Esta terceira recessão que se
inicia, diferente das outras duas anteriores, está voltada para países centrais
da Zona do Euro, Alemanha, França e Itália.
Vicenç Navarro (*) - http://www.cartamaior.com.br/
Não há dúvidas de que, quando for
escrita a história da União Europeia e da Zona do Euro dentro dela, será
mostrado até que ponto uma religião laica – o neoliberalismo – pode ser
reproduzida apesar de toda a evidência empírica acumulada mostrando não apenas
que tal religião estava equivocada, mas também o enorme prejuízo que ela está
causando nas classes populares dos países da União. A religião laica se promove
com um espírito apostólico, baseado em uma fé impermeável à evidência
científica, revelando claramente sua grande falsidade. Atualmente, esta fé,
reproduzida pela maioria da mídia, está anunciando que a Espanha e a Zona do
Euro estão se recuperando, quando, na realidade, estamos entrando em outra
recessão. Vejamos os dados.
Desde que, no ano de 2007, teve
início a Grande Recessão, que para muitos países foi pior do que a Grande
Depressão, houve, na Zona do Euro, nada menos que duas recessões, consequência
da aplicação das políticas neoliberais. A primeira ocorreu no período
2008-2009. Foi seguida de uma rapidíssima recuperação (com um crescimento
econômico da Zona do Euro de somente 0,5% do PIB) no período 2009-2010, para
cair novamente em outra recessão, que durou 18 meses e que anulou o
escassíssimo crescimento que tinha acontecido na etapa de crescimento anterior.
No ano de 2012, iniciou-se outra excessivamente tímida recuperação com um
crescimento de somente 0,2% do PIB, recuperação que está sendo novamente
revertida, iniciando agora uma terceira recessão (o PIB da Zona do Euro caiu
0,2%), alcançando três recessões em cinco anos. Um recorde! Na realidade, a economia
da Zona do Euro nunca se recuperou desde a queda de 2007, quando teve início a
Grande Recessão. As pequeníssimas recuperações eram, mais do que tudo, pequenos
saltos do fundo do abismo.
Estamos agora no início da
terceira recessão
O que é importante sublinhar é
que esta terceira recessão que se inicia, diferentemente das outras duas
anteriores, está voltada para países centrais da Zona do Euro, Alemanha, França
e Itália. As outras duas anteriores tinham se centrado nos países periféricos,
Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda. De certa maneira, esta recessão é
consequência da Grande Recessão que, finalmente, atingiu em cheio o centro e o
eixo da Zona do Euro. O PIB dos três países centrais soma 8,8 trilhões de
euros, que é o tamanho da economia da China. E dado que a economia da Alemanha
(que equivale um terço do PIB da Zona do Euro) se baseia muito nas exportações,
que representam 56% de sua economia, esta queda da economia do centro da Zona
do Euro prevê uma desaceleração da economia mundial.
Os fatos políticos que estão
acontecendo no continente europeu, dos quais o conflito da Ucrânia é de grande
importância, contribuíram (apesar de não terem causado) para esta terceira
recessão. O golpe de Estado na Ucrânia, com o apoio dos governos da União
Europeia e dos Estados Unidos, iniciou uma situação de conflito, reavivando a
Guerra Fria, que já está tendo um custo econômico considerável. Mas a principal
causa da terceira recessão são as políticas neoliberais baseadas na austeridade
(os infames cortes e o desmantelamento do Estado de bem-estar social, a
diminuição dos salários e o crescimento do desemprego), que estão destruindo o
bem-estar das classes populares.
E estas políticas estão sendo
feitas para benefício e glória do que antes era chamado o capital, hegemonizado
pelo capital financeiro, e que agora se chama o 1%. Atualmente, o establishment
(ou seja, a estrutura do poder econômico, financeiro, midiático e político)
europeu, centrado na Comissão Europeia, no Banco Central Europeu, o Conselho
Europeu e o governo alemão e seus aliados, como o governo Rajoy, está
realizando tais políticas com toda crueldade, respondendo a cada crise com a
resposta previsível de que o fato de não sair da crise é porque precisam
aplicá-las inclusive com mais força e contundência, levando as classes
populares à ruína. Três recessões em cinco anos é o resultado.
