“O QUE É MEU É MEU; O SEU, PODEMOS NEGOCIAR” - Por que as negociações no Oriente Médio sempre falham?
por Alain Gresh - http://www.diplomatique.org.br/
As negociações deveriam ter começado com a decisão de
interromper a construção dos assentamentos. Mas achamos que isso não seria
possível, por causa da composição do governo israelense, então abrimos mão.”
Entrevistada pelo famoso jornalista Nahum Barnea, do jornal israelense Yediot
Ahronot, em uma reportagem1 sobre o fracasso das negociações entre israelenses
e palestinos, a autoridade norte-americana, que prefere o anonimato, continuou:
“Não percebemos que [o primeiro-ministro Benjamin] Netanyahu utilizava as
licitações de construção nos assentamentos para garantir a sobrevivência de seu
próprio governo. Também não percebemos que o prosseguimento das construções
permitia que ministros sabotassem de maneira muito eficaz o sucesso das
negociações. [...] Somente agora, com o fracasso das negociações, entendemos
que essas construções [14 mil moradias] significavam a expropriação de terras
em grande escala”.
Os norte-americanos “não sabiam”
À pergunta “vocês ficaram surpresos quando descobriram que
os israelenses não estavam realmente interessados nas negociações?”, o oficial
da administração Obama respondeu: “Sim, ficamos surpresos. Quando Moshe Yaalon,
seu ministro da Defesa, declarou que a única coisa que [o secretário de Estado
norte-americano] John Kerry queria era ganhar o Prêmio Nobel, foi um grande
insulto, afinal, estávamos fazendo tudo aquilo por vocês”.
Embora todas as fontes de Barnea sejam anônimas, sabemos que
o autor teve acesso a todas as autoridades norte-americanas, inclusive Martin
Indyk, encarregado pelo presidente Barack Obama de supervisionar as negociações
entre israelenses e palestinos. O argumento principal resume-se a três
palavras: “Nós [os norte-americanos] não sabíamos”. Não sabiam o que
significavam os assentamentos; não sabiam que o governo israelense não estava
interessado nas negociações.
É possível acreditar nisso? Os Estados Unidos, principais
aliados de Israel, envolvidos no “processo de paz” há quatro décadas, “não
sabiam”? Como acreditar que o secretário de Estado John Kerry atravessou
oceanos dezenas de vezes, conduziu centenas de horas de negociações, conversas
telefônicas e videoconferências, realizou inúmeros encontros com a maioria dos
líderes da região, em detrimento de outras questões internacionais – em uma palavra,
como acreditar que ele dedicou tanta energia à resolução desse conflito para
“só agora perceber” que as negociações não interessavam aos israelenses? Já faz
mais de uma década que o “processo de Oslo” está morto e enterrado debaixo dos
assentamentos. Desde 1993, mais de 350 mil colonos instalaram-se na Cisjordânia
e em Jerusalém Oriental. E Washington ainda não entendeu?
O que se passa na cabeça de John Kerry? Por que insistir
tanto no fracasso? Ele realmente “não sabia”? Na verdade, Kerry, o presidente
Obama e todos os seus antecessores abraçaram com tamanha adesão o ponto de
vista de Israel que já não conseguiam enxergar a realidade, não compreendiam o
ponto de vista dos palestinos. Saeb Erekat, chefe dos negociadores palestinos,
disse aos israelenses: “Vocês não nos veem, somos invisíveis”. Essa observação
aplica-se perfeitamente aos Estados Unidos.2 Para eles, assim como para os
israelenses, vale um velho princípio: “O que é meu é meu; o que é seu, podemos
negociar”. As terras conquistadas em 1967 são “territórios em disputa”, e todos
os direitos dos palestinos são negociáveis, sejam eles sobre Jerusalém
Oriental, os assentamentos, a segurança, os refugiados, a água etc. Todas as
concessões devem ser feitas pelos ocupados, não pelos ocupantes. Israel pode
bradar aos quatro ventos, quando aceita entregar 40% da Cisjordânia, que isso é
uma concessão dolorosa, que coloca em questão a segurança, os direitos do “povo
judeu” à Erez Israel (terra de Israel) etc.
Essa posição serve para o governo de Israel acumular
obstáculos, reivindicando uma concessão após outra, sem que nenhuma seja
suficiente. Se os palestinos reconheceram o Estado de Israel – e a recíproca
não é verdadeira –, então é preciso exigir-lhes o reconhecimento de seu caráter
judeu, coisa jamais exigida nem do Egito, nem da Jordânia,3 nem dos palestinos
na época do primeiro mandato de Netanyahu (1996-1999).
