano, ainda mais visíveis pelo fato de
algumas cenas serem filmadas ao ar livre, a novela mudou de cara. “A partir
daí, ela passou a incorporar as questões sociais e políticas do Brasil,
enquanto no México ou na Argentina o tema continuava sendo os dramas
familiares”, diz Maria Immaculata Vassallo de Lopes, que coordena o Centro de
Estudos de Telenovela da Universidade de São Paulo (USP).
Em seguida, surgiu a TV Globo, que se apoderou do formato. Tanto assim
que, de acordo com Bosco Brasil, um ex-autor da rede, “quando se fala em
‘novela brasileira’, se pensa em ‘novela da Globo’”. Nascida em 1965, um ano
após o golpe militar, a rede é principalmente o resultado do gênio político de
Roberto Marinho, herdeiro de um grande jornal, O Globo, mas sem
influência nacional. Ele entendeu como era estratégico para a junta militar
alcançar a integração do território. Enquanto para Juscelino Kubitschek
(1956-1961) esta passava pela construção de uma rede de estradas, os militares,
no poder de 1964 a 1985, iriam apostar na mídia. E, nessa área, a Globo seria
uma peça central: “Do ponto de vista econômico, ela desempenhou um papel
essencial na integração de um país de dimensões continentais, por meio da
formação de um mercado consumidor. Do ponto de vista político, sua programação
levou uma mensagem nacional de otimismo ligado ao desenvolvimento, crucial para
apoiar e legitimar a hegemonia do regime autoritário”,1analisa Venício de
Lima, pesquisador de comunicação da Universidade de Brasília.
Muitos outros vindos do teatro
Com o tempo, a rede criou “um repertório comum, uma comunidade nacional
imaginária”, explica Maria Immaculata. Em 2011, 59,4 milhões de famílias, ou
seja, 96,9% do total, tinham um televisor, e cada brasileiro consumia em média
700 horas de programas da Globo a cada ano. Embora um gaúcho, mais próximo dos
argentinos em seu estilo de vida, não tenha muito a ver com um pescador da
Amazônia ou um agricultor do Nordeste, todos compartilham hoje o sonho de
conhecer o Rio de Janeiro, principal cenário dos folhetins globais, ou de
vestir a camisa branca e o cinto dourado de Carminha. A identificação é mais fácil
quanto menos nítida é a fronteira entre ficção e realidade. Quando os
brasileiros comemoram o Natal, seus heróis na telinha fazem o mesmo. O
desmoronamento, real, em janeiro de 2012 de um prédio no Rio de Janeiro foi
comentada pelos personagens da novela Fina estampa nos dias
seguintes. E quando, durante um episódio, um eleito fictício é enterrado,
políticos reais concordam em se deixar filmar ao redor do caixão.
Jovens e velhos, ricos e pobres, analfabetos e intelectuais: todos devem
poder se contemplar no espelho. De acordo com a psicanalista Maria Rita Kehl,
“essas imagens únicas que percorrem simultaneamente um país tão dividido como o
Brasil contribuem para transformá-lo em um arremedo de nação, cuja população,
unificada não enquanto ‘povo’, mas enquanto público, articula uma linguagem
segundo uma mesma sintaxe”.2
A inegável benevolência dos militares não explica por si só como a Globo
conseguiu impor essa sintaxe. Nas horas de maior audiência, a rede alcança a
proeza de transmitir produções próprias: na França, nessas faixas de horário,
com frequência são as séries norte-americanas que triunfam. “Tudo isso é
baseado em um verdadeiro talento artístico e técnico, que se concentrou na
novela”, diz Mauro Alencar, professor de Teledramaturgia Brasileira e
Latino-Americana da USP. Ao decidir fazer da novela o cerne de sua rede,
Roberto Marinho abraçou um desafio. Ironicamente, a ditadura lhe facilitou a
tarefa, posto que a censura proibia bons dramaturgos, muitos deles de esquerda,
de montar suas peças. Assim, autores como Dias Gomes, Bráulio Pedroso e Jorge
Andrade se viram trabalhando para o “doutor” Marinho e para a televisão, que
antes desprezavam.
