A situação de incômodo tem sua origem em uma situação social
(de consequências políticas e econômicas ainda em construção) muito semelhante:
a apropriação dos meios e modos de vida das “primeiras classes” pelas “classes
inferiores”
por Fernando Ribeiro e Maurício Loboda Fronzaglia
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No século XIV, com a disseminação da Peste Negra, a
Inglaterra perdeu, em meses, metade da sua população. No período que se seguiu
após a Peste, o cenário era de cidades e vilarejos abandonados e não havia mão
de obra suficiente para o cultivo da terra. Por conseguinte, a demanda por
trabalho e seu preço cresceram. Os trabalhadores, que formavam a terceira ordem
da sociedade medieval, não mais se submeteriam aos seus antigos senhores da
mesma forma que outrora. Um exemplo está na história de William de Cayburn, um
lavrador de Lincolnshire, que a partir de então não mais trabalharia a não ser
pelo pagamento diário, que se recusava a
carne conservada no sal, queria carne fresca. Sem receber o que demandara, William
deixou o condado. Assim como William, muitos trabalhadores ingleses perceberam
e aproveitaram a oportunidade para procurar por melhores salários e condições
de trabalho.
As autoridades e os membros pertencentes à primeira e à
segunda ordem, nobreza e clero, entraram em pânico diante dessa nova situação
social, em que trabalhadores não mais se sujeitavam a senhores. Como seria
possível que a ordem que não tinha terra nem “sangue” pudesse ousar a desafiar
o regime de servidão? Em 1349 foram
aprovadas leis que proibiam trabalhadores de viajarem em busca de emprego, além
de congelarem seus salários, com o claro intuito de restituir a situação social
anterior. Anos depois, em 1363, os senhores fizeram valer uma lei que
determinava quais trajes eram adequados para cada ordem, dando visibilidade à
estrutura de desigualdade social na qual se apoiava a sociedade medieval. A
terceira ordem, agora em melhor situação, aumentara seus ganhos e começara a
adquirir roupas e tecidos outrora apenas disponíveis ao Clero e à Nobreza. Segundo a lei, um camponês deveria se vestir
como um camponês e não poderia gastar mais do que um determinado montante para
suas roupas, além de estar proibido de usar qualquer vestimenta que fosse de
uso das classes superiores. Havia severas penas para quem não cumprisse. A
Nobreza e o Clero demonstravam concretamente, através desta lei , o incômodo e
o ódio que sentiram ao ver que a terceira ordem, considerada naturalmente
inferior, ousava em ter e vestir os mesmos hábitos. Ambas não concebiam ver
condições de igualdade, não se reconheciam e não reconheciam o direito dos
trabalhadores de ocuparem os “seus” lugares e vestirem “suas” roupas. Daí
nascem um estranhamento e uma tensão que culminam na grande revolta de 1381,
conhecida, posteriormente, como The Peasants’ Revolt.
As leis de segregação do final da Idade Média na Inglaterra
não tiveram o efeito desejado pelas ordens que a fizeram. Pelo contrário, ao
longo do século XV os campos da Inglaterra prosperam e os traços do sistema
senhorial começam a se desfazer. A Inglaterra foi a primeira a abolir a
servidão e a corveia, tornando-se a protagonista da longa transição, passando
pelas revoluções do século XVII, para o capitalismo em sua totalidade (economia
de mercado associada a direitos civis, políticos e, posteriormente, sociais). O
país percorre um longo caminho para consolidar a igualdade perante a lei, em
uma prática cotidiana e socialmente aceita.
Os atuais “rolezinhos” expressam uma situação social análoga
à ilustrada acima, na breve citação sobre a história inglesa. Está claro que
lidamos com realidades sociais distintas, que apresentam construções históricas
também distintas, e que as classes sociais envolvidas apresentam diferenças em
sua gênese e desenvolvimento. No entanto, a situação de incômodo tem sua origem
em uma situação social (de consequências políticas e econômicas ainda em
construção) muito semelhante: a apropriação dos meios e modos de vida das
“primeiras classes” pelas “classes inferiores”.
Na aurora do século XXI o Brasil cresce, a renda cresce, o
crédito cresce. As cidades continuam vibrantes e barulhentas com seus
automóveis, suas lojas e seus shoppings parecem tranquilos, pois ainda são
frequentados pelas “devidas pessoas” com carros prateados. O Brasil é um espetáculo,
Brazil takes off e, por conseguinte, a demanda por trabalho aumenta,
especialmente no setor de serviços. Os salários reais se elevam como poucas
vezes se viu na economia brasileira. Os pardos, negros, deslocados, periféricos
não comerão apenas iogurte e frango, não se falarão apenas pelo uso de
anacrônicas fichas metálicas, não cruzarão o país em velocidade pouco mais
rápida que os Bandeirantes por terra. Agora, com melhores salários: carne
fresca de primeira, celulares, Iphones, smartphones e todos os requisitos para
se integrar à rede mundial (ainda uma integração virtual, que mais frustra do
que realiza) e, por fim, os destinos se encontram mais em aeroportos do que em
sujas e decadentes rodoviárias.
Então, há que se admirar e condenar o despautério, a
arrogância, a impetuosidade desses que não conhecem seu lugar. Há que se domar
e enquadrar esses que ousam sair da condição de submissos e que querem a
igualdade, mesmo que seja a igualdade pelo consumo e pela inserção no mercado.
Como na Inglaterra do século XIV, quer-se regular e restringir os direitos
daqueles que não se mantém no seu lugar. Há pressa em corrigir o que está “fora
do lugar” através das liminares. Porém, essas são peças jurídicas, expressão de
conflito político regulado. Melhor, na dúvida, é mandar a cavalaria, a Guarda
Pretoriana. Não são as vestes que farão a distinção, distinguem-se uns dos
outros pelo cordão pretoriano que separa, ou antes, representa um país
dividido.
O mal estar dos “rolezinhos” que ronda o Brasil não deriva
do aumento da renda dos que vivem ao redor das cidades. Tampouco no simples ato
de vestir e usar esse ou aquele tecido, esse ou aquele aparelho eletrônico,
esse ou aquele carro (mesmo de segunda mão). Esse mal estar está na própria
constituição de um país que foi um dos últimos a abolir a escravidão, que foi o
que viveu a mais longa ditadura latino-americana no pós II Guerra. Ou seja, uma história onde o pavor à
Igualdade levou à supressão da Liberdade (para não falarmos da Fraternidade
inexistente). Melhor presos em ditaduras e desiguais do que livres e
iguais. Afinal, trata-se de um país onde
há gente diferenciada.
Ir e encontrar-se no shopping, em multidão, em reunião, é
encontrar-se na Polis, na Ágora de uma sociedade onde o consumo nos parametriza
e nos define. O uso fruto dos direitos civis requer o sentido de pertencimento,
o qual não é dado pelos serviços públicos e, por extensão pelo Estado, mas sim
pelo poder de compra, pelo ser aceito no mercado como consumidor.
A transição para a igualdade demora séculos e apresenta
situações de tensão tão fortes quanto a desigualdade que tenta combater. O
Brasil vive essa transição, ainda que parte dele não a queira fazer.
Fernando Ribeiro e Maurício Loboda Fronzaglia
Respectivamente, economista, professor da PUC-SP e do Insper
e Doutor em Ciência Política, professor da Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Ambos são sócios da Urbana Consultoria em Desenvolvimento Econômico
e Social.

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