Não há debate mais urgente para o
segundo estágio do projeto de desenvolvimento em curso no País que o de rever e
discutir o significado e o papel do território nas políticas públicas nacionais
Antonio
Carlos F. Galvão / http://brasildebate.com.br/
Já há algum tempo quem lida com
políticas regional, urbana, rural ou ambiental trata de articular as noções de
espaço e sociedade – “espaço produzido” (Henri Lefèbvre) ou “território usado”
(Milton Santos), por exemplo – e insiste ou persiste na ideia de que o
território é categoria de análise fundamental, que explicita e dá visibilidade
aos confrontos, às diferenças e às tensões que permeiam as relações sociais.
Sob esse ponto de partida metodológico
do conflito identificado ao território, torna-se mais fácil contrastar os
distintos projetos dos diversos grupos e classes sociais e traçar estratégias
consistentes de desenvolvimento.
Território é expressão inequívoca da
política, dos homens, mais que das coisas.
São variadas as expectativas de uso do
território pelos múltiplos atores, razão pela qual as políticas públicas
compreendem também mediações de projetos políticos e expressões da atuação
ampla das forças da sociedade na construção de um futuro seu, ferramentas de
subversão dos condicionantes do presente, de afirmação de novas trilhas e de
desenho de utopias e anseios da população.
Tais movimentos perpassam realidades
espaciais específicas, numa dialética de construção e desconstrução das
unidades e diversidades que perfazem o todo da Nação.
Políticas não espaciais, ao contrário,
tendem a homogeneizar objetos, abstrair iniquidades (congênitas) e
desconsiderar condições importantes de existência dos fenômenos. Tendem a
segmentar os alvos, sem levar muitas vezes em conta a rica percepção da complexa
teia de relações e interações sociais, econômicas e políticas que se processam
no território, com toda a noção de totalidade, de inteireza, que este engendra.
No padrão usual de resposta às
desigualdades regionais e às demandas de ativação das economias locais,
buscamos incluir toscos critérios espaciais nas políticas macro ou setoriais ou
então produzir políticas compensatórias específicas para lidar com a dimensão
espacial do desenvolvimento, mitigando efeitos perniciosos das demais
políticas. Dessa forma, raramente vemos o território no centro das
preocupações.
Não há debate mais urgente para o
segundo estágio do projeto de desenvolvimento em curso no País que esse de
rever e discutir o significado e o papel do território nas políticas públicas
nacionais. O desdobramento do modelo exige maior atenção à dimensão territorial
das políticas.
A sociedade brasileira resistiu
inicialmente com força à adoção dos princípios neoliberais (anos 1980), para,
em seguida, vencida pela pressão da dívida, aderir além do que se poderia
esperar, a exemplo da abertura comercial (anos 1990, até 2002).
Mas, por fim, remou de novo contra a
maré, ao retomar o campo das políticas sociais e transformar o combate à fome e
à pobreza em eixo de estruturação do primeiro estágio de um novo projeto de
desenvolvimento nacional, orientado para a formação de uma sociedade de consumo
de massa.
O Brasil foi talvez o único país do
mundo a encontrar nessa conjuntura uma trilha de crescimento com distribuição
de renda, o que lhe permitiu seguir reduzindo as desigualdades sociais e
regionais na contramão dos impulsos preponderantes nas principais economias do
planeta de reconcentração da renda.
Dados recentes divulgados pela ONG Oxfam
apontam que pela primeira vez a renda do 1% mais rico deve igualar-se ou até
mesmo superar a renda dos demais 99% da população no mundo.
O País não passou incólume à crise, mas
tampouco se submeteu às orientações externas usuais. Utilizou a estabilidade
monetária, a capacidade fiscal, a oferta de financiamento de longo prazo pelos
bancos públicos, a base de recursos naturais e o potencial de expansão do
contingente populacional expressivo que ascendeu ao mercado para gerar
estímulos à reativação – ao menos por certo tempo – da dinâmica da economia.