E o grande drama é que as
esquerdas governantes aceitaram e continuam aceitando o dogma neoliberal. Sua
versão é a versão light das mesmas políticas. Não têm mais a ver com as
propostas econômicas dos principais partidos social-democratas de oposição,
incluindo o PSOE (cujo novo secretário-geral enfatizou, em sua entrevista ao El
País, como ponto central de seu programa econômico melhorar a competitividade
europeia e espanhola), para perceber que não há uma mudança substancial destas
políticas, sob o argumento de que estas são as únicas possíveis. Acusam as
únicas alternativas que permitem romper com esta série de recessões de
utópicas, demagógicas e uma série de epítetos desqualificativos. A experiência
histórica mostra que, para sair desta recessão crônica (que, repito, alcança
dimensões de depressão em muitos países), é necessária uma mudança quase de
180º da política aplicada.
Há alternativas
Sim, por exemplo, nos centramos
em um dos maiores problemas – o endividamento das famílias e de grandes e
pequenas empresas – a solução é fácil de ver. Os Estados têm que garantir o
crédito, tomando uma série de medidas, desde mudar a governança do euro e do BCE,
estabelecendo o crescimento econômico como objetivo deste Banco, até aumentar a
capacidade aquisitiva das classes populares com um aumento muito notável e
massivo do gasto público, incluindo o gasto em infraestruturas, não somente
físicas, mas sociais do país, facilitando o alcance da felicidade (sim, leu
certo, felicidade) como objetivo do novo modelo econômico-social, e não a
acumulação de benefícios do capital. E tudo isso não acontecerá sem uma
profunda democratização das instituições que refletem a vontade e a soberania
popular. Atualmente, a demanda mais revolucionaria existente na Europa não é a
nacionalização dos meios de produção, mas a exigência de que cada cidadão tenha
a mesma capacidade de decisão em um país, enfatizando as formas de participação
direta (o direito a decidir todos os níveis), além de democratizar as
escassamente democráticas instituições representativas.
Exigir democracia com toda
contundência e agitação (que deve excluir qualquer forma de violência) é
revolucionário, pois entra em conflito direito com as estruturas que controlam
as instituições que se autodefinem como democráticas.
Também não é afirmar que a
propriedade dos meios de produção, distribuição, persuasão e legitimação é
chave para definir o grau de liberdade, democracia e justiça existente em um
país. Mas, a não ser que os sistemas escassamente democráticos mudem, não
haverá maneira de que o resto do mudo.
O grande erro de muitas esquerdas
radicais tem sido se limitar à agitação, sem intervir na luta dentro do Estado.
Estas esquerdas devem estar na rua e nas instituições, exigindo mudanças
radicais (ou seja, que vão às raízes do problema de concentração de poder)
contra as quais as estruturas e castas de poder vão se opor de todas as
maneiras. As classes populares poderão alcançar o que desejam se se
mobilizarem. O problema principal existente na Espanha não é que a população
não seja consciente das enormes limitações da democracia espanhola, mas sim não
acreditar que isto possa mudar. Mas a história mostra que sim, é possível. Ao
contrário do que as estruturas de poder informaram, a mudança de ditadura para
democracia aconteceu como consequência da enorme mobilização popular, liderada
pelo movimento trabalhador. Foi esta mobilização que colocou fim na ditadura. E
esta mobilização podem também forçar mudanças agora, democratizando
autenticamente o país.
(*) Vicenç Navarro foi
Catedrático de Economia Aplicada da Universidade de Barcelona. Atualmente é
Catedrático de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Pompeu Fabra de
Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na Johns Hopkins University
(Baltimore, EUA) onde lecionou por 35 anos. Dirige o Programa em Políticas
Públicas e Sociais patrocinado.
Tradução: Daniella Cambaúva
Créditos da foto: Arquivo

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