Desta vez, no entanto, uma intransigência tão arrogante
suscitou o mau humor das autoridades norte-americanas, que estourou certas
vezes. Algumas delas, inclusive o presidente Obama, lembraram o fato de que não
há alternativa para esses dois Estados, a não ser um Estado único no território
histórico da Palestina. O próprio Kerry alertou contra um sistema de
“apartheid” – embora tenha logo se retratado.4
Em um primeiro momento, os Estados Unidos revelaram-se
satisfeitos com o andamento das negociações. Iniciadas em julho de 2013, elas
deveriam durar nove meses, e a Autoridade Palestina fez várias concessões
relativas à legalidade internacional: desmilitarização do futuro Estado
palestino; presença militar israelense na Jordânia por cinco anos, substituída
então pela dos Estados Unidos; passagem dos assentamentos de Jerusalém para a
soberania israelense; troca de territórios permitindo que 80% dos colonos da
Cisjordânia sejam integrados ao Estado de Israel. Por fim, o retorno dos
refugiados seria condicionado a um acordo com Israel.5 Nenhum dirigente
palestino foi tão longe como Abbas nas concessões, e é pouco provável que, no
futuro, outro as aceite.
A todos esses avanços (ou retrocessos, dependendo do ponto
de vista), Israel respondeu com um retumbante “não!”. Como relata umas das
fontes norte-americanas de Nahum Barnea: “Israel apresentou suas necessidades
de segurança na Cisjordânia. Pediu o controle total dos territórios [os
norte-americanos nunca dizem ‘ocupados’, apesar da Resolução n. 242 do Conselho
de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), de novembro de 1967]. Isso
significou, para os palestinos, [...] que Israel continuaria a controlar a
Cisjordânia para sempre”. No entanto, a cooperação de segurança entre Israel e
a Autoridade Palestina nunca foi tão estreita, a segurança dos israelenses tão
garantida – à custa, é preciso lembrar, da dos palestinos, que estão enjaulados
pelo recorte dos territórios, humilhados pelos controles incessantes e
regularmente realizados na Cisjordânia e em Gaza. Em 2013, 36 palestinos foram
mortos, três vezes mais que no ano anterior, de acordo com a organização de
defesa dos direitos humanos B’Tselem.
Retaliação alemã
Algumas semanas antes do prazo de 29 de abril, ficou claro
que Netanyahu estava apenas tentando ganhar tempo. Primeiro ele quebrou a
promessa de libertar o quarto grupo de prisioneiros palestinos presos desde
antes de 1993. A Autoridade Palestina respondeu ratificando uma série de
tratados internacionais – especialmente as Convenções de Genebra, que
regulamentam as obrigações das potências ocupantes e que o governo israelense
alegremente viola desde 1967. Mas absteve-se, por enquanto, de ratificar a
convenção do Tribunal Penal Internacional (TPI), que permitiria processar os
líderes israelenses por crimes de guerra e contra a humanidade. Para o TPI, a
instalação de assentamentos em território ocupado é crime de guerra.
Quando o governo israelense confirmou sua determinação em
prolongar o controle da Cisjordânia “para todo o sempre” (Bíblia, Livro de
Daniel, 7-18), o presidente Mahmud Abbas, impopular e fortemente contestado
dentro do Fatah, decidiu que havia chegado a hora de acabar com a divisão que,
desde 2007, enfraquecia a causa palestina. As condições estavam maduras para
ambos os lados. O próprio Hamas – enfraquecido pelo bloqueio conjunto de Israel
e das novas autoridades egípcias, bem como pela violenta campanha antipalestina
orquestrada pelo Egito, e internamente contestado por organizações mais
radicais, sobretudo a Jihad Islâmica e grupos que reivindicam lealdade à
Al-Qaeda – concordou com a ideia.
No dia 23 de abril, foi assinado um acordo para a criação de
um governo de “técnicos”, presidido por Abbas, e para a realização de eleições
legislativas e presidenciais em um prazo de seis meses. A Organização para a
Libertação da Palestina (OLP) também deveria realizar eleições internas e
integrar o Hamas, que nunca foi seu membro. Esse acordo repete aquele assinado
no Cairo, em 2011, e confirmado em Doha, em 2012, porém nunca colocado em
prática. Embora tal acordo não tenha despertado a indignação dos Estados Unidos
e tenha sido saudado pela União Europeia, Israel usou-o como pretexto para
romper negociações que, de qualquer forma, já estavam em um impasse. “Abbas
deve escolher entre a paz com Israel e a reconciliação com o Hamas”,6 declarou
Netanyahu, que, meses antes, questionara a “representatividade” de Abbas por
controlar apenas Gaza... O líder respondeu que o futuro governo seria composto
por tecnocratas e independentes: “Os israelenses perguntam: esse governo
reconhece Israel? Eu respondo: claro que sim. E renuncia ao terrorismo? Claro
que sim. E reconhece a legitimidade internacional? Claro que sim”.7
Poderíamos fazer essas mesmas perguntas a Netanyahu e sua
coalizão governamental, e aos partidos de caráter fascista que dela participam,
como o Lar Judaico, de Naftalli Bennett, com seus doze deputados (de um total
de 120).8 Eles reconhecem um Estado palestino independente dentro das
fronteiras de 1967? Reconhecem as resoluções da ONU? Claro que não.
