Vivemos um movimento que reinventa o nosso
subdesenvolvimento, que é resultado histórico e estrutural do atual padrão de
acumulação mundial.
Mauricio de Souza Sabadini - http://www.cartamaior.com.br/
Inicialmente, é de se registrar a importância de debates
como esse promovido pela Carta Maior envolvendo uma temática, o capital
financeiro, que sempre esteve no centro das discussões de autores clássicos, e
que, historicamente, tem provocado sensíveis mudanças no padrão de acumulação da
economia mundial ao longo das últimas décadas do Séc. XX e início do Séc. XXI.
De fato, um processo de reconfiguração que afeta diretamente a geopolítica
mundial, cujos centros hegemônicos do poder político e econômico, imperialistas
por essência, intensificaram o processo de apropriação da riqueza gerada,
sobretudo, no interior das economias periféricas.
Com intuito de contribuir para o debate proposto, o objetivo
aqui será o de caracterizar, mesmo que brevemente, o objeto do seminário, ou
seja, o capital financeiro, para depois tratar da inserção da economia
brasileira na dinâmica capitalista contemporânea, dinâmica esta que tem nesta
forma autonomizada do capital uma expressão, como não poderia deixar de ser,
fortemente internacionalista e exportadora de capitais.
Capital financeiro
Antes de qualquer coisa, é preciso minimamente entender do
que se trata o capital financeiro, até mesmo para qualificar o debate proposto.
O termo, muito utilizado tanto no círculo acadêmico quanto na imprensa em
geral, ganhou expressão na obra de Rudolf Hilferding intitulada “O capital
financeiro”, publicada em 1910.
Hilferding foi um economista austríaco com passagens pelo
Ministério da Fazenda da Alemanha e um intelectual ligado ao então Partido
Social-Democrata alemão. Nesta obra desenvolveu temas fundamentais para a
análise do capitalismo investigando o sistema de crédito, as Sociedades
Anônimas, os dividendos e o lucro de fundador, as bolsas de valores, o capital
financeiro, o capital fictício, as crises, a exportação de capital e o
imperialismo.
O entendimento do termo capital financeiro em sua obra é
carregado de ambiguidade. Encontramos ao menos três formas de compreendê-lo,
sendo que tais leituras carregam entre si semelhanças e diferenças
significativas. Por falta de espaço, destacaremos apenas uma delas, a que
chamamos de visão tradicional, seguramente a mais utilizada na literatura
acadêmica, a saber: o capital financeiro como a junção do capital bancário com
o produtivo, sendo que o primeiro exerce uma função de dominação em relação ao
segundo. Foi a partir desta relação direta entre as esferas financeira e produtiva
do ciclo do capital, que guarda em sua essência a relação de financiamento da
atividade produtiva pelo sistema bancário, é que podemos compreender, por
exemplo, o processo histórico de industrialização pesada de boa parte dos
países periféricos, tendo como base a evolução do sistema de crédito
internacional.
E na atualidade? Este conceito de capital financeiro acima
indicado nos permite compreender a lógica especulativa do capitalismo
contemporâneo? Acreditamos que, em sua totalidade, não; ele tem seus limites. A
dinâmica capitalista mundial foi alterada, o processo de acumulação capitalista
reconfigurado, recolocando no debate a compreensão do capital financeiro
inserido em uma lógica voltada mais para os ganhos especulativos advindos das
transações financeiras do que propriamente pela via do financiamento produtivo.
Isso, ao mesmo tempo em que o trabalho, cada vez mais precarizado e
intensificado, continua central no processo de criação de riqueza. Assim, esta
visão do capital financeiro passa a ser insuficiente para um entendimento mais
apurado da dinâmica do capitalismo contemporâneo. Acreditamos que o capital
fictício, representado, por exemplo, pelas ações e títulos negociados nas
bolsas de valores e que expressam um caráter mais fetichista do dinheiro
gerando dinheiro (D – D’), fornece uma melhor visão do processo atual. A pura
essência do jogo especulativo passa a ter, então, um lugar de destaque no ciclo
global.
É a intensificação da especulação que tem, por um lado, um
crescimento exponencial de ativos financeiros que transitam nos mercados
financeiros na busca de absorver excedente criado na produção e, por outro, a
criação dos lucros fictícios, conforme nossa elaboração, que caracteriza de
maneira marcante alguns traços do capitalismo contemporâneo. Os principais
atores que manejam esta estrutura são os bancos e os chamados investidores
institucionais (fundos de pensão, fundos de investimentos, fundos especulativos
etc).
Somente a título de exemplo, o estoque de ativos financeiros
no mundo foi da ordem de US$ 12 trilhões em 1980, aumentando para US$ 96
trilhões em 1999, e totalizando US$ 209 trilhões em 2010; já o PIB mundial, que
era de US$ 11,8 trilhões em 1980, passou para US$ 55,9 trilhões em 2010. O
crescimento deste volume financeiro pode ser entendido a partir das mudanças
históricas vividas pelo capitalismo ao longo das últimas décadas, servindo para
“revitalizar”, mesmo que contraditoriamente, a taxa de lucro capitalista.
