O STF seria imune ao dever de prestação de contas à
sociedade das suas ações e omissões? Como evitar que interesses espúrios
conduzam seus atos?
Andrei
Koerner - http://cartamaior.com.br/
À primeira vista parece paradoxal o fato de que a prestação
de contas de campanha de Geraldo Alckmin tenha sido rejeitada pelo tribunal
eleitoral de seu estado, ao mesmo tempo em que o Tribunal Superior Eleitoral
aprovou com ressalvas a prestação apresentada pela campanha da Presidenta Dilma
Rousseff. Isso indica que, para determinar o sentido político das decisões
judiciais, é, geralmente, necessário ir além do que supõe uma visão demasiado
esquemática que atribui votos de juízes seja à sua posição jurídico-doutrinária,
seja, pelo contrário, às suas atitudes e ideologias, a adesão a lideranças
políticas, alianças, pressões etc.
É sintomático que nesses dois casos – assim como em tantos
outros – a escolha popular venha sendo crescentemente colocada sob a égide de
controles realizados por corpos de funcionários, e que sua validade e efetivo
reconhecimento venha a depender de sua apreciação. A criação de comitês de
organização, supervisão e validação das regras e atos, bem como a resolução de
conflitos nas eleições é necessária na moderna democracia de massas e seu
propósito é garantir a competição política. Eles foram criados já no século XIX
para evitar a manipulação das eleições pelos donos das terras, do poder ou do
dinheiro e assumiu diferentes formas, dentre as quais a justiça eleitoral, tal
como existe em nosso país. Porém, nos últimos anos, o papel da justiça
eleitoral vem sendo ampliado por pressões de movimentos pela moralização da
política, inovações legislativas, e interpretações dos tribunais e ministério
público. Atribui-se à justiça eleitoral o papel de não só organizar e
supervisionar o processo eleitoral, mas também o de controlar as condições
subjacentes às eleições. A justiça eleitoral faz campanhas para o voto
consciente, realiza a apreciação prévia de atos e eventos da campanha
supostamente espúrios e, ainda, procura exercer em tempo real o controle sobre
as finanças das campanhas eleitorais.
Os movimentos para o controle das eleições são
complementares no que têm como modelo o cidadão que se vale apenas de seus
processos subjetivos de deliberação para apreciar as opções de campanha, que
decide de forma autônoma, isolada e com base nos programas políticos dos
candidatos. Os controles teriam o propósito de neutralizar as paixões e
interesses, permitindo ao eleitor maior acuidade ao apreciar as qualidades, os
créditos e as obrigações assumidos por cada candidato. Dessa forma, o cidadão
seria idealmente purificado das paixões da campanha política, afastado dos
conflitos de interesses, colocado como espectador dos embates provocados pelas
polaridades em disputa.
Porém, a criação de controles implica sempre o problema de
como controlar os controladores, para impedir a seletividade, o desvio ou o
abuso dos seus poderes. Toda campanha eleitoral de massa implica um esforço
coletivo de organização, de mobilização de ideias, interesses, paixões,
engajamentos e embates políticos, cujo caráter central é a sua dimensão
dinâmica e produtiva para ativar uma expressão massiva e articulada do
eleitorado. Esse esforço em condições mutáveis torna-se sujeito à censura
prévia de guardiões da virtude republicana e à apreciação formal da
documentação gerada nessas condições quase caóticas. É como se planilhas e
recibos fossem a garantia da validade das eleições e a legitimidade popular dos
eleitos dependesse da aprovação de guarda-livros que chancelam os seus atos
durante a campanha.
Sabe-se que o acompanhamento financeiro estrito, em tempo
real, das campanhas visa neutralizar os efeitos do poder econômico, associados
ao poder político, sobre o eleitor, coibindo procedimentos como o “caixa dois”,
doações encobertas, compra de votos, triangulações de recursos etc. A forma
mais importante pela qual o poder econômico está presente nas campanhas
eleitorais é o financiamento realizado por empresas. Um ponto alto do movimento
cívico pela ética na política é representado pela ação da OAB junto ao STF para
a declaração de inconstitucionalidade do financiamento de campanhas eleitorais
por empresas, pessoas jurídicas que não são titulares de direitos de cidadania.
