Hoje,
diferentemente do início dos anos 1960, quando também havia forte polarização
política, a economia capitalista brasileira é plena, o que torna mais difusos
os “inimigos do povo”
Tiago Camarinha Lopes / http://brasildebate.com.br/
Os
dois episódios expressam que a sociedade e a economia brasileira estão
concluindo uma fase transitória que conectará o período de capitalização
dirigida pelo Estado (1930 – anos 1980) a um novo período de padrão de
reprodução capitalista.
A
transição em curso significa o fim da estabilidade relativa desde a
redemocratização e a emergência de uma nova etapa histórica do capitalismo
brasileiro.
A
história da economia da América Latina no século 20 é história de sua
industrialização.
O
grande desafio era promover a internalização da produção sob o capital. Só que
o capitalismo do século 20 é um sistema de controle Estatal, em que o
crescimento precisa ser constantemente ajustado para atender demandas da base.
Caso
contrário, a coesão social extremamente frágil, num ambiente que condensa
passado e futuro num único instante, se desfaz e abre caminho para as
transformações radicais que miram ultrapassar o capitalismo.
Além
disso, a dependência estrutural de todo o continente latino-americano é um
atalho a mais para a transição internacionalista devido à condição conservadora
dos nacionalismos locais e da disparidade gritante que ela gera entre
crescimento e desenvolvimento econômico.
Depois
dos avanços iniciais da industrialização dirigida pelo Plano de Metas, o Brasil
caiu na instabilidade política do começo dos anos 1960. Naquela época, houve
uma polarização política intensa em torno de reformas que visavam a aprofundar
as conquistas democráticas obtidas pela elevação da riqueza material absoluta
até então.
Um
dos principais pontos era a Reforma Agrária. Apesar dos limites gerais impostos
pela estratégia reformista, o Brasil caminhava na direção correta de
atendimento dos anseios imediatos do povo trabalhador.
O
paralelo entre o início dos anos 1960 e o que se iniciou em 2013 vem daí: são
dois instantes de esgotamento de progresso social por passos que demandam a
partir de então uma mudança qualitativa.
No
entanto, devido ao temor concreto no contexto da Guerra Fria de então, o
processo de avanço social contido no aprofundamento do capitalismo no continente
latino-americano foi substituído pelo avanço técnico excludente.
A
partir de 1964, a exacerbação do modelo de associação subalterna ao mercado
externo aprofundou as características capitalistas de reprodução econômica no
Brasil, deixando para o futuro as questões caras à população trabalhadora do
País.
A
conclusão da industrialização “tradicional” com o II PND e a crise dos anos
1980 e 1990 marcaram uma etapa de transição para nossos dias.
O
neoliberalismo e os ajustes em relação ao novo cenário internacional de
escassez de investimentos produtivos só perdeu força a partir da decisão de
encontrar uma saída “interna” com base na integração formal dos trabalhadores
ao capitalismo de Estado com relativa preocupação social. Esta foi a mudança
iniciada em meados dos anos 2000.
O
período de estabilidade relativa entre 1994 e 2013 terminou quando a sociedade
brasileira deu sinais do esgotamento absoluto da estratégia de desenvolvimento
capitalista.
A
formação de uma massa formalizada de milhões de trabalhadores com direitos
criou a polarização que se observa hoje nos debates da superfície.
A
classe trabalhadora (composta dos mais variados estratos de renda) forma um
“bolão” extremamente heterogêneo sem condições de elaborar um projeto próprio
de renovação para o País.
De
um lado, o “popular” é um asco para a pequena burguesia e alto proletariado de
consumo elitizado. Do outro lado, o suposto refinamento artístico e intelectual
da “sociedade esclarecida” é ridicularizado em peso, inclusive por jornalistas
da grande mídia.
A
classe média massificada brasileira, o novíssimo fenômeno desde meados dos anos
2000, é um bicho de sete cabeças onde cada uma briga freneticamente com todas
as outras.
O
conservadorismo desse “bolão” é a esfinge de nossos dias, porque tudo isso
ocorre sem que se recupere as grandes questões históricas que marcam os embates
entre as classes.
Nos
anos 1960, o socialismo real funcionava como possibilidade de alternativa ao
que existe. Hoje, a ameaça exterior deste outro mundo possível assume uma forma
super caricata a partir de pequenos dissidentes como Cuba, Coreia do Norte,
Venezuela e Bolívia.
A
face comunista da grande China é automaticamente eliminada e o PC chinês é
contemplado como se seu projeto fosse o mesmo do mundo capitalista. A questão
internacional é completamente distinta em nossa geração.
O
subimperialismo brasileiro passou para o lado forte da cadeia imperialista
mundial e não há hoje uma ameaça do comunismo que parta do estrangeiro.
Só
que as propostas da mudança brotam, mesmo assim, de dentro do País, de seu
interior e das bordas da periferia do sistema. Por isso emerge o discurso de
divisória do povo brasileiro ao mesmo tempo em que se apela para os fantasmas
passados do nacionalismo.
Só
que não há mais como criar a unidade nacional contra o resto do mundo. É
imperativo, portanto, que as análises de conjuntura econômica e política passem
a ser centradas nas categorias de classe, porque a unidade nacional não pode
mais ser criada pela fuga para mundos fantásticos de conciliação de interesses
antagônicos.
A
difusão dos conflitos de classe na abstração de “uma nação brasileira” não tem
mais suporte estrutural.
Os
inimigos do povo se tornam muito mais difusos, porque a economia brasileira se
tornou capitalista em plenitude, com todas as suas contradições e
heterogeneidades.
A
posição militante em relação ao imperialismo externo terá que ser dividido com
o próprio imperialismo interno, o que eleva ainda mais o grau do desafio e
responsabilidade da classe trabalhadora brasileira na transformação do mundo.
É
neste contexto que se deve avaliar a polarização atual em comparação àquela que
antecedeu 1964, para que possamos compreender a envergadura do momento que
vivemos.
É economista pela Goethe Universitat Frankfurt a.M., Alemanha, professor da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Ciências Econômicas da UFG (Universidade Federal de Goiás) e editor associado da Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política
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