O Brasil e a reinserção subordinada
Esta dinâmica capitalista mundial afetou, evidentemente, a
economia brasileira de maneira muito clara. Uma das formas de se observar este
processo pode ser visualizada pelo Gráfico seguinte, que nos indica o fluxo
líquido de capitais externos à procura de valorização, quer seja pela via do
Investimento Direto Estrangeiro (IDE - participação no capital das empresas
sediadas no país e os empréstimos intercompanhia) quer pela via da conta de
portfólio (aplicações em títulos, ações e renda fixa). A série histórica nos
sugere transformações significativas pós anos 1990, principalmente a partir de
1992.
Os marcos históricos que caracterizam o início desta mudança
englobam, dentre outros, a liberalização financeira, passando pelas políticas
de desregulamentação e estímulo aos capitais externos atraídos pelo pagamento
de altas taxas de juros. Porém, sem entrar no debate dos possíveis aspectos
positivos e/ou negativos da entrada de capitais externos na economia
brasileira, o fato é que uma grande parte deste capital, de cunho especulativo,
recolocou a economia nacional nos parâmetros ditados pela nova dinâmica da
acumulação capitalista mundial, na qual o nexo imperialista com o capital
fictício se intensificou, subordinando ainda mais a política econômica interna
aos ditames financeiros. Daí, a adoção de políticas de regimes centrados, por
exemplo, nas metas de inflação, superávit primário, câmbio flutuante e juros
elevados, visando garantir a remuneração do capital fictício sob a forma da
dívida pública.
E suas dimensões não se resumem somente aos efeitos diretos
sobre a dimensão macroeconômica, pela via de uma política econômica que
historicamente tem provocado baixo e instável crescimento econômico,
acompanhado por uma exponencial concentração de renda e propriedade, mas também
pela influência direta dos fundos financeiros detentores das ações das empresas
- muitas delas empresas estatais que foram privatizadas e que entraram em
processo de fusão -, com seus parâmetros de rentabilidade diretamente associados
aos rendimentos da esfera financeira. As consequências deste processo são, por
um lado, a transferência direta da riqueza gerada para a burguesia nacional e
internacional, implicando redução de gastos em áreas prioritárias, como saúde,
segurança, educação, infraestrutura, saneamento básico etc, e, por outro,
reestruturação produtiva, adoção da política de governança corporativa,
normalmente seguida de intensificação do trabalho no interior das empresas e
associada a um aumento no grau de precarização do trabalho.
Ao mesmo tempo, os recursos orçamentários, provenientes dos
impostos pagos pelos trabalhadores, continuam sendo direcionados em sua maior
parte para pagamento dos serviços da dívida pública, perfazendo ao longo dos
últimos anos algo em torno de 40% do orçamento da União, segundo a Auditoria
Cidadã da Dívida. Por outro lado, setores como os da saúde, educação e
saneamento totalizaram somente cerca de 4%, 3% e 0,04% dos recursos,
respectivamente.
Fruto também do processo de desnacionalização da economia
brasileira, e que se expressa no Gráfico anterior pelo IDE, o envio de remessas
de lucros e dividendos para o exterior tem crescido ao longo das últimas
décadas. Dados do Banco Central do Brasil (BACEN) indicam que a remessa de
lucros e dividendos (líquido) do país saiu de US$ 1,8 bilhão, em 1990, para US$
26 bilhões em 2013, representando transferência de riqueza para o exterior.
A reinserção subordinada e periférica de nossa economia à
dinâmica integrada de uma parte autonomizada do capital, representada aqui pelo
capital fictício, especulativo por natureza, caracterizou portanto a trajetória
da economia brasileira ao longo das últimas décadas. Um movimento que reinventa
o nosso subdesenvolvimento, que é resultado histórico e estrutural do capital,
ao atual padrão de acumulação mundial.
Em que pese estas indicações, evidentemente não podemos
aceitar, como os conservadores apregoam, o determinismo do “fim da história” ou
do “fim da política”, ou mesmo saídas econômicas muitas vezes descoladas da
correlação de forças que as envolve e as determina. Temos sim a capacidade de,
mesmo que gradativamente, melhorar ou alterar esta relação de subserviência,
conquistando minimamente certa autonomia na condução dos destinos de nosso
país. Os limites do reformismo novamente estão postos frente às crises
capitalistas atuais, crises estas que podem abrir perspectivas diferenciadas
para o futuro das nações. Os momentos históricos para isso por vezes aparecem,
por vezes são criados. Algumas vezes não os aproveitamos. É preciso, antes de
tudo, não desperdiçá-los. Se a história é feita por nós, tudo é possível.
(*) Professor do Departamento de Economia e do Programa de
Pós-Graduação em Política Social (PPGPS) da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES). Tutor do grupo PET Economia/UFES (SESU/MEC).
Créditos da foto: Arquivo


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