por David Camroux - http://www.diplomatique.org.br/
Desde o fim da monarquia absolutista em 1932, a Tailândia
passou por dezessete tentativas de derrubada do governo pelo Exército, doze delas
bem-sucedidas. A última foi em 22 de maio de 2014, dois dias após a proclamação
da lei marcial pelo comandante-chefe do Exército, o general Prayuth Chan-ocha.
Durante os sete meses que a precederam, Bangcoc foi sacudida por protestos
antigoverno dos “camisas amarelas” – no calendário budista, o amarelo é a cor
da segunda-feira, dia do nascimento do rei Bhumibol Adulyadej, Rama IX.
Orquestradas pelo Comitê de Reforma Democrática do Povo, dirigido pelo
ex-vice-primeiro-ministro, Suthep Thaugsuban (Partido Democrático), elas
queriam provocar um golpe de Estado judicial e militar. Mais um...
Retorno a um governo frágil
No entanto, ainda em 1992, quando os manifestantes, oriundos
principalmente das classes médias, ocuparam as ruas de Bangcoc para denunciar
um governo dominado pelos militares, obrigando o rei Bhumibol a intervir,
parecia que o ciclo infernal havia finalmente sido quebrado. Em seguida, após a
crise financeira asiática, presumiu-se que a “Constituição do Povo” de 1998
permitiria o estabelecimento de uma democracia moderna. O texto apagava os
aspectos mais excessivos de um sistema político neopatrimonial e incentivava a
criação de partidos políticos apoiados em um programa.
Seguiu-se a vitória, em 2001, de um partido de massa, o Thai
Rak Thai (“Os tailandeses amam os tailandeses”). Seu fundador, um Berlusconi
asiático, Thaksin Shinawatra, magnata sino-tailandês dos negócios e ex-coronel
da polícia, cujo feudo fica em Chiang Mai (no norte), e não em Bangcoc, foi
nomeado primeiro-ministro. Uma vitória inaceitável aos olhos dos “camisas
amarelas”.
O modelo, porém, não resistiu à influência exercida pelo
primeiro-ministro, e também por seus adversários, sobre as instituições erguidas
para arbitrar a vida política do país: Tribunal Constitucional, Comissão
Eleitoral e Comissão Nacional de Combate à Corrupção. Além disso, a democracia
parlamentar, frágil desde o início do século, já não permitia a ascensão da
elite econômica, militar e burocrática de Bangcoc, reunida atrás de uma
monarquia que é a pedra angular da ordem social. Assim, estava dado o cenário
para o golpe de 2006 e a derrubada de Thaksin. Este acabara de ser reeleito,
embora com a reputação manchada por casos de corrupção e graves violações dos
direitos humanos, como as 2 mil execuções extrajudiciais cometidas durante sua
“guerra às drogas”.
À primeira vista, o golpe de maio de 2014 parece uma
reedição do de 2006. Mais uma vez, os militares surgem como guardiões da unidade
nacional e defensores da monarquia. Mas há diferenças significativas. Em 2006,
os instigadores do golpe de Estado tinham em suas fileiras um ex-general e
ex-primeiro-ministro, Prem Tinsulanonda, chefe do Conselho Privado do rei e
representante do próprio Bhumibol. Em maio passado, eles não parecem ter
recebido o aval do palácio, mesmo tácito. Ambos gravemente doentes, o rei, de
86 anos, e a rainha Sirikit, de 82, personagem digna de Lady Macbeth, não
fizeram nenhuma declaração pública nos últimos dois anos.
Com a perspectiva da morte do monarca cada dia mais próxima,
pode-se ver no golpe de 2014 uma tentativa de instaurar emergencialmente um
regime capaz de enfrentar a situação. Há três objetivos em vista: evitar o
regresso de Thaksin, ao qual se opõem os “camisas amarelas”; voltar à situação
anterior a 2001, com um governo e um Estado fracos, para permitir que a elite
do Exército, da burocracia e dos negócios conserve de fato o poder; dar aos
militares, depois que eles voltarem ao quartel, oportunidade de definir suas
prerrogativas e posicionar-se quanto a uma sucessão iminente.