Contra todas as probabilidades, esses grandes nomes descobriram que uma
liberdade verdadeira lhes era oferecida pelos dirigentes da rede, que
concordavam em enfrentar os censores. A Globo já tinha rodado 36 capítulos de Roque
Santeiro, de Dias Gomes, quando a novela foi proibida. Ela conheceria um
sucesso retumbante ao ser refilmada, dez anos depois, em 1985, após o advento
da democracia. Em 1996, O rei do gado, de Benedito Ruy Barbosa, foi
uma elegia à reforma agrária que deu visibilidade sem precedentes ao Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
“Já faz 35 anos que trabalho para a Globo, sou autor de dezessete
novelas e nunca ninguém me disse o que eu deveria fazer. Sempre fui totalmente
livre “, testemunha Silvio de Abreu, um dos principais autores da rede. Para
Maria Carmem Jacob de Souza Romano, professora de Comunicação da Universidade
Federal da Bahia, “os grandes autores têm um poder de barganha, é claro. Eles
dão mostras de bom senso e não podem transformar a novela em discurso social,
mas podem abordar temas que lhes são caros, se o sucesso vai ao encontro
disso”.
A partir do centro do Rio, é preciso viajar uma boa hora de carro, com
trânsito bom, para chegar ao Projac, a fábrica de sonhos montada pela Globo em
Jacarepaguá, na zona oeste da cidade. Mais de 1,65 milhão de metros quadrados,
dos quais 70% de floresta, permitem à rede concentrar, desde 1995, todas as
etapas da produção de uma novela. “Antes, as filmagens eram divididas em vários
estúdios por toda a cidade. Concentrar tudo permite uma enorme economia de
tempo e de dinheiro”, explica Iracema Paternostro, gerente de relações
públicas, mostrando uma maquete das instalações.
É preciso um carro para fazer o tour. Ali, um edifício
agrupa as equipes de pesquisa encarregadas de compilar os arquivos e os estudos
de mercado. Um pouco mais adiante, os figurinos são desenhados, costurados e
cuidadosamente conservados para serem utilizados no futuro. Em seguida,
entra-se em uma gigantesca oficina de carpintaria, na qual são elaborados os
móveis e os cenários imaginados a alguns metros dali: um salão do século XIX,
um trem do metrô – tudo em partes, para que se possa montá-los em algumas
horas, em um dos quatro estúdios de mil metros quadrados, onde as novelas são
gravadas todos os dias do ano. As peças serão, então, desmontadas e guardadas
para filmagens futuras ou destruídas para serem recicladas.
A leste do território se encontra a cidade cinematográfica, com alguns
equipamentos permanentes, como uma curiosa igreja que dispõe de uma fachada
tríplice: uma barroca, outra italiana, outra portuguesa. “Sempre precisamos de
uma igreja”, brinca Iracema, referindo-se ao casamento inevitável do episódio
final. Atrás, há pedaços de cidade que são erguidos por nove meses, a duração
média de uma novela. Como a metade da ação de Salve Jorge,
veiculada no início de 2013, se passava na Turquia, a direção de arte
reconstituiu uma pequena Istambul, observando os menores detalhes: um cartaz
rasgado, um livro caído de uma biblioteca, uma chaleira tradicional. Para
instalar esse cenário, milhares de fotos foram tiradas no local e uma batelada
de objetos típicos foi levada para o Rio de Janeiro. As equipes também filmaram
horas do cotidiano do lugar, os vendedores de rua, o fluxo dos carros. Durante
a montagem, as imagens, sempre panorâmicas, eram encaixadas nas cenas filmadas
na cidade cinematográfica. A ilusão funciona perfeitamente. E o processo não é
usado apenas para destinos distantes: ao lado da pequena Istambul, há um
labirinto de ruas recriado em 1.800 metros quadrados do Complexo do Alemão, uma
das maiores favelas do Rio de Janeiro. Também nesse caso acreditamos estar no
lugar real. A Globo chegou a contratar Adriana Souza, uma vendedora de empadas,
para vender seus produtos no cenário de papelão, como faz na favela.
