por: Saul Leblon
Carta Maior
Acontecimentos fortuitos muitas vezes sintetizam uma época
melhor que as ações deliberadas de seus personagens.
Quando Maria Antonieta – afirma-se - num rasgo de
espontaneidade aconselhou a plebe rude a optar por brioches à falta do pão, revelou-se por
inteiro o abismo entre a rua que acabara
de derrubar a Bastilha e a monarquia
agonizante de Luiz XVI.
O general João Figueiredo, ditador entre 1979 e 1985,
sintetizou o apreço do regime pela gente
brasileira esponjando-se na língua das estrebarias: ‘Prefiro o cheiro de cavalo
ao de povo’.
Na largada da
campanha tucana em 2010, Eliane Cantanhede, colunista da Folha, definiu-se melhor que seus críticos ao explicar: “O PSDB é um partido de massa , mas uma massa
cheirosa’.
O Fusquinha 75 incendiado na avenida da Consolação, em SP, no sábado (25/01), revelou uma incomoda dimensão dos protestos contra a
Copa de 2014.
Black blocs que interrompiam a via atribuem o acidente ao piloto, que teria avançado sobre um
bloqueio de fogo com crianças a bordo.
Itamar Santos, serralheiro pobre de 55 anos, rejeita o papel
de vilão.
Um colchão em chamas, disse ao blog da Cidadania, foi
atirado sobre o seu carro quando avançava para escapar de protestos,
teoricamente, em defesa de brasileiro
pobres como ele.
O Fusquinha no meio
do caminho é a pedra no sapato dos que oferecem destinos redentores à sociedade
sem combinar com ela --nem dizer como se chega lá.
Contrapor objetivos distintos aos do governo, qualquer
governo, é legítimo.
Sem adicionar aos enunciados as linhas de passagem capaz de
materializá-los, porém, rebaixa-se a política ao plano do bate-boca inconsequente.
Dispersa em vez de organizar.
A oposição
conservadora também é useira e vezeira
na atividade exclamativa.
Desprovidos de compromissos
com a sorte da nação e de sua gente, seus economistas, egressos em geral
do vale tudo financeiro, colecionam receitas de como tocar fogo no país,
indiferentes aos ocupantes dos
Fusquinhas no meio do caminho.
A instabilidade cambial que ronda as nações em
desenvolvimento nesse momento, antes de preocupá-los é vista como um bom
aditivo para queimar caravelas.
Move-os a esférica certeza de que o legado recente é
incompatível com o futuro recomendado ao
país.
A saber: aquele nascido de uma purga ortodoxa, capaz de
limpar o tecido econômico de qualquer vestígio de soberania, interesse público
e justiça social.
O problema dessa lógica é o bendito Fusquinha atrapalhando o
tráfego das boas causas.
Fortemente ancorada na ampliação do mercado de massa, a
economia brasileira avançou nos últimos anos apoiada em ingredientes daquilo
que a emissão conservadora denomina ‘Custo país’.
Em tempos de interdições
inflamáveis, nunca é demais recordar.
O salário mínimo teve
una elevação do poder de compra da ordem de 70% desde 2003, acima da
inflação; 16 milhões de vagas foram
abertas no mercado de trabalho, regidas
pela regulação trabalhistas da era Vargas; políticas sociais destinadas a
mitigar a fome e a miséria atingem mais
de 55 milhões de pessoas atualmente.
No Fórum Social Temático, em Porto Alegre, a ministra Tereza
Campello deu um exemplo do que está subjacente a estatísticas para as quais o
vocabulário conservador reserva apenas uma palavra: assistencialismo.
Pela primeira vez na história do país, disse Campello, uma geração de crianças
pobres, que agora completa 12 anos, nasceu e cresceu livre da fome (leia nesta pág).
O blackboquismo nas
suas variadas versões dá de ombros.
O mesmo trejeito merece o cinturão de segurança de US$ 375
bilhões em reservas internacionais acumuladas
no período de fastígio das commodities –‘ ciclo desperdiçado pelo
governo do PT’, assevera-se.
Não fosse ele, o Brasil seria presa fácil da volatilidade internacional
desse momento, com consequências sabidas e equivalentes às da tripla quebra no
ciclo tucano.
Mas a blindagem figura como um retrocesso do ponto de vista
de quem acredita que as conquistas dos
últimos 12 anos devem ser corroídas para
reduzir o custo do investimento privado
e aliviar o ‘gastança’ fiscal.
Aí sim, sobre os escombros, brotaria uma nova matriz de
crescimento ‘mais leve, ágil e competitiva’, temperada por um corte geral de
tarifas de importações.
O diabo, de novo, é o Fusquinha na contramão do schumpeterismo blanquista.
Dentro dele, 40 milhões de brasileiros saídos da pobreza extrema e outros tantos que
ascenderam na pirâmide social formam a
vértebra decisiva de um dos mais cobiçados mercados de massa do planeta.
Os jovens da chamada classe C, por exemplo, tornaram-se
majoritários no mercado de consumo.
Em 2013 eles realizaram compras no valor de quase
R$ 130 bi -- R$ 50 bi acima do valor consumido pela juventude dos
segmentos A e B (Data Popular).
Juntas, as faixas de renda C, D e E reúnem 155 milhões de pessoas, o que faz da demanda
popular brasileira, sozinha, o 16º
mercado consumidor do planeta.
É esse o recheio do Fusquinha que avança na contramão da
dupla barreira, a incendiária e a
purgativa, que sacode o debate do passo seguinte do país.
Reconheça-se, o tráfego social e econômico brasileiro tornou-se bem menos
linear sob a pressão do fluxo de
demandas, prazos e requisitos para o seu atendimento.
Cada urgência tem um
custo e quase nunca ele é neutro
em relação a outra.
Nenhuma novidade.
Desequilíbrio e desenvolvimento são irmãos siameses – exceto
quando se entende por desenvolvimento a mera concentração da riqueza nas mãos
dos endinheirados.
O Brasil talvez tenha avançado demais para regredir a essa
modalidade de paz do salazarismo social.
As multidões que
invadiram a economia dentro do Fusquinha
não aceitam dar meia volta na estrada da ascensão experimentada nos
últimos anos.
Uma nova macroeconomia do desenvolvimento terá que ser construída em negociação permanente com elas.
Ou contra elas
–correndo-se o risco de ser atropelado por elas.
A contingência não incomoda apenas o blackbloquismo nas suas
variantes sabidas.
Significa também que a vitória progressista em 2014 somente
será consistente se ancorada na decisão política de promover a mutação do Brasil
que se tornou majoritário na pista do consumo, em um Brasil hegemônico
na repactuação de projeto de nação para o século 21.
Carta Maior, propositadamente, insiste em repetir: para isso
é preciso –ao contrário do que fazem os
shoppings aos sábados-- alargar as
portas da democracia e criar os instrumentos que forem necessários para
sustentá-la.
Não adianta interditar o tráfego. Nem tacar fogo no
Fusquinha das demandas populares.
A ver
Comentários
Postar um comentário
12