domingo, 26 de janeiro de 2014

Brasília, cidade desapaixonada

Camilla Shinoda
http://redecandanga.com.br/

Tiradentes teve lá a sua razão: interiorizar é preciso. Niemeyer teve lá a sua: viver não é preciso.  Ao primeiro importava a conjura, ao segundo bastava a arquitetura. São minhas, as percepções. Figuras poéticas à parte, a realidade: sobram paisagens nesse interior urbano, mas faltam paixões que as cumulem de vida. Lúcio e Oscar inventaram o vazio, coube a nós preencher seus espaços. Mas, afinal, o que se deu que, em meio século, não conseguimos humanizar a Capital?

Brasília é o rebento da conjuração mineira no berço da modernidade. Quando em 1788, o Alferes Joaquim José da Silva Xavier apaixonou-se pela idéia da interiorização da capital, o primeiro prego simbólico foi martelado e uma viga de paixão atravessou o país. Os inconfidentes, um a um, se fizeram confessos nos Autos de Devassa em favor da transferência, e a capital se mudaria do Rio de Janeiro para o interior. Do mar para o mato. Da praia para o prado. Do burburinho sensual para a solidão bucólica.


Mas foi preciso esperar mais um tanto. A decisão por si só não bastava, tampouco bastava ter sido inserida no Artigo 3º da Constituição Federal de 1891. Importava antes, encontrar as condições ideais de topografia, clima, hidrologia, geologia, fauna, flora, pedologia, recursos minerais e materiais de construção. E para desbravar essas terras em busca de tais condições, mais de cem anos depois da paixão do Alferes, foi nomeado o homem que entendia dos céus. Com a missão, o astrônomo belga Luiz Cruls.

Uma vez demarcado o quadrilátero e, dentro deste, a localização ideal para a construção da cidade, ressoou a voz: “Os nativos que se retirem!”. Eis os primeiros retirantes abrindo espaço aos bandeirantes. O Projeto Plano Piloto aportou no Planalto com força de máquina, de trator, de escavadeira, derramando cimento e piche sobre os ancestrais do cerrado, apagando a estória antiga e seus mitos. Começava a estória futurista. Quanto aos nativos, quase não se tem notícias mais. Ou será que alguém dará conta dos índios e seus vizinhos que, num passado recentíssimo, habitavam felizes essas paragens, com cirandas e violas em torno da fogueira?

Quando o conterrâneo de Tiradentes botou as botas no cerrado e a boca no trombone do rádio para anunciar emprego fácil no Planalto Central, não faltaram os candidatos. A mão-de-obra farta que desceu dos paus-de-arara viabilizou o projeto idealista de Juscelino Kubitschek. Os braços trabalharam, os ombros carregaram, os pés da esperança reviraram o barro vermelho. Os mortos, é sabido, foram soterrados. Felizes dos que sorveram do mel da cidade durante a sua feitura, porque depois de pronta, ressoou a voz: “Os trabalhadores que se retirem!” Ah, mas quanta ingratidão! Pois então, foi para isso que se chamou o braço forte? Para que depois partisse da festa para o entorno, sem morder o bolo, depois de meses comendo poeira e dormindo sob tapume e lona na Cidade Livre? Assim, o avesso da antiga assertiva coube bem ao caso: os primeiros serão os últimos. E foram.

E no rastro das primeiras injustiças, o seu séquito: o descaso, o desrespeito, o desvio do patrimônio público. A corrupção. A capital conseguiu ser exemplo de planejamento, ser modelo de organização, ser moderna na arquitetura, mas não conseguiu ver-se livre do fardo da corrupção, desse vírus que se transmuta, se recria e se fortalece para, enfim, se imiscuir nos organismos mais puros. E como a Capital nunca esteve imune aos seus ataques, eis que ressoa a voz: “Os incorruptíveis que se retirem!”. Afinal, quantas sacas disso ou daquilo, quantos quilos desse ou daquele, quantos parafusos, quantos caminhões de terra bastavam para erguer este império em forma de ilha? A metade, certamente. Mas, os fornecedores do governo não poderiam construir a cidade sem superestimar seus produtos e serviços, do mesmo modo que hoje, os institutos e agências de fiscalização, oficiais e oficiosos, não conseguem sobreviver sem superestimar seus feitos, haja vista os excessos de cobranças e taxas, os abusos de multas que imputam aos contribuintes mais fiéis ao governo. Maldita herança dos empreiteiros do progresso!

Com a cidade inaugurada, revelaram-se suas larguezas, suas distâncias. Suas calçadas a perder de vista. Suas vias sem fim. Seu tédio. Suas torpezas. Num tempo sem conexões virtuais e redes sociais, só o grito comunicava, só o vento carreava o beijo, só o tempo resolvia o abraço que o pensamento inventava. Só o carteiro salvava quando a solidão batia. Brasília inventou a saudade. Um amor do lado norte demorava o tempo de um circular para se declarar a um amor do lado sul. E não havia metrô ou camelo que encurtasse as distâncias nesse deserto. E, ainda hoje, aos que não amem o bastante para atravessar os quilômetros de vias, sem lamentações, a voz ressoa: “Os acomodados que se retirem!”.