Tocar todas as classes sociais
O segredo do sucesso da Globo é sua capacidade de industrializar todas
as fases da criação, para conseguir transmitir todos os dias pelo menos três
novelas, cada uma com algo entre 140 e 180 episódios de quarenta minutos,
durante seis a nove meses. Para cada horário, sua atmosfera, segundo um modelo
não modificado desde 1968: a novela das 18 horas aborda um tema leve; a das 19
horas é com frequência cômica; as questões sociais e os dramas ficam reservados
para a das 21 horas, o horário nobre. Quanto à história, ela muitas vezes
retoma as receitas típicas do melodrama, girando em torno da questão da
família, da identidade – ignorada ou usurpada, levando à procura do pai ou da
mãe – e da vingança.
Produzir uma novela custa caro: cerca de US$ 200 mil por episódio, de
acordo com estimativas de Maria Immaculata. “Uma forte tendência nos últimos
anos é o remakedos grandes sucessos do passado”, explica Nilson
Xavier, autor do Almanaque da telenovela brasileira (Panda
Books, 2007). “Uma escolha idiota” aos olhos de Gilberto Braga, um dos mais
cortejados autores da Globo. Para ele, “não há uma receita que funcione todas
as vezes”.
Quando sua proposta é aprovada, o autor envolve um punhado de auxiliares
que escrevem uma parte dos diálogos e das cenas num ritmo frenético. Cerca de
trinta episódios são gravados antes do lançamento. Desde os primeiros dias de
exibição, a reação do público é cuidadosamente auscultada, seja por meio de
pesquisas, seja em redes sociais. “A novela é uma obra aberta”, explica Flavio
Rocha, um dos diretores da Globo. “Um casal pode parecer pouco convincente aos
olhos do público e, eventualmente, desaparecer, enquanto um personagem
secundário pode tornar-se central, se alcançar mais sucesso. O autor se
adapta.”
O discurso sobre a “obra aberta” é um mito cultivado pela Globo. Porque,
antes de deixar sua imaginação divagar, os autores são convidados a pensar nos
custos de produção: idealmente, as cenas que vão acontecer em uma sala devem
ser escritas com antecedência, para serem filmadas em sequência, antes da destruição
do cenário e de sua substituição por outro no estúdio. Os atores encadeiam
assim durante uma mesma tarde a gravação de cenas dos episódios 8, 22, 24 e 42.
Somente aqueles que estão acostumados a esse tipo de filmagem conseguem se
encontrar na trama.
Trabalhar com uma estrela é um quebra-cabeça para o autor: alguns atores
fazem constar no contrato que só irão ao Projac às terças e quintas ou exigem
uma fortuna para reformular sua programação. Eles também querem concentrar suas
cenas em um mesmo dia. “É por essa razão, por exemplo, que os principais
personagens nunca se divorciam: isso poderia forçá-los a deixar sua casa, que
constitui o cenário principal, e a gravar em uma infinidade de outros”,
diverte-se um autor sob o manto do anonimato. O texto deve ser simples e
bastante repetitivo para que o espectador possa se reconectar com a história
depois de perder alguns episódios. Mas os personagens não são menos complexos,
e a narrativa – que muitas vezes remete a um rico patrimônio literário – é suficientemente
sofisticada para assombrar a sociedade por anos após sua transmissão.
Também é necessário atingir todas as classes sociais: “É o imperativo da
novela, como também o do jornal televisivo da Globo. E, no entanto, escrever
para todos é aparentemente um contrassenso. Raros são os que conseguem isso”,
ressalta Bosco Brasil. Ser autor de novela não é para qualquer um: “Entre 1989
e 2004, 25 novelas foram veiculadas no horário nobre, e elas foram assinadas
por apenas seis autores, alternadamente”, confirma Maria Carmem. O salário dos
membros desse clubinho ultrapassa muitas vezes os R$ 250 mil por mês.
Uma fortuna para alguns, mas uma soma insignificante diante do que se
ganha com esse produto artístico e comercial. Estima-se que uma publicidade de
trinta segundos durante a novela no horário nobre custe em torno de R$ 350 mil.
