Cravado em meio a terras que pertencem a Mucio Tolentino,
tio-avô de Aécio, o aeroporto foi descrito como 'administrado por familiares'
do candidato.
Fabio de Sá e Silva (*) – Carta Maior
Para quem publicou texto recente tratando de Aécio Neves
como um político que carrega diversos “esqueletos”, demorou para que a Folha de
São Paulo lograsse noticiar situação que permita o mínimo debate sobre como o
postulante ao Planalto conduz os negócios públicos.
A novidade veio nas tintas de Lucas Ferraz, repórter que foi
a Claudio, pequena cidade a 150 km de Belo Horizonte, investigar aeroporto
construído na gestão do candidato tucano quando era governador de Minas Gerais.
Cravado em meio a terras que pertencem a Mucio Tolentino,
tio-avô de Aécio, o aeroporto foi descrito como “administrado por familiares”
do candidato.
Ao perguntar na Prefeitura sobre como era possível utilizar
o local, o repórter foi instruído a procurar por Mucio, ele próprio um ex-prefeito.
“O aeroporto é do Estado, mas fica no terreno dele”, definiu o chefe de
gabinete atual mandatário local. “É Mucio que tem a chave”.
A situação nebulosa encontrada nas diligências iniciais do
repórter se confirmou depois, em diálogo entre este e o próprio Mucio: “Ele
fica dentro de nossa fazenda,” disse o tio de Aécio. “O aeroporto está no final
do processo, mas, para todos os efeitos, é nosso”.
Construído em 2010 – quando o Brasil era eliminado pela
Holanda na Copa da África do Sul e Dilma dava os primeiros passos em busca da
sucessão de Lula –, o equipamento até hoje não foi regularizado perante a ANAC.
Não pode, assim, servir de base para pousos e decolagens.
Nem por isso, porém, se tratou de obra “inútil”. Segundo
Mucio, Aécio visita “seis ou sete vezes” por ano os familiares de Claudio e vai
sempre de avião.
A relação custo/benefício do aeroporto também inspira
indagações. A 50 km dali está Divinópolis, cidade de maior porte e já
guarnecida por um aeroporto quando da construção do de Claudio.
O preço desta obra, por sua vez – na casa dos R$ 14 milhões,
afora o valor de R$ 1 milhão desembolsado com a desapropriação –, parece bem
superior ao do que tem sido pago em obras similares de outros Estados ou mesmo
de Minas Gerais, especialmente considerando o que é o elemento central em
aeroportos de pequeno e médio porte (a pista asfáltica).
Duas descobertas posteriores à divulgação da reportagem
terminariam de apimentar a história.
Primeiro, o fato de que a empresa contratada para a obra
doou dinheiro para as campanhas de Aécio e Anastasia, em Minas Gerais.
Segundo, o fato de que a construção em Claudio não vem a ser
a única a constranger o tucano: em Montezuma, outra pequena cidade, desta vez
ao Norte de Minas Gerais, Aécio construiu mais um aeroporto, bem próximo a uma
propriedade da qual ele próprio tem uma parcela.
Sem conseguir trazer versão convincente para os fatos
apurados por Ferraz, a campanha de Aécio resolveu adotar uma nova estratégia:
passou a questionar a matéria a partir de suas premissas.
O suposto trunfo veio na forma de dois pareceres assinados
pelos ex-presidentes do STF, os ex-Ministros Carlos Velloso e Ayres Brito.
Segundo esses exercícios interpretativos – cada qual
desenvolvido ao longo de uma página –, no momento em que o Estado de Minas
Gerais declarou interesse e urgência na desapropriação do imóvel e depositou em
favor do tio de Aécio os valores que entendia justos, o imóvel deixou de
pertencer a este.
Errada, assim, a alegação central da reportagem de que o
Governo de Minas fez aeroporto em terreno de tio de Aécio e, por conseguinte,
inexistente qualquer razão para a polêmica.
Ainda mais, argumentou o candidato em redes sociais, quando
“o terreno foi desapropriado por valor inferior ao de mercado”. Afinal, o tio
“briga contra o Estado por um valor maior”.
Imitido, enfim, na posse do imóvel, e mediante o pagamento
de um preço “inferior ao de mercado”, deve ter pensado a campanha de Aécio, não
há como se contestar a construção do Aeroporto.
Do ponto de vista jurídico – terreno no qual a própria
campanha de Aécio pretendeu situar o caso, na medida em que buscou amparo na
autoridade das opiniões de Velloso e Brito –, o raciocínio é, porém, repleto de
fragilidades.
Saber se o terreno deixou de ser do tio de Aécio para se
tornar do Estado de Minas Gerais não esgota o caráter problemático da
realização da obra. Em se tratando de aquisição de propriedade por ente
público, o próprio processo de aquisição pode (e deve) ser objeto de
inquirição.