No entanto, a interrupção prolongada das negociações
aborrece Washington e Tel-Aviv: “Há uma ameaça muito real e imediata para
Israel se ele tentar impor sanções econômicas aos palestinos”, explica uma
autoridade norte-americana a Nahum Barnea. “Isso pode ter um efeito bumerangue.
[...] Pode levar ao desmantelamento da Autoridade Palestina, e os soldados
israelenses teriam de administrar a vida de 2,5 milhões de palestinos, para
grande desespero de suas mães. Os países doadores deixariam de pagar, e a conta
de US$ 3 bilhões teria de ser paga pelo seu ministro das Finanças.”9
Enquanto durar o suposto “processo de paz”, o pedido de
sanções contra Israel e o boicote ao país são menos críveis. Não é coincidência
que o governo da Alemanha tenha decidido, com a suspensão das negociações, não
subsidiar a compra israelense de submarinos nucleares alemães, o que custará
centenas de milhões de dólares ao contribuinte israelense.10 E a União Europeia
poderá, depois de muito adiamento e complacência em relação a Israel, impor
sanções.
Uma coisa não vai mudar: quaisquer que sejam as violações do
direito internacional cometidas, os Estados Unidos ficarão firmes ao lado de
Israel. Como explicou Indyk recentemente: “As relações entre Israel e Estados
Unidos mudaram de maneira fundamental [desde a guerra de outubro de 1973]. Só
quem conhece a situação por dentro – como eu tenho o privilégio de conhecer –
sabe quão fortes e profundos são os laços que unem nossas duas nações. Quando o
presidente Obama fala, com orgulho justificável, em laços ‘inquebráveis’, ele
fala sério e sabe do que está falando”.11 E Indyk completa que, ao contrário do
que ocorreu após a guerra de outubro de 1973, quando o secretário de Estado
Henry Kissinger negociou um acordo entre Israel, de um lado, e Síria e Egito,
de outro, Obama jamais suspenderia as relações militares com Tel-Aviv, como fez
o presidente Richard Nixon.
Amanhã veremos o Estado palestino, sempre amanhã – assim se
pode resumir o discurso norte-americano.12 Devemos aceitar que os Estados
Unidos não conseguirão sozinhos e sem pressão a paz no Oriente Médio. Serão
necessárias medidas fortes de sanção dos Estados contra Israel e boicote da
sociedade civil, para que, enfim, os palestinos possam celebrar “o próximo ano
em Jerusalém”.
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde
Diplomatique (edição francesa).
Ilustração: João Montanaro
1 Nahum Barnea,
“Inside the talks’ failure: US officials open up” [Por dentro do fracasso das
negociações: autoridades norte-americanas abrem o jogo], 2 maio 2014.
Disponível em: .
2 Citado por
Martin Indyk, “The pursuit of Middle East peace: a status report” [A busca pela
paz no Oriente Médio: relatório de situação], Washington Institute for Near
East Policy, Washington, 8 maio 2014.
3 Sylvain Cypel,
“L’impossible définition de l’‘État juif’” [A impossível definição do “Estado
judeu”], OrientXXI.info, 5 maio 2014.
4 “John Kerry
dément d’avoir qualifié Israël d’État d’apartheid” [John Kerry nega ter chamado
Israel de Estado de apartheid], Lemonde.fr, 29 abr. 2014.
5 Ler Charles
Enderlin, “Les Américains rejettent la responsabilité de l’échec sur Israël”
[Norte-americanos rejeitam a responsabilidade pelo fracasso a Israel], Blog
Geópolis, 3 maio 2014.
6 Herb Keinon,
“Netanyahu: Abbas must choose, peace with Israel or reconciliation with Hamas”
[Netanyahu: Abbas deve escolher entre a paz com Israel e a reconciliação com o
Hamas], JPost.com, 23 abr. 2014.
7 Entrevista
para rede de televisão via satélite palestina, 8 maio 2014, transmitida pela
BBC Monitoring, Londres, 10 maio 2014.
8 Ler Yossi
Gurvitz, “Israël aussi…” [Israel também...], Manière de Voir, n.134, abr./maio 2014.
9 Citado por
Nahum Barnea, op. cit.
10 Barak Ravid,
“Germany nixes gunboat subsidy to Israel, citing breakdown of peace talks”
[Alemanha nega subsídio para compra de embarcações militares a Israel, citando
fracasso das negociações de paz], Haaretz, Tel-Aviv, 15 maio 2014.
11 Martin Indyk,
op. cit.
12 Ler “Demain
l’État palestinien, toujours demain” [Amanhã veremos o Estado palestino, sempre
amanhã], Le Monde Diplomatique, out. 2011.
Comentários
Postar um comentário
12