Flávio Ricardo Vassoler
Carta Maior
Os leitores sabemos que o tempo da leitura se aparta do
quantum arregimentado pelo relógio. Quando Fiódor Dostoiévski (1821-1881) me
leva à Sevilha inquisitorial do século XVI, as paredes do meu apartamento
parecem se esgueirar por entre as nódoas da masmorra que narra o encontro do
Grande Inquisidor com Jesus Cristo. O clérigo empareda o Messias e o desafia a
trazer uma Boa Nova para além da irracionalidade do mistério que já não
consegue dialogar com a modernidade. E mais: o ateu Ivan Karamázov, irmão do monge
Aliócha que não perde um balbucio sequer, faz o inquisidor de seu poema
apreender a síntese da história humana a partir das três tentações de Cristo no
deserto.
Quantas vezes deitei Os Irmãos Karamázov sobre o peito para
que a imaginação, as reflexões, as dúvidas e os conceitos se entrechocassem?
Quem ousaria me dizer que a leitura durou precisamente 3 horas? Ora, a
indústria cultural.
Os escritores sabemos que o tempo da criação deveria se
apartar do quantum contabilizado pelo relógio. Os escritores comerciais não
apenas o sabem – eles antecipam o cálculo: há relatos de escrevinhadores que
utilizam metrônomos para industrializar o número de palavras por minuto. Tantos
parágrafos por hora, tantas páginas por dia. Que diria Honoré de Balzac (1799-1850)
de tal premência? Antes de engasgar com o enésimo gole de café que só fazia
incitar sua úlcera, Balzac se mostraria compreensivo – ou quiçá condescendente
– com o escriba que narra a chicotadas. Afinal, o autor de As Ilusões Perdidas
não varava madrugadas a fio para conseguir completar A Comédia Humana? (Mote
para um futuro ensaio: a cafeína como motor da ironia insone de Balzac.)
Consta, no entanto, que Balzac chegava a revisar cada uma de
suas páginas mais de 40 vezes. (Minha memória volta à casa do escritor, no
subúrbio de Paris, e me vejo diante de uma exposição que apresenta algumas
tentativas de reconstrução do que seriam as páginas originais de Balzac à luz –
e às sombras – das sucessivas camadas de revisão.)
Caro leitor, cara leitora, bem-vindos a Masterpiece
(Obra-prima), o mais novo reality show literário da TV italiana. Consta que o
canal RAI 3 acaba de enclausurar protoescritores em uma casa – sim,
protoescritores, pois um escritor apenas se descobre como tal após percorrer o
corredor polonês editorial, não é mesmo? Quanto às centenas de rascunhos,
estrofes, micro e macrocontos, (esboços de) novelas e romances, ora, que a
gaveta de outrora e as pastas do desktop de hoje arquivem o anonimato que não
gerará dividendos. O vencedor da disputa será laureado com um grande contrato
de publicação. 100 mil exemplares; para a Itália, uma tiragem inicial de 10 mil
exemplares já desponta como um número expressivo.
Este escritor brasileiro sente a ironia se voltar contra si
mesma – algo como o alívio demasiado humano do escorpião que, rodeado pelo
fogo, encrava o ferrão venenoso contra a própria (in)consciência. A não ser que
apresente atestado de antecedentes e/ou pedigree de um clã legítimo, um
escritor brasileiro que está publicando a primeira (e a segunda e a terceira)
obra dificilmente alcançará a tiragem de 10 mil exemplares. Chico Buarque
consegue transferir seu capital musical para as tiragens de seus livros que
chegam a cinco zeros à direita. Associação nada gratuita: quantas vezes você já
ouviu falar de um escritor laureado com um livro de platina? Mas, muito
provavelmente, você já ouviu algum disco de ouro, não?
Um reality show literário não faria o menor sentido no
Brasil. A não ser que Paulo Coelho fosse o âncora. (O leitor e a leitora teriam
preferido a versão feminina do substantivo que encerrou a frase anterior.)
Astutos roteiristas buscariam [e (re)produziriam] as listas dos livros mais
vendidos para tipificar os gêneros de maior interesse. As sagas, os livros de
autoajuda e as novas versões gospel duelariam com a telenovela em versão
e-book. Todos com letras graúdas, espaçamento entrelinhas geometricamente
calculado – é preciso encontrar o tamanho padrão da linha e de seu intervalo
para manter, ainda que de forma tênue, a concentração do leitor facultativo;
parágrafos, frases e ideias curtas; capa atraente – a mercadoria seduz pelo
invólucro supostamente outro, já que o novo é a reiteração do padrão do jingle
de sucesso que sentencia que toda a complexidade do universo cabe em um grão de
areia (e em não mais do que 200 páginas). A inteligência, no Brasil,
transforma-se em um setor da divisão do trabalho – a academia. Daí a
hostilidade recíproca entre, de um lado, o jornalismo editorial e, de outro, a
academia canônica. (Os intercursos entre as duas esferas pediriam um ensaio
outro.)