A desapropriação é o procedimento pelo qual o Estado retira
a propriedade de um particular, tendo em vista justificado interesse social.
Trata-se, assim, de situação na qual um interesse privado (na conservação da
propriedade) cede espaço para um interesse público (no caso, na construção de
um aeroporto), mediante o pagamento de um “preço justo e prévio”.
É exatamente por permitir tudo isso – de um lado a
incidência na propriedade privada, direito resguardado pela Constituição; de
outro o dispêndio de recursos públicos para o pagamento do “preço justo” –, que
o interesse público na desapropriação precisa estar bem caracterizado. Os
princípios constitucionais da administração pública são as balizas que permitem
julgar se e quando esse requisito fundamental foi atingido.
Três princípios apresentaram maior saliência nos debates que
se seguiram à publicação da matéria.
Primeiro, o da eficiência, segundo o qual a administração
deve empregar a melhor relação entre meios e fins.
Segundo, o da impessoalidade, segundo o qual o administrador
não pode colocar o seu interesse particular à frente do interesse geral. É isso
que impede que um fazendeiro que chega a governador desaproprie as terras de um
concorrente para construir um “parque ecológico”, visando, no fundo, dominar a
produção local.
Terceiro, o da moralidade administrativa, que impõe ao
administrador a atuação segundo padrões éticos conducentes à realização do bem
comum.
Argumentando que o preço pago foi “inferior ao valor de
mercado”, Aécio pretende encontrar na eficiência uma tábua de salvação para a
construção do aeroporto de Claudio. Mas já havendo equipamento equivalente na
vizinha Divinópolis, a medida seria mesmo necessária?
E o que dizer do período de quatro em que o aeroporto sequer
se encontra apto a funcionar em benefício da comunidade? No mais, a declaração
sobre o preço não pode dar apoio ao pleito do tio do candidato por um valor
maior de indenização, ampliando o prejuízo ao erário?
Complicada, como se vê, a tentativa de matar o caso por aí.
Impessoalidade e moralidade, por sua vez, são os princípios
aos quais é ainda mais difícil o caso se ajustar. Mesmo que o terreno “não seja
mais” do tio de Aécio, a construção do aeroporto não agregaria valor a esta
propriedade? O uso sistemático do equipamento pelo candidato, cuja Fazenda se
situa ali bem próxima, não representaria nenhum embaraço? Há, afinal, algum
respaldo ético para que um Governador construa um aeroporto nessas condições?
Por fim, não é menos oportuno questionar os argumentos
jurídicos trazidos em defesa de Aécio tendo em vista a consistência entre estes
e o quadro geral das práticas do ex-governador.
No RE 176.108–3, preocupado com os direitos dos
proprietários particulares, o agora parecerista de Aécio, Carlos Velloso,
manifestou o entendimento de que o Estado não poderia começar a utilizar uma
terra em vias de desapropriação enquanto a questão do preço não estivesse
resolvida.
Isso porque, segundo o ex-Ministro, essa “imissão
provisória”, como referida pelos juristas, equivale, na verdade, a uma “imissão
definitiva”. Afinal, dizia ele:
“Ninguém ignora que, imitido o poder público na posse do
imóvel, perde o seu proprietário a propriedade de fato, não pode dispor do que
é seu. É hora, senhores Ministros, de se acabar com o ‘faz de conta’, é hora de
se dar efetivo cumprimento à Constituição”.
Tomado a sério e aplicado em outras situações, o novo
entendimento de Velloso (e principal ponto de apoio na defesa de Aécio) levaria
a revoluções copernicanas em outras áreas de política pública.
Partindo dele, bastaria ao Estado estimar e depositar o que
considera como “preço justo” por determinadas propriedades para que estas
pudessem ser imediatamente destinadas aos beneficiários de políticas como de
reforma agrária ou urbana. Nunca mais se veria a situação na qual esses
beneficiários esperam anos a fio, enquanto os proprietários arrastam nos
Tribunais litígios em torno dos valores a que supõem fazer jus.
Não há registro, porém, de que frente a esses conflitos
Aécio tenha sido fiel àquele entendimento.
Ao que parece, portanto, a tese jurídica em que a campanha
de Aécio tanto aposta para evitar contaminação pelas reportagens do aeroporto
de Claudio não se distingue tanto da destinação alegadamente dada ao próprio
aeroporto: de uso episódico e para fins particulares.
(*) FABIO DE SÁ E SILVA é bacharel (USP ‘02) e mestre em
direito (UnB ‘07) e PhD em Direito, Política e Sociedade (Northeastern
University, EUA, ‘13).
Créditos da foto: Arquivo
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