Sob a lei marcial, no período de 1948 a 1972, em seguida sob
governos quase civis, o Exército sempre sustentou a monarquia como a última
fonte de legitimidade. É em seu nome que ele intervém. O rei Bhumibol encarna a
ideia do dhamma raja, o rei-pai benevolente e sábio. Por trás de uma aparência
de neutralidade, a “monarquia em rede”, como denomina o pesquisador Duncan
McCargo,1 representa, como força política, um poder econômico cuja riqueza
chega a quase US$ 30 bilhões, detidos em grande parte pelo Escritório de Ativos
da Coroa (Crown Property Bureau).
Além de impopular, o herdeiro de Bhumibol, o príncipe Maha
Vajiralongkom – cuja saúde mental chega a ser questionada por alguns –, também
é considerado, por aqueles que em Bangcoc apoiam a monarquia, um aliado de
Thaksin no exílio e de sua irmã Yingluck, primeira-ministra deposta e
atualmente presa. Daí o dilema para os militares: como manter o mito da
monarquia quando o futuro monarca é indefensável a seus olhos?
Esse contexto de fim de reinado explica o momento escolhido
para o último golpe, que, do ponto de vista do movimento antigoverno, parecia
objetivamente supérfluo. Yingluck Shinawatra e oito de seus ministros já haviam
sido exonerados em 6 de maio pelo Tribunal Constitucional. No dia seguinte, a
Comissão Nacional de Combate à Corrupção lançou no Senado (de maioria
adversária) um procedimento para destituí-la e torná-la inelegível, bem como
todos os membros de seu partido. O confronto entre seus partidários (os
“camisas vermelhas”) e os “camisas amarelas” fora em grande parte contido, e o
nível de violência, substancialmente reduzido. Um governo provisório
pró-Thaksin garantia a transição; eleições foram marcadas para julho de 2014,
já que a de fevereiro, boicotada pela oposição, tinha sido invalidada.
Uma divisão campo-cidade
Em outras palavras, a oposição extraparlamentar dos “camisas
amarelas” tinha atingido a maioria de seus objetivos, com exceção – embora
importante – da realização de uma reforma constitucional para instaurar um
Parlamento e um governo que teria grande parte de seus membros nomeados, e não
eleitos. Para a oposição parlamentar, representada pelo Partido Democrático –
que não ganhou uma única eleição em vinte anos e sabe que o governo deposto
conta com o apoio da maioria da população –, a única maneira de chegar ao poder
é mudar as regras do jogo. É isso que permite o golpe de Estado.
A tudo isso, acrescenta-se a luta pelo poder entre as elites
políticas e econômicas de Bangcoc e das províncias. Desde o fim da monarquia
absoluta, essa competição sempre existiu. Ela se intensificou nos anos
1970-1980, quando o Exército saiu de cena – continuando pronto para intervir –
e a burocracia se profissionalizou. Originalmente, com a bênção do palácio, ela
resultou numa confortável partilha do poder, ritmada pela alternância entre os
membros do establishmentde Bangcoc, apoiados pelo Exército e o serviço público.
Uma série de governos de coalizão fracos permitiu que a burocracia aliada ao
Exército mantivesse as rédeas do poder, impondo o mínimo de restrições ao mundo
dos negócios de Bangcoc, que aproveitou para prosperar. A situação mudou nos
anos 1980, quando apareceram dirigentes e homens de negócios cujo poder nascia
na província, como Barharn Silpa-archa. Thaksin e sua irmã são os exemplos
perfeitos dessa transição sociopolítica.
Assim, a nova tradução da clivagem campo-cidade, na cena
política, deu à agitação tailandesa uma segunda dimensão, social. Para as classes
médias de Bangcoc, a população rural e seus primos pobres da cidade são
“búfalos-d’água”, ou seja, honestos porém idiotas, incapazes de entender a
democracia. Mas essas pessoas assistiram duas vezes, em setembro de 2006 e maio
de 2014, à desestabilização e deposição, por meio de manobras parlamentares e
instrumentalização da justiça, de um governo que elas haviam eleito
devidamente. A ocupação do centro de Bangcoc, em março de 2010, pelos “camisas
vermelhas” favoráveis a Thaksin levou a uma violenta repressão, na qual noventa
manifestantes foram mortos, atestando o risco de guerra civil que paira sobre a
Tailândia.