Parece irônico o fato de que o ministro-relator do TSE que
indicou a aprovação com reservas da prestação de contas da candidatura da
presidenta Dilma Rousseff, tenha sido o mesmo que bloqueou a decisão daquela
ação, no início deste ano, quando foi a julgamento no plenário do STF. Apesar
de a votação já ser majoritária, a declaração de inconstitucionalidade pelo
tribunal não veio, porque o julgamento foi interrompido por pedido de
voto-vista apresentado pelo ministro Gilmar Mendes. Segundo a imprensa, o
relator do TSE mobilizou força-tarefa de vários órgãos para examinar
minuciosamente a prestação de contas e acabou por indicar a aprovação com
ressalvas a prestação de contas da campanha eleitoral, porque em alguns pontos
ela não respeitava as regras relativas às prestações parciais, o que foi
justificado pela campanha pelo fato de que não é possível, dentro da dinâmica
complexa e variável de uma campanha eleitoral nacional, respeitar ponto a ponto
a execução e controle do fluxo de compromissos, prestações e pagamentos.
Ou seja, a preocupação que levou à criação de procedimentos
estritos de controle, que justificaram a aprovação com ressalvas das contas de
campanha da candidata Dilma, foi a de limitar o poder econômico. Mas o
principal fator que provocou essas preocupações e controles legítimos poderia
ter sido suprimido – ou muito limitado – no início do ano, pela declaração de
inconstitucionalidade do financiamento de campanhas por empresas, que no
entanto foi interrompido pelo pedido de voto-vista do ministro. Com isso, ele
impediu a eliminação do fator determinante das preocupações com os efeitos do
poder econômico nas campanhas. É como se, ao invés de exercer seu papel de
partícipe no processo de objetivação do direito, o juiz preferisse examinar as
ações individualmente, caso a caso.
O fato é preocupante pelo que revela da dinâmica dos
tribunais superiores. O ministro-relator é rigoroso – com fundamento legal,
naturalmente – na avaliação da prestação de contas de eventos dinâmicos e
coletivos como são as campanhas eleitorais uma precisão do fluxo de entradas,
saídas e prestação de contas do uso dos recursos. Porém, não adota o mesmo
rigor no fluxo dos processos que dependem de sua apreciação e voto, e dormitam
em seu gabinete. O Judiciário, ou o STF, seria imune ao dever de prestação de
contas à sociedade das suas ações e omissões, para evitar que intenções ou
interesses espúrios venham a conduzir ou incidir sobre seus atos?
É grave, pois esses eventos são reveladores das
possibilidades abertas em nossas instituições para que o comportamento dos
juízes de tribunais superiores venha a assumir, de forma intencional ou não,
caráter faccioso. O contraste no tratamento da mesma questão – o controle dos
recursos de campanha – pelo mesmo indivíduo, Gilmar Mendes, ministro do STF e
relator do processo no TSE é elucidativo desse risco. O ministro fez uso de sua
capacidade de veto para bloquear a decisão num caso fundamental para as
eleições. Não prestou contas dos seus atos – o pedido de voto-vista e os
motivos da demora em devolver o processo a julgamento. Porém, não se furtou à
oportunidade de exigir que os mandatários eleitos cumprissem os requisitos
legais sobre as suas campanhas, de divulgar na mídia os supostos defeitos e
suas eventuais consequências. Essa inconsistência, tanto em suas ações e
omissões relativas aos recursos de campanha quanto atenção à sociedade na
prestação de contas pelos seus atos, parece revelar o comportamento estratégico
do ministro. Seria possível generalizar essa constatação e afirmar que o
comportamento dos juízes dos tribunais superiores, ao menos em questões
eleitorais, é perfeitamente possível e mesmo provável, uma vez que não há, em nosso
sistema constitucional instrumentos capazes de controla-los de modo efetivo,
nem sequer exigir justificação suficiente de suas ações e omissões.
Em conclusão, a preocupação com a transparência nas eleições
de 2014 revela que se pretende condicionar a validade das eleições não mais à
expressão da vontade popular, mas à adequação a regras e procedimentos
supervisionados pelos tribunais e funcionários. Os tempos dos juízes tornam-se
determinantes para definir a validade das eleições tanto quanto a objetividade
do direito. Mas a objetividade do direito não foi possível, porque a enunciação
da regra dependeu de comportamentos estratégicos em função de interesses
conjunturais. No entanto, os motivos que regem a combinação de atos e omissões
do juiz permanecem insondáveis. É preciso, pois, restaurar procedimentos
imparciais do andamento dos processos e julgamentos no STF, de modo que o
processamento dos casos, os fundamentos de validade e critérios de decisão
sejam conhecidos e controlados pela comunidade política. Talvez seja bom
lembrar que, em outras épocas, a plena afirmação de poderes sem contraste, que
se exercem aleatoriamente e com propósitos insondáveis foi o prenúncio de sua
decadência.
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