Mas, para o último capítulo deAvenida Brasil, o preço dobrou. Naquela
noite, o episódio durou setenta minutos, quase duas horas, levando em conta os
comerciais. Entre os anunciantes nacionais e regionais, quinhentos espaços
foram vendidos.
O espelho da modernidade funciona ainda melhor quando incorpora um
discurso pedagógico sobre as principais causas apoiadas pela rede e por seus
autores. Estudos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)3 estimam que as
novelas desempenharam um papel importante na redução significativa do número de
nascimentos – a taxa de fertilidade caiu 60% desde os anos 1970 – e na
quintuplicação dos divórcios.4 A leucemia de
Camila, personagem de Laços de família, exibida em 2000, causou uma
explosão de doação de órgãos. “Algumas novelas também têm contribuído
grandemente para a aceitação da homossexualidade”, acrescenta Silvio de Abreu,
lembrando que a Globo dispõe de um departamento encarregado de sugerir temas de
sociedade.
Muitas vezes politicamente correto, esse “merchandisingsocial” é
uma marca comercial da novela brasileira e, sem dúvida, contribui para promover
o debate na sociedade. Para a Globo, o maior conglomerado midiático da América
Latina, controlado unicamente pela família Marinho, “é também uma forma de
oferecer uma boa imagem, a de uma rede privada preocupada com uma missão de
serviço público”, estima Maria Carmem. Por sua vez, Mauro Alencar confia que o
velho lema da Globo, “A gente se vê por aqui”, e o atual, “A gente se liga em
você”, “não são apenas sloganspublicitários: eles demonstram a
intensa relação de identificação do público e o interesse da rede pelos grandes
temas nacionais”.
Manter essa relação não é simples. Por um lado, porque, se a Globo
continua sendo a rainha indiscutível da novela, com as outras redes
simplesmente copiando seu modelo de produção, sem ter os meios para colocá-lo
em prática, ela sofre hoje em dia com a concorrência da internet e o
desinteresse de alguns jovens. Até os anos 1970, as pontuações médias da
audiência de novelas com frequência ultrapassavam os 60%, quando não chegavam
aos 80%. Hoje, captar o interesse de 40% dos lares representa um sucesso. Em
2012, a audiência total da Globo atingiu o nível mais baixo da história, com
uma queda de 10%5 – que, certamente, atingiu todas as redes. “O problema é que
assistimos à novela no computador, no telefone, e ainda não temos nenhum
instrumento de medição para essas mídias”, argumenta Mauro Alencar.
Na verdade, contra todas as expectativas, a queda da audiência não
implica redução de benefícios: as novelas rendem mais do que nunca. Nas
agências de publicidade, reconhece-se que isso é em parte o resultado de certa
inércia. Tal como acontece na imprensa escrita, é mais fácil levar os
anunciantes a concentrar seu orçamento em alguns títulos, sem prestar atenção
em seu menor impacto. E essa ilusão é alimentada pelo fato de que a novela tem
contaminado todas as áreas: dezenas de revistas são dedicadas a ela, as redes sociais
mantêm o suspense, para não mencionar os especialistas de todo tipo convidados
a falar sobre o fenômeno em outros programas da rede, mas também nas colunas do
jornal O Globo, bem como nas rádios e em outros canais ligados ao
grupo, uma sinergia pouco estudada nas universidades. “Cada vez mais falamos e
ouvimos falar da novela, sem necessariamente assistir a ela”, constata Bosco
Brasil.
Especialmente porque a sociedade brasileira mudou dramaticamente ao
longo dos últimos dez anos, com a saída da pobreza de cerca de 50 milhões de
pessoas, alçadas ao mercado de consumo de massa, e uma redução significativa
das desigualdades. “São famílias cujo poder aquisitivo aumentou
consideravelmente. Torna-se mais interessante investir em publicidade ou ações
de merchandising”, ressalta Mauro Alencar.
