Diante desse quadro trágico, o que fazer? Atribuir ao Estado
o monopólio da violência que, sob o pretexto de pacificar a sociedade por meio
do estado de direito, dispõe abertamente da vida dos seres humanos? Certamente
que não
por Adauto Novaes - http://www.diplomatique.org.br/
Como esquecer as paixões se sabemos que elas dominam grande
parte de nossas ações? Por exemplo, mesmo quando evitamos o mal, agimos, na
maioria das vezes, não movidos pela razão, mas conduzidos por medo da punição.
E o medo é uma paixão que traz com ela outras paixões. Há ainda aqueles que
tentam transformar o ódio em virtude cívica, como aconteceu recentemente no Rio
de Janeiro quando moradores da classe média aplaudiram a tortura de um jovem
negro amarrado a um poste “em nome do bem comum”: aqueles que odeiam os
vagabundos e os ladrões –“inimigos da sociedade” – podem se declarar bons
cidadãos ao dizer que, em certas circunstâncias, seu ódio é “racional”. O ódio
é sempre ódio e sempre um mal, mas hoje vício e virtude se confundem. Assim, o
ensaio de Paul Valéry sobre o fim da ideia de virtude, escrito depois do terror
da Primeira Guerra Mundial, impressiona pela atualidade: “Nosso século teria
trazido, entre tantas outras novidades excessivas, às vezes desumanas, uma
modificação tão grande e tão detestável naquilo que chamaria de sensibilidade
ética dos indivíduos, na ideia que eles fazem de si e de seus semelhantes, no
valor que eles dão à conduta e às consequências dos atos, que se deve admitir
que a era do bem e do mal é uma era superada”.
Diante de números que nos assustam – cerca de 200 milhões de
mortos em guerras e massacres em um século (só no Brasil são 50 mil a cada ano)
–, o tema das violências passionais pede reflexão: durante dois meses,
pensadores franceses e brasileiros vão pôr em debate as fontes passionais da violência
em três perspectivas: as paixões violentas, as novas formas de violência a
partir do grande salto tecnocientífico e a violência do Estado. (Ver programa
completo em www.mutacoes.com.br.)
As atuais guerras no mundo são o signo de uma nova era – de
uma mutação. Pode-se chamar essa nova modalidade de violência de “guerras civis
mundiais”, como tão bem definiu Hans Magnus Enzensberger em um ensaio publicado
na França com o título de Visões sobre a guerra civil. Passadas as duas Grandes
Guerras e com o fim da Guerra Fria, vive-se a era das guerras civis, que, neste
momento, são em torno de trinta a quarenta no mundo. Enzensberger descreve
assim a nova forma da violência: “Vemos o mapa do mundo. Localizamos as guerras
em regiões distantes, de preferência no Terceiro Mundo. Falamos de
subdesenvolvimento, atraso histórico, fundamentalismo. Temos a impressão de que
o combate incompreensível se dá longe de nós. Mas nós nos iludimos. Na
realidade, há muito a guerra civil entrou nas grandes metrópoles. Suas metástases
fazem parte da vida cotidiana das grandes cidades, não apenas em Lima e
Johannesburgo, Bombaim e Rio de Janeiro, mas também em Paris e Berlim, Detroit
e Birmingham, Milão e Hamburgo. Ela não é promovida apenas por terroristas e
serviços secretos, mafiosos e skinheads, gangues de traficantes e esquadrões da
morte, neonazistas e xerifes negros, mas também por cidadãos que do dia para a
noite se transformam em hooligans, em incendiários, em loucos furiosos
cometendo mortes em série [...]. E, se acreditamos que a paz reina sob o
pretexto de que ainda podemos comprar nossos croissants sem sermos abatidos por
atiradores emboscados, estamos iludidos [...]. Nossas guerras civis não
ganharam até agora as massas, elas são moleculares [...]. A violência está inteiramente
livre das justificativas ideológicas”.
Essa é uma descrição mais ou menos completa da explosão dos
males, não a despeito da civilização, mas graças a ela, com sua indústria da
guerra e a ideologia do “egoísmo organizado”: não é por acaso que as maiores
violências habitam (ou partem dos) países civilizados que formam os corpos para
a violência e os espíritos para a ideia da violência, como escreve Alain no
livro Marte ou a guerra julgada.
O jogo feroz ligado ao que existe de mais atual na utilização
da técnica pode ser observado naquilo que estrategistas norte-americanos chamam
de “caça ao homem”. Lemos em um livro recente – Teoria do drone,de Grégoire
Chamayou – que, em 2001, Donald Rumsfeld convencera-se de que “as técnicas
utilizadas pelos israelenses contra os palestinos poderiam simplesmente ser
empregadas em grande escala”. Ele pensava, afirma Chamayou, em particular nos
programas de “assassinatos de tiro ao alvo”, cuja existência Israel acabava de
reconhecer: “Os territórios ocupados tornaram-se”, como explica Eyal Weizman,
“o maior laboratório do mundo para os ‘thanatotactiques’ aeroportáteis”. A
guerra deixa de ser “direito de conquista” para tornar-se “direito de
perseguição” e abate. Sem ironia, um dos membros do US State Department’s Democracy
and Human Rights Bureau, Jef Hawkins, escreveu: “Há uma guerra em curso, e os
drones são a maneira mais refinada, mais precisa e mais humana de conduzi-la”.
Diante desse quadro trágico, o que fazer? Atribuir ao Estado
o monopólio da violência que, sob o pretexto de pacificar a sociedade por meio
do estado de direito, dispõe abertamente da vida dos seres humanos? Certamente
que não. Responder à violência com a violência pretensamente legítima do Estado
significa esquecer os fundamentos da política. Contra a atual destruição do
homem e do mundo pela violência, uma das possíveis saídas está naquilo que
Étienne Balibar define como organização antiviolência em seu livro As
fronteiras da democracia: “A partir do momento em que tendem a se apagar as
distinções entre segurança e insegurança, violência pública e privada, militar
e econômica, e mesmo entre violências humanas e catástrofes ditas ‘naturais’, o
problema não pode mais ser nem regular simplesmente a violência (pelo direito),
nem jogá-la para o exterior (pelo Estado), nem eliminar suas causas (pela
revolução): convém agora organizar uma ‘antiviolência’, isto é, instalar no
centro da política a ‘luta’ coletiva contra as formas da violência ao mesmo
tempo múltiplas e interdependentes”.
Adauto Novaes
foi jornalista e professor. Estudou filosofia na França. Foi
diretor, durante 20 anos, do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional
de Arte/Ministério da Cultura. Organizou diversos ciclos de conferências, sendo
o último deles "Mutações – a experiência do pensamento" (mais
informações em www.cultura.gov.br/pensamento).
Ilustração: Lollo
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