Sede de que justiça, Safatle? Ato falho

Antônio David, especial para o Viomundo 
Em seu mais recente artigo para a Folha de S. Paulo (24/09), Vladimir Safatle aborda o julgamento da Ação Penal 470 (“mensalão”) pelo STF. O mote do artigo reside na recente decisão tomada pela suprema corte, quando decidiu abrir a possibilidade de um segundo julgamento. Safatle lamenta a decisão.
Penso que Safatle deixa de lado em seu artigo algumas questões que são não apenas importantes para a justa compreensão do caso, mas que antecedem quaisquer afirmações sobre a decisão do STF e sobre o chamado “escândalo do mensalão”, de uma forma geral. Em primeiro lugar, em relação à recente decisão do STF: o duplo grau de jurisdição não deveria ser respeitado? Há justiça sem o direito a um duplo julgamento? Em segundo lugar, sobre o escândalo, a acusação e o julgamento de uma forma geral: o mensalão de fato existiu? Houve de fato compra de apoio parlamentar, tal como sustenta a acusação?
Não é difícil notar que se tratam de duas questões cuja resposta direciona o debate. Se a resposta for “sim”, o debate vai para um lado; se a resposta for “não”, vai para outro lado.

Como Safatle lida com tais questões? Não lida. O ponto é que Safatle as ignora. Simplesmente ignora. Na teia argumentativa de Safatle, é como se essas questões não existissem, como se não fosse necessário pensar sobre elas. Se ele as tivesse levado em conta, talvez o artigo teria tomado um outro rumo. Talvez um rumo inverso. Mas ele não o fez.
É provável que Safatle tenha partido do pressuposto de que o duplo grau de jurisdição não é tão importante, e de que, a despeito da carência de provas, o mensalão de fato existiu, ou seja, houve compra de apoio parlamentar. Se assim for, que fique claro: estaríamos diante de pressupostos. Não foram vocalizados, muito menos justificados.
Dito isso, a partir das afirmações contidas no artigo, gostaria de pontuar outras questões, que penso terem sido igualmente ignoradas por Safatle em seu raciocínio:
1) “A reação popular a isso foi mínima, o que parece demonstrar um descolamento entre o interesse popular e os desdobramentos do julgamento. Há de perguntar a razão”.
Qual é a razão? (Safatle não oferece respostas).
2) “Talvez fosse o caso aqui de lembrar que o resultado do julgamento foi inicialmente saudado como capaz de elevar o patamar jurídico de luta contra a corrupção”.
Saudado por quem? Considerando que a sociedade brasileira é profundamente desigual e de que o escândalo do “mensalão”, do qual o julgamento faz parte, foi claramente instrumentalizado no contexto das tensões e conflitos de classe existentes em nosso país, cabe perguntar: saudado por que classes ou frações de classe? E por quê? Com que interesses?
3) “Alguns acreditaram que, a partir dele, abria-se uma jurisprudência capaz de facilitar a criminalização de práticas cotidianas de assalto ao bem público. No entanto nada disso aconteceu”.
De que práticas cotidianas Safatle faz menção? O “assalto ao bem público” restringe-se a desvio de verbas públicas para pagamento de propina a parlamentares, ou envolve um sem número de outras práticas, muitas das quais consideradas lícitas? – como, por exemplo, o financiamento privado de campanha, ou os privilégios dos magistrados brasileiros, o fato de a classe média poder debitar do IR gastos com escolas particulares, ou o fato de os parlamentares disporem de um grande número de assessores e vultosa verba de gabinete, etc.
4) “Depois de julgada a fatia do escândalo envolvendo membros do governo e do Partido dos Trabalhadores (PT), era de esperar que a nossa suprema corte se voltasse com sede de justiça à outra ponta do problema, envolvendo os membros do PSDB e seus consorciados”.
Se a corrupção no Brasil é sistêmica e estrutural, se tem por base em última instância a abissal desigualdade econômica e social existente em nossa sociedade, o que pode a suposta “sede de justiça”? Como esperar “sede de justiça” do mesmo tribunal que validou a Lei da Anistia? Não está aqui uma atitude tão ingênua e moralista quanto constatar que o problema do Brasil é a “falta de vontade política”? E se, numa situação hipotética, a elite brasileira realmente tivesse “sede de justiça”, contra quem essa “sede” seria dirigida? Não poderia voltar-se contra tudo e todos que ousam questionar e lutar? Não poderia voltar-se inclusive contra ele próprio, Vladimir Safatle? Acaso não reside numa certa “sede de justiça” a militarização da sociedade? Acaso não reside numa certa “sede de justiça” propostas como a redução da maioridade penal e a pena de morte? Antes, a expressão “sede de justiça” não seria uma contradição em termos?
5) “Esta seria uma bela maneira de mostrar que os juízes não estavam agindo motivados pela mera felicidade de se transformarem em celebridades midiáticas, mas por um desejo imparcial e apartidário de justiça. Ao que parece, eis aí um ledo engano. Senão como explicar a lentidão inacreditável e a peculiar discrição que marcam o julgamento do outro lado do escândalo (alguém realmente lembra dele)?”.
Não haveria nenhuma outra motivação possível além das duas cogitadas por Safatle (a “felicidade de se transformarem em celebridades midiáticas” e o “desejo imparcial e apartidário de justiça”)? Compromissos ideológicos e políticos não poderiam ser motivações a orientar a conduta dos magistrados? Poderíamos esperar um “desejo impessoal e apartidário de justiça” no julgamento de uma Ação Penal que nasceu justamente de um desejo pessoal e partidário de combater um partido e um governo? Como nasce um desejo dessa natureza, um “desejo impessoal e apartidário de justiça”?