No entanto, a simples dicotomia campo-cidade não basta para
explicar a situação. Também se deve destacar a importante diversidade de
classes e grupos étnicos do país. Além dos camponeses do norte e nordeste,
muitos partidários dos “camisas vermelhas” são “camponeses urbanos”, migrantes
do interior que assumem empregos não qualificados na região de Bangcoc,
mantendo fortes ligações com sua aldeia natal. É essa população que Thaksin
emancipou, subsidiando aldeias e rincões, ampliando o acesso a saúde e
infraestrutura.
O governo de sua irmã aplicou medidas ainda mais radicais,
como o subsídio para a compra de arroz 40% acima do preço de mercado e a
instauração de um salário mínimo de 300 bahts(cerca de R$ 20) por dia. A
população da região de Isan, no nordeste, pertencente à etnia lao – que os
tailandeses do centro, de pele mais clara, olham com desprezo –, não está mais
disposta a aceitar uma ordem social neofeudal.2
Para entender a atual crise de legitimidade, é preciso
voltar às reformas realizadas entre os anos 1850 e 1920 por três reis
sucessivos – Mongkut, Chulalongkorn e Vajiravadh –, com o objetivo de
modernizar e consolidar o Estado-nação.3 Esses monarcas aumentaram o papel de
Bangcoc como centro do poder, concebendo o pertencimento à comunidade nacional
como uma adesão aos valores do “ser tailandês”, ou seja, a língua, os valores e
costumes dos grupos étnicos tailandeses do coração do país. Uma instrução
pública eficaz começou a homogeneizar uma sociedade multiétnica, ensinando um
idioma tailandês padrão e resumindo a história a um único esquema narrativo: se
Sião, como se chamava então a Tailândia, era o único país do Sudeste Asiático a
manter sua independência, isso se dava graças ao governo sábio de seus
monarcas, à sua ordem social paternalista e ao seu Exército.
No entanto, faltava ao nacionalismo tailandês o mito
fundador de um Estado-nação, que se pode constituir em uma guerra de
independência, quando se transcendem as clivagens sociais e étnicas. Nesse
ponto, a Tailândia não é o Vietnã nem a Indonésia. Resultado: a identidade de
um cidadão em uma nação, oposta à do súdito em um reino, carece de força, e as
questões de legitimidade permanecem sem solução. Os instigadores do golpe e os
“camisas amarelas” consideram legítimos o poder do monarca e o governo composto
por homens virtuosos; para os “camisas vermelhas” e seus partidários, a fonte
de legitimidade está no processo eleitoral.
Talvez o golpe de 22 de maio se traduza por uma estabilidade
de curto prazo. Mas, em vez de resolver a crise de legitimidade, ele deverá
agravá-la, sem tocar suas raízes sociais profundas nem os bloqueios do país.
David Camroux
David Camroux é professor e pesquisador do Centre d’Études
et de Recherches Internationales (Ceri) – Sciences Po, na França.
Ilustração: Reuters/Damir Sagolj
1 Duncan McCargo,
“Network monarchy and legitimacy crises in Thailand” [Monarquia em rede e crise
de legitimidade na Tailândia], The Pacific Review, v.18, n.4, dez. 2005. Ler
David Camroux e Philip Golub, “‘Rouges’ contre ‘jaunes’, affrontements de classe
à Bangkok” [“Vermelhos” contra “amarelos”, enfrentamentos de classe em
Bangcoc], e Xavier Monthéard, “Le roi, le peuple et les élites” [O rei, o povo
e as elites], Le Monde Diplomatique, jul. 2010.
2 Charles Keyes,
Finding their voice: northeastern villagers and the Thai State[Encontrando sua
voz: tailandeses do norte e o Estado tailandês], Silkworm Books, Chiang Mai,
2014.
3 Marc Askew
(org.), Legitimacy crisis in Thailand[Crise de legitimidade na Tailândia],
Silkworm Books, Chiang Mai, 2010; Michael Connors, Democracy and national
identity in Thailand[Democracia e identidade nacional na Tailândia], 2. ed.,
Nordic Institute of Asian Studies Press, Copenhague, 2007.
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