É nos pequenos gestos do
cotidiano que se observam as distorções trazidas pela cultura do jeitinho. É a
glorificação do salve-se quem puder.
Jacques Gruman - http://www.cartamaior.com.br/
Conheço sonegadores confessos.
Alegam que não sustentariam seus negócios se tivessem que pagar os impostos.
Montam, assim, uma ética paralela, uma espécie de milícia financeira, muito bem
aceita por setores ponderáveis da população. Ao invés de lutar para consertar o
que acham errado, preferem investir na economia paralela, clandestina pero no
mucho. Berram dia e noite contra os desvios de conduta dos políticos e
tecnocratas, mas sobrevivem graças a eles. O udenismo não morreu.
É nos pequenos gestos do
cotidiano que se observam as distorções trazidas pela cultura do jeitinho. No
fundo, é a glorificação do bumba meu boi, cada macaco no seu galho e salve-se
quem puder. Só os otários, dizem, obedecem as regras que deveriam valer para
todos. Num pequeno trajeto, vivo montanhas disso todo dia. Entre minha casa e a
praia, há menos de um quilômetro. De cara, carros estacionados em fila dupla,
numa via estreita. Poucos metros adiante, um bar que ocupa quase dois terços da
calçada, prejudicando a passagem. Fiscalização pra quê? Em seguida, quase em
frente a uma delegacia, parasitas que se dizem flanelinhas achacam quem precisa
estacionar. Na ciclovia, exclusiva para ciclistas e corredores, pedestres
caminham sem a menor cerimônia, prontos a ofender e ameaçar quem os alerta para
a infração que cometem. Nos finais de semana, são os ciclistas que invadem o
espaço dos pedestres, tirando finos de gente que só quer caminhar em paz. Tudo
muito natural, como se esculacho fosse uma saudável rebeldia. A absoluta impunidade
sobe a escada e acaba por “justificar” os de cima. Afinal de contas, que
diferença conceitual há entre, por exemplo, a falsificação de uma carteira de
estudante e o estelionato que enriquece ladrões perfumados?
Na esteira da Copa das Copas
(sic), muita gente acordou para o lamaçal da Fifa e da CBF. Negociatas de todos
os tipos, destruição ética e técnica do futebol brasileiro, repressão de
manifestações populares em nome da tranquilidade para sugar lucros
excepcionais. A bandalha invadiu os gramados. Sempre achamos que os jogadores
brasileiros eram artistas da bola, maestros e músicos de uma sinfonia de raiz
popular. Os limites éticos pareciam implícitos, da pelada ao Maracanã . Agora,
criamos uma nova escola de artistas: os simuladores, que tanta surpresa e raiva
provocam em jogadores de outras praças, desacostumados com essa prática
desleal. Desde as categorias de base até os times que disputam o Campeonato
Nacional, passando pela seleção brasileira, há um desfile de comportamentos
desonestos, antiéticos. O futebol brasileiro não deixa de ser um espelho da
sociedade, sempre em busca do caminho mais fácil – nem sempre honesto – para se
ganhar. O imperativo mercantil, acoplado à chamada Lei de Gérson (injusta
“homenagem” para o Canhotinha), agravam o quadro. Nem sempre foi assim.
Conto duas histórias. Podem me
chamar de sonhador, mas elas exprimem o que sinto quando penso no futebol como
paixão. A primeira, registrada pelo Juca Kfouri, tem mais de cinquenta anos.
Copa do Mundo no Chile, 1962. Depois de uma vitória discreta na estreia contra
o México, o Brasil enfrentaria a Tcheco-Eslováquia. A parada não ia ser fácil.
Os tchecos tinham um time sólido, com alguns jogadores de bom nível. Lá estavam
Pelé e Garrincha, artilharia pesada contra o excelente goleiro Schroiff. De
repente, calafrios. Pelé chuta da entrada da área, Schroiff se estica e toca na
bola, que roça na trave e sai pela linha de fundo. O crioulo se abaixa, afaga a
coxa esquerda e não esconde uma fisionomia de dor. Distensão na virilha, coisa
séria. Naquele tempo, não havia substituição. Se um jogador se machucava,
permanecia em campo fazendo número, como se dizia. Foi o que Pelé fez,
congelado no exílio forçado da ponta-esquerda. Para surpresa geral, os tchecos
não se aproveitaram do desastre muscular do Rei. Masopust, capitão do time,
ordenou aos companheiros: “Ninguém o combate se a bola chegar nele”. Foi o que
aconteceu com o zagueiro Lala, que, vendo a bola chegar em Pelé, apenas o
cercou, com as mãos na cintura, sem procurar desarmar o crioulo. Pelé percebe,
faz um agradecimento silencioso, joga a bola para fora e sai de campo,
escoltado por Masopust. Ao perceber o que acabara de acontecer, o estádio
Sausalito virou um aplauso só. Todos tinham sido testemunhas de um maravilhoso
gesto de espírito esportivo, de generosidade, de respeito, de reconhecimento
das regras de convivência. Em suma, como diz o Juca: de ética esportiva. Alguém
consegue imaginar cena semelhante hoje em dia ? Alguém consegue visualizar o
Mané Cabelinho ou o Fred se comportando de maneira semelhante ?
A segunda vem da Colômbia e foi
narrada pelo inimitável Eduardo Galeano. Data indefinida. Era dia de final do
campeonato colombiano. Milionários e Santa Fé mobilizaram Bogotá e o estádio
estava abarrotado. Segundo Galeano, apenas os cegos e os paralíticos estavam
ausentes. O jogo corre tenso e, já nos últimos minutos, o centro-avante e
artilheiro do Santa Fé, o argentino Lorenzo Devani, penetra na área adversária
e cai. O juiz corre para a marca do cal e assinala o penalty. Devani, surpreso,
se dirige a Sua Senhoria e diz que tinha caído sozinho, o penalty não existira.
O juiz pede que ele olhe para a multidão nas arquibancadas e alega que não
tinha a menor condição de voltar atrás. Podia ser trucidado. Devani, então,
toma a decisão que, disse Galeano, seria sua ruína e sua glória. Corre para a
bola e a chuta para o mais longe possível das traves. Perdeu o gol, mas
transformou um jogo de futebol na mais perfeita tradução da ética. É pouco?
Créditos da foto: free press /
Flickr
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