Espraiado pelas diversas mídias, o jornalismo tende a
(des)legitimar o imprimatur das editoras – precisaríamos perguntar quem e quais
são os patrocinadores dos cadernos culturais. “A linguagem precisa ser
dinâmica, ninguém tem tempo a perder” – assim os internautas (re)produzem o
discurso coisificado que condiciona a brevidade dos textos – e de suas
reflexões – a um padrão exterior que não diz respeito ao encadeamento dos
argumentos. Coesão e coerência tornam-se elitismos custosos para a indústria
cultural que pretende democratizar a informação e a deformação. A academia, por
sua vez, em grande medida orbita em função de seus cânones e tende a proscrever
a contemporaneidade. Não há presunção de inocência: diante de Dostoiévski e
Balzac, o jovem autor é culpado até que se prove o contrário. Os textos
acadêmicos apontam para a linguagem esotérica dos especialistas – enquanto
isso, o exoterismo da indústria nos revela o “x” da questão para a democracia
de massas. (Ainda que os sites de busca
multipliquem o alcance dos dicionários aos internautas, é preciso comprimir o
vocabulário de modo que seja proibitivo fazer uma cessão a alguma seção mais
específica, dada a onipresença da sessão da tarde.)
Os protoescritores do reality show literário escrevem em um
teclado. As palavras são projetadas em um telão enquanto os
jurados/especialistas – e os espectadores – assistem à exaustão do tempo.
(Sabemos, então, que não apenas a contagem é regressiva.) “Aos censores, que as
fábricas de filmes mantêm voluntariamente por medo de acarretar no final um
aumento dos custos, correspondem instâncias análogas em todas as áreas. O
processo a que se submete um texto literário, se não na previsão automática de
seu produtor, pelo menos pelo corpo de leitores, editores, redatores e
ghost-writers dentro e fora do escritório da editora, é muito mais minucioso
que qualquer censura. Tornar inteiramente supérfluas suas funções parece ser,
apesar de todas as reformas benéficas, a ambição do sistema educacional”.
(Theodor Adorno e Max Horkheimer. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1985, pp. 12-13.) (Motes para futuros ensaios: a Gestapo, o
NKVD, a KGB, a CIA, o Mossad e o DOPS como peças de museu; a imaginação como
censura prévia; Josef K., o protagonista de Kafka, já não precisa temer os
algozes, uma vez que O Processo subscreve a liberdade condicional; o
ressentimento das massas diante da hierarquia artística – “elitismo, elitismo!”
– para que a hierarquia das classes permaneça e se (re)produza – afinal, é
preciso aparar as arestas para que o escoamento dos bens culturais tenha mais
liquidez entre os diferentes e escalonados nichos de mercado que tanto mais
peculiares se tornam quanto mais se parecem entre si.)
O pensamento que não se apresentar desnudo; o pensamento que
não revelar de pronto e de todo suas mediações e recalcitrâncias; o pensamento
que ousar hesitar; o pensamento que se quiser contraditório para acompanhar o
real (a heresia); o pensamento que esboça, o ensaio – o pensamento que reflete
a contrapelo de si mesmo: eis o que já não é preciso proscrever; eis o que está
proscrito a priori.
Entrevendo um esguio potencial de disseminação literária no
reality show italiano – “que outra oportunidade teremos para falar de
literatura em horário nobre?” –, o leitor e a leitora poderiam me perguntar:
− Ora, se lhe fosse feito o convite, você não participaria
de Masterpiece?
Como o escritor costuma pensar narrativamente, tentarei
responder ao leitor e à leitora por meio de uma anedota. [Àqueles e àquelas que
se mostrarem contrafeitos – “eis uma tática para fugir da e para insuflar a
contradição!” –, peço-lhes que busquem o Serviço de Atendimento ao Consumidor
(SAC) da RAI 3, o canal italiano em questão, para que possam protocolar uma
queixa-crime.]
Consta que Ludwig van Beethoven (1770-1827) teria
arremessado os romances do escocês Walter Scott (1771-1832) contra a parede.
“Ora, mas esse senhor só escreve por dinheiro!” Súbito, toques à porta do
apartamento vienense do compositor – o mesmo apartamento que hoje abriga sua
máscara mortuária e que se tornou um de seus museus. Os toques persistem –
mesmo a surdez progressiva de Beethoven não consegue ignorá-los. “Macacos me
mordam! Mas que diabo será a essa hora?!” Trata-se do agente das sonatas de
Beethoven. O compositor faz uma concha com a mão direita
para aprumar o ouvido:
− O quê?! Como!? Quanto você quer oferecer por minhas
sonatas? Quanto?!
Consta que Beethoven teria arremessado o agente de suas
sonatas contra a parede – o intermediário teria caído ao lado dos romances de
Sir Walter Scott.
Para Diogo Moreira
Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor
universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada
pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e
organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora
Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, o Espaço
Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos
com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para
assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z:
www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Portal Heráclito,
www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memórias,
www.subsolodasmemorias.blogspot.com, páginas em que posta fragmentos de seus textos
literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Créditos da foto: Arquivo
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