Empregadas domésticas como heroínas
Essa é também uma das razões do enorme sucesso de Avenida Brasil,
que deve seu nome à via rápida que liga os subúrbios do norte à zona sul do Rio
de Janeiro, rica e turística. Não foi tanto o enredo – uma jovem criada em um
aterro municipal pretende se vingar por ter sido abandonada por sua madrasta,
que se tornara rica – que se mostrou decisivo, e sim o surgimento de um novo
tipo de protagonista. As tradicionais cenas nas praias de Ipanema ou de
Copacabana e nos bairros mais exclusivos do Rio de Janeiro foram substituídas
por um mergulho em um bairro fictício, Divino, típico da classe média baixa da
zona norte da cidade. Essa não é a primeira vez que os pobres estão
representados; mas, em geral, seu único sonho, que se realizava no happy
end, era conseguir acesso ao Rio rico e ilustre. Não em Avenida
Brasil: Tufão, o herói, transformado em milionário graças ao futebol,
permanece no bairro de sua infância. Ali, as pessoas falam alto e não sabem
usar os talheres corretamente, mas ele gosta. Sucesso enorme junto ao que o
governo tenta descrever como uma “classe média emergente” (mas que continua
sendo mais um “segmento pobre” da população ativa),6 que se vê
representada pela primeira vez como próxima dos mais ricos, que têm assim
acesso a um mundo desconhecido.
Esse coquetel de orgulho em uns e de curiosidade em outros também
explica o sucesso de Cheias de charme(2012), cujas heroínas são
três empregadas domésticas: algo nunca visto. “Até então, era um personagem
secundário e muitas vezes caricatural: a empregada que se mete em tudo na vida
da patroa, sem existência própria”, diz Nilson Xavier. Entre o aumento do salário
mínimo, que passou R$ 200 a R$ 678 entre 2002 e 2013, e o aumento do nível de
ensino – a proporção de jovens de 19 anos que foram escolarizados por pelo
menos onze anos aumentou de 25,7% em 2001 para 45% em 2011 –, o equilíbrio de
forças começou a mudar na sociedade, levando os autores, Filipe Miguez e Izabel
de Oliveira, a imaginar esse cenário. “Antes, a empregada aparecia somente em
sua função. Decidimos segui-la em sua vida, em sua casa, na rua, em seus
sonhos”, conta Miguez. Mais uma vez, o sucesso foi ter conseguido não mexer com
os mais ricos, de ideias bem pouco progressistas, como observado pelo autor:
“Fizemos uma pesquisa que colocava perguntas como: ‘Você acha certo que uma
empregada suba no mesmo elevador que você?’, e a maioria respondeu que não. É
esquizofrênico: como ela é a empregada, não pode usar seu elevador ou seu
banheiro, mas pode cuidar de seu filho!”.
Nos escritórios do Projac são muitos a se debruçar sobre as mudanças
econômicas e tecnológicas que sacodem o país, e Silvio de Abreu dá uma de
filósofo: “Eu não tenho bola de cristal para prever o futuro da novela, mas uma
história bem escrita sempre vai fascinar o público. Tanto faz que ela seja
vista no ônibus, na internet, em um telefone, para mim nada vai mudar: eu vou
sempre me levantar às 7 da manhã e escrever até a meia-noite, para produzir um
capítulo por dia”.
Lamia Oualalou
Jornalista
Ilustração: Daniel Kondo
1 Venício de Lima, Mídia.
Teoria e política, Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2001.
2 Alcir Henrique da Costa, Maria Rita Kehl e Inimá Ferreira Simões, Um país no
ar, Brasiliense, São Paulo, 1986.
3 Eliana La Ferrara, Alberto Chong e Suzanne Duryea, “Soap operas and
fertility: evidence from Brazil” [Novelas e fertilidade: evidências do Brasil],
Banco Interamericano de Desenvolvimento, Washington, 2008.
4 Alberto Chong e Eliana La Ferrara, “Television and divorce: evidence from
Brazilian novelas” [Televisão e divórcio: evidências de novelas brasileiras],
Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2009.
5 “Globo fecha 2012 com pior ibope da história”, Midianews, 3 jan. 2013.
Disponível em: .
6 Marcio Pochmann, Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social
brasileira, Boitempo, São Paulo, 2012.
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