E quando a especulação imobiliária estabelece preços nova-iorquinos para o metro quadrado habitacional, Brasília torna-se um produto. Quando a cidade se engessa na burocracia, quando a gentileza se petrifica em blocos, ministérios e tribunais, quando o número de veículos aumenta e faz da Capital a cidade do automóvel, Brasília perde a beleza. Quando os agitadores e fazedores de cultura são esquecidos pelas políticas públicas ou lembrados com ínfimos orçamentos, Brasília perde a arte. Quando a maioria de seus habitantes se afunda em livros técnicos, abandonando as ruas, os luares, as literaturas, os ideais revolucionários da juventude, para alcançar as uvas carocentas de um bom salário público, porque esse é o mal da civilização candanga, então, Brasília perde sua alma. E, nos entrespaços, nos entreblocos, nas entrequadras,  insiste em dizer nas entrelinhas das manchetes e dos classificados de aluguel, compra e venda de imóveis: “Os incomodados que se retirem!”

Urge tornar às paixões, atiçar as galeras e implodir a atmosfera elitista e besta que paira sob o céu idolatrado de Brasília. Precisamos ter gente nas ruas, olhar pelas janelas e ver que a vida pulsa nos jardins, nas calçadas, nos bares, nos cafés, nos bistrôs, nas bancas de revistas, nas padarias, nos açougues. Exijamos a imediata volta das feiras nas superquadras, com todo o direito à genuína balbúrdia que só as feiras provocam, com todas as caixas de frutas, verduras e peixes. Com todos os megafones. Com toda a barulhenta pechincha. É preciso acordar de novo com o vozerio dos feirantes anunciando suas promoções nas bancas. Mas isso, certamente, seria caso de polícia na esquina utópica, porque em Brasília os neo-candangos amam o carnaval, desde que seja em outro quintal, no pelourinho, na sapucaí ou em Veneza; amam o jazz, desde que seja em Nova Orleans, em Guaramiranga ou no Blue Note, de Nova York; amam o futebol, desde que seja no Maracanã, no Morumbi ou no Beira-Rio.

Importa lembrar que para ser moderno é preciso, antes, despir o terno usado na inauguração. Ou, quem sabe, como o dito de Drummond, não seja bem melhor cansar de ser moderno para ser eterno? É preciso desaposentar Brasília ou, mais grave ainda, resgatá-la da UTI.

A capital está enferma. Um funcionário do governo, investido de fé pública e com voz de polícia, bate à nossa porta, portando um aparelho chamado decibelímetro, que ele, certamente, não está minimamente preparado para operar, por não saber mesmo que o certificado do tal já está vencido. Sob a justificativa de que as pessoas conversam em decibéis acima dos permitidos pela lei, ele anula, com palavrões, um alvará de funcionamento emitido adequadamente pela Administração Regional e interdita nossas atividades comerciais, mas antes de tudo culturais. Quando esse tipo de ação acontece, podemos pensar em duas opções: ou o governo está desmantelado e seus anticorpos estão jogando contra seus órgãos vitais, com o fim de levá-lo a óbito em definitivo; ou então, estamos diante de um caso de arbitrariedade e abuso de poder de um cidadão que, uniformizado de governo, se investe de poderes supranormais e julga-se impune. Mesmo que a primeira opção seja plausível, estou certo de que a última é a que mais se adequa aos fatos recentes de lacres imputados aos cafés e bares de Brasília. Em uma palavra: covardia!

Brasília tornou-se uma cidade desapaixonada. Ou será que ainda podemos fazer festas nos apartamentos sem ter que explicar ao síndico? Ou será que ainda podemos acender fogueiras e entornar o vinho, num banquinho do Plano, sem levar a pecha de vagabundos?  Ou será que ainda podemos atravessar a superquadra com um bloco de carnaval sem que os órgãos de segurança estejam avisados? Ou será que ainda podemos ensaiar a bateria da nossa escola de samba na comercial da Asa Norte sem que isso seja crime ambiental? Ou será que ainda podemos nos aglomerar na praça para ver um show que não tenha a chancela do FAC, do MinC, da Petrobras, dos Correios, da Caixa ou do Centro Cultural Banco do Brasil e, ainda assim, sermos respeitados por nosso modo autêntico e particular de manifestar a cultura? Se um músico com seu instrumento e seu banquinho são mal vistos, faça idéia de nós, os apaixonados, os independentes, os festeiros e foliões que, sem receber um tostão furado do governo, buscamos humanizar a Capital.

Fica aqui o brado de um filho que se sente expulso da cidade pródiga: nós, que somos o sangue sadio da Capital anêmica, tornemos às veias da vida, tomemos a praça, porque a cidade anda moribunda! Em verdade, há vestígios de que Brasília já foi mais humana, menos chata. E estou certo de que meu filho, tal como eu, há de ter sede de atravessar a cidade a pé, de bike ou, ainda mesmo, num skate bandeirantes como era o meu, sem ter que sorrir porque estará sendo filmado ou catalogado nos arquivos do serviço de inteligência do governo, mas sorrir sim porque a cidade terá reencontrado o elo perdido com a humanidade. E que se dê logo a retomada humana, que as calçadas e jardins sejam ocupados por gente, antes que seja tarde, porque já reboa a voz da nova ditadura: “Os apaixonados que se retirem!”.

* Renato Fino é proprietário do Senhoritas Café (408 Norte), espaço de boas pedidas gastronômicas e culturais


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