6) “Na verdade, quem mais ganharia com um desfecho completo do problema do mensalão seria uma esquerda brasileira renovada. Pois ela conseguiria se livrar da chantagem dos que procuraram transformar toda tentativa de julgar os erros e a corrupção de certos grupos governistas em luta ideológica”.
“Erros”?! O STF está julgando “erros”, em abstrato, ou determinados crimes? Ao falar em abstrato de “erros”, Safatle está se referindo a que exatamente? Caixa 2 – como sustenta a defensa? Ou compra de votos – como sustenta o Ministério Público Federal? Há provas de que houve compra de votos? Se não há provas, não estamos afinal assistindo a uma verdadeira luta ideológica? Há alguma chantagem na constatação de que não há provas, ou a chantagem está exatamente em instrumentalizar um julgamento para atacar adversários políticos, ignorando solenemente o fato de que estes estão sendo condenados não por “erros”, mas por crimes para os quais não há provas? Aplaudir um julgamento que condenou ex-dirigentes do PT e ex-membros do governo por formação de quadrilha e compra de votos, sem que houvesse provas de que houve compra de votos, não é exatamente tomar parte na luta ideológica?
7) “Ela também poderia ver selado o reconhecimento de que os dois maiores consórcios de poder dos últimos 20 anos tinham se afundado nas mesmas práticas, o que colocaria de maneira mais evidente a necessidade urgente de rever os impasses reais que corroem a carcomida política brasileira. Entretanto, mais uma vez, nada disso aconteceu”.
Quais práticas, exatamente? Todas as práticas são “as mesmas”? Absolutamente tudo? Quais são os “impasses reais” e como exatamente o “reconhecimento” de que PT e PSDB “[afundaram-se] nas mesmas práticas colocaria de maneira mais evidente” a “necessidade de rever” tais impasses?  E colocaria para quem? Para todos? Para os trabalhadores tanto quanto para a classe média?
8) “Que ao menos fique a lição de que nenhuma nova invenção democrática neste país será possível sem um processo amplo, geral e irrestrito de combate à corrupção, no qual o último mensaleiro petista será, enfim, enforcado nas tripas do último mensaleiro tucano”.
Nenhuma nova invenção democrática será possível sem que o STF julgue e condene em definitivo os acusados? Não houve nenhuma nova invenção democrática nos governos Lula e Dilma? Nenhuma? E por que usar a palavra “mensaleiro”? Será que essa palavra não surgiu exatamente para estigmatizar o partido e o governo que, com todas as limitações e contradições, levaram a cabo exatamente esforços de invensão democrática?
Por fim, se o objetivo é promover uma nova invensão democrática e o combate à corrupção, o caminho é o da estigmatização (“mensaleiro petista”), tal como fazem certos articulistas da imprensa brasileira, conhecidos exatamente pelo grau da vulgaridade e reacionarismo de seus comentários?
Sem dúvida o PT e membros do governo cometeram e têm cometido erros, muitos erros, e erros muito graves. Mas os erros são políticos e devem ser julgados politicamente: pelo povo, nas ruas e nas urnas; pelos filiados do PT, nas instâncias do partido; pela esquerda e pelos intelectuais, através dos meios de que dispõem. Ao STF, não cabe julgar erros, mas crimes, devidamente tipificados e comprovados sob rígido processo, na base do amplo direito de defesa.
Ora, ao constatar que o STF está na verdade “julgando erros”, não estaria Safatle como que confessando tratar-se não de um julgamento técnico, mas exatamente de um evento midiático? Vou além: se um intelectual de esquerda vê o STF “julgando erros” e aplaude, quando na verdade é a própria esquerda que deveria julgar os erros do PT e do governo, não estaria a esquerda terceirizando para o judiciário uma tarefa que ela, esquerda, deveria fazer? Ao aplaudir o STF “julgando erros” do PT e do governo, não estaria a esquerda como que assinando um atestado de incompetência? O emprego, por Safatle, da expressão “julgando erros” soa como um ato falho.
Caberia ainda indagar: ao tomar parte no debate dessa maneira – negando aos acusados um direito fundamental, a saber, o duplo grau de jurisdição, negando aos acusados a presunção da inocência, ignorando o fato de a acusação e o julgamento terem sido montados com base numa esdrúxula interpretação da “Teoria do Domínio do Fato” e de que não há provas contra os acusados, valendo-se de estigmas (“mensaleiro”) e de frases de efeito que mais servem para massagear o ego de personalidades autoritárias do que em promover a justiça (“/…/ no qual o último mensaleiro petista será, enfim, enforcado nas tripas do último mensaleiro tucano”) -, enfim, ao construir seu argumento dessa maneira, não estaria ele, Safatle, dando uma pequena contribuição para a transformação de um julgamento, que deveria ser técnico, em um evento midiático? – o exato oposto do que ele, Safatle, supostamente almeja.
Ou, de outro modo, se a preocupação de Safatle é a promoção de uma “esquerda renovada”, cabe indagar: o escândalo do mensalão, do qual o julgamento faz parte, com seus casuísmos e estigmas, tende a fortalecer uma esquerda renovada ou, na verdade, uma direita renovada?
Antônio David é pós-graduando em filosofia na USP e mantém uma página no Facebook para divulgação de pesquisas e análises sobre o Brasil.

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