Celso
Furtado faleceu em 20 de novembro de 2004 aos 84 anos. Uma semana antes,
publicou um artigo em que trata de escolhas cruciais para o país.
Celso
Furtado - http://www.cartamaior.com.br/
Há
10 anos morria Celso Furtado, paraibano de Pombal, decano dos economistas
brasileiros, referência de retidão e espírito público na luta por um
desenvolvimento que sirva à construção de uma sociedade virtuosa e não ao
enriquecimento predatório das suas elites. Furtado faleceu em 20 de novembro de
2004 aos 84 anos de idade. Uma semana antes, publicou um artigo no Jornal do
Brasil em que trata de escolhas cruciais na pavimentação desse objetivo; uma
década depois, suas palavras falam à atualidade no debate político brasileiro.
PARA
ONDE CAMINHAMOS? - CELSO FURTADO (*)
Os
economistas da nova geração se interrogam freqüentemente sobre as causas das
baixas taxas de crescimento da economia brasileira no último quarto de século.
Os dados são surpreendentes se temos em conta que no quarto de século anterior
o país apresentou um dinamismo considerável colocando-se entre as duas ou três
economias de mais rápido crescimento em todo o mundo. Os economistas não
parecem ter explicação para essa mutação tão significativa. Um país dotado de
imensas reservas de recursos naturais e de mão-de-obra aplica uma política que
se satisfaz com uma taxa de crescimento próxima de zero.
Não
é fácil descobrir as causas desse processo mas devemos reconhecer que ele tem
origem ou é reforçado pelo chamado Consenso de Washington, que não passou de um
receituário neoliberal a serviço da consolidação da política imperial dos
Estados Unidos. De acordo com essa nova doutrina, surgida nos anos 90, os
Estados nacionais já não teriam um papel importante na criação de empregos.
Essa fórmula, que é o ideal do neoliberalismo, funcionou muito precariamente ou
não funcionou. O Brasil se endividou desbragadamente, a ponto de comprometer
sua governabilidade. Se persistirmos no caminho de crescente endividamento
externo, reverter a situação será mais e mais difícil. E mesmo se o país tentar
alguma forma de negociação com os credores, não poderemos vislumbrar solução
fácil, pois o sistema financeiro internacional age com rapidez e unidade de
comando.
Uma
alternativa para escapar a esse quadro de grande vulnerabilidade externa seria
o governo praticar uma punção interna que permitisse triplicar o superávit em
conta corrente. Todavia, esse segundo caminho, se parece lógico em termos
contábeis, é impraticável por suas implicações políticas e por exigir um
profundo reajuste do sistema fiscal visando modificar o perfil da dívida
interna.
Quando,
nos anos 90, os governantes aderiram ao famoso Consenso de Washington,
adotaram, sem maiores explicações e sem debates com a sociedade, a doutrina de
que era necessário concentrar as atenções nos mercados externos, condição
essencial para recuperar o dinamismo perdido. Contudo, ninguém foi capaz de
explicitar a razão de ser dessa mudança de estratégia, e nem por que ela seria
mais benéfica a um país populoso e continental como o nosso.
Aparentemente,
a mudança decorria do fato de que as empresas transnacionais iam controlando
progressivamente os centros de comando das atividades econômicas. Seja como
for, o resultado dessa soma perversa do consenso de Washington com as taxas de
crescimento em fase de declínio foi a desarticulação do mercado interno e do
parque industrial, acuando alguns milhões de brasileiros a buscar sobrevivência
no trabalho informal.
Hoje
ainda sofremos as consequências desses anos do “consenso”. Se, inversamente,
nos remetemos àqueles anos em que o Brasil apresentou taxas de crescimento
elevadas, ou razoáveis, deparamo-nos com outro problema de igual gravidade.
Refiro-me ao fato de que, historicamente, o dinamismo da economia brasileira se
fez acompanhar de acentuada concentração de renda, o que é uma forma espúria de
geração de poupança. Alcançamos assim o fundo do problema: a variável que
comandou o dinamismo da economia brasileira dos anos 50 ao fim dos anos 70
apoiou-se no processo de concentração da renda. Não havia como escapar a essa
dura realidade: o sistema econômico só funcionava de forma regular quando a
remuneração do capital atingia determinados níveis. Essa constatação nos
permite entender outro ponto intrigante da dinâmica da economia brasileira:
suas extravagantes taxas de juros.
É
inegável que há uma estreita ligação entre o processo de concentração de renda,
o nível das taxas de juros e as taxas de crescimento da economia. Assim, para
captar os paradoxos de nossa economia faz-se necessário ter em conta esses
múltiplos fatores, aparentemente desvinculados. Em poucas palavras: se as taxas
de juros não forem suficientemente altas (e as do Brasil inscrevem-se entre as
mais altas do mundo), os capitais estrangeiros não se sentem atraídos a
investir no país; sem esses investimentos externos (os setores internos não dão
conta das necessidades e acumulam um passivo considerável), o país tem pouca
margem para crescer. Ora, apelar imoderadamente para os investimentos externos
é aumentar de forma considerável a nossa dívida; da mesma maneira, promover o
crescimento sem critérios sociais tende a agravar fortemente a concentração da
renda.
Antes
que se diga que se trata da quadratura do círculo, convém lembrar que a reforma
fiscal, tão repetidamente prometida pelos governos recentes, é o instrumento
mais adequado para enfrentar os problemas expostos acima. Essa reforma,
contudo, não tem conseguido o apoio do Congresso Nacional. A carga fiscal no Brasil
é alta mas injusta, pois incide de forma desproporcional sobre a parte da
população de menor poder aquisitivo, já que os impostos indiretos
(essencialmente os de consumo) são relativamente os que mais pesam. Precisamos
de uma reforma que modifique a distribuição da carga fiscal, liberando as
camadas de baixa renda. Não se trata de onerar mais ainda a classe média que
paga imposto de renda, mas de corrigir um quadro de profundas desigualdades,
cujo exemplo mais notório é o das instituições bancárias que, apesar de seus
lucros fabulosos, são praticamente isentas de imposto.
A
reforma fiscal deverá corrigir essas distorções, mas não só. Seu objetivo, tal
como nos mostraram as reformas similares implantadas em países da Europa, é
também o de criar sociedades mais homogêneas. Certos setores do sistema
produtivo decerto sofrerão baixa de rentabilidade, mas é a sociedade como um
todo que lucrará com o esforço de adaptação que visa dar ao governo os meios de
enfrentar os sérios problemas sociais do país. Em realidade, uma reforma fiscal
pode ir tão longe a ponto de modificar o sistema de valores das classes
dirigentes de determinada sociedade. No nosso caso, já se fez evidente a
fragilidade das estruturas sociais resultantes de tantos decênios de
concentração de renda conjugada com baixo crescimento. Esta é uma problemática
que merece a atenção, não só dos jovens economistas, mas de toda a sociedade,
e, em particular, dos nossos governantes.
(*)
Artigo escrito em 3 de novembro de 2004, publicado em 14 de novembro de 2014 no
Jornal do Brasil.
Créditos
da foto: Arquivo
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