O sucesso obtido, porém, corre riscos,
pois a capacidade de reprodução do modelo depende crucialmente da substituição
paulatina das suas fontes de dinamismo. Manter e intensificar o processo de
inclusão social é inegociável, mas há que se reforçar simultaneamente os
estímulos ao crescimento da produtividade e às práticas relacionadas à
inovação.
Há desafios maiores em dois planos. Por
um lado, os investimentos devem manter estreita relação com as grandes apostas
produtivas nacionais, especialmente as que valorizam o capital autóctone, as
práticas sustentáveis e a qualidade do mundo do trabalho. Tarefa nada trivial
no quadro de crescentes disputas competitivas e desaceleração global.
De outro, os investimentos devem
desencadear também ações e projetos – e aqui o referencial territorial das
políticas cumpre papel de destaque – capazes de assegurar uma redução
expressiva das heterogeneidades – inclusive tecnológicas – das estruturas de
produção territorialmente identificadas, garantindo infraestruturas mínimas,
bases organizacionais e meios de produção adequados para todos os biomas e as
regiões.
O ponto que desejo realçar é que, nesse
último período, reuniram-se condições excepcionais para que o território emirja
como uma referência decisiva para a reorganização do planejamento e das
políticas públicas.
E, dessa forma, para que também forneça
a base de sustentação de um segundo estágio do projeto de desenvolvimento,
reforçando seus impulsos revolucionários para a sociedade brasileira; ou seja,
aqueles disruptivos de velhas práticas políticas locais e de estruturas e
relações sociais anacrônicas perante os anseios de desenvolvimento da Nação.
Mas isso não se deu a contento até aqui.
Organizamos iniciativas para buscar
respostas ao primeiro desafio, na linha do que caracterizou o histórico
processo de industrialização brasileira. Desenhamos alvos nacionais e
encaminhamos decisões que buscaram impulsionar segmentos mais expressivos e
densos da economia.
Mesmo assim, os resultados na década
apontam para crescentes dificuldades no engate soberano da economia brasileira
aos circuitos relevantes da produção mundial, com perda de posição em setores
relevantes e estagnação da produtividade e da inovação.
Do outro lado, operamos com menor afinco
no que tange ao segundo desafio, cujos alvos são menos perceptíveis à escala
nacional. Na articulação de ações espaciais, não fomos muito além de exercícios
óbvios e primitivos de apropriação do território, que buscam alinhar ex-post
iniciativas e programas em termos de critérios de racionalidade instrumental.
Fizemos pouco ainda para lidar com as
políticas territoriais na direção de aproximar e revalorizar as conquistas no
campo das políticas sociais. Apenas num conjunto restrito de políticas públicas
logramos avançar, de forma algo pontual, na incorporação da dimensão
territorial, como em particular na expansão da infraestrutura do ensino técnico
e profissional e na interiorização das universidades.
Os dados da década dos 2000 são
eloquentes a respeito: muitas das transformações estimuladas pelo conjunto das
iniciativas de política social no País, que alteraram a face das regiões menos
abastadas, geraram oportunidades dinâmicas que não soubemos aproveitar a
contento.
Quando olhamos o desempenho no
território dessas estruturas dispersas pelas áreas da periferia vemos que foi
ali, junto à dinâmica vigorosa da agroindústria nacional, inclusive de base
familiar, que se produziram as mais expressivas taxas de crescimento da produtividade.
Todas as 20 mesorregiões geográficas em
que mais cresceu a produtividade e o PIB per capita na década dos 2000
situam-se no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O padrão de configuração espacial
que faz do Centro-Sul uma área em que são moderados os desníveis de qualidade
de vida começa a se espraiar para as regiões em que outrora a clivagem entre a
capital e o interior representava o fosso mais profundo das desigualdades
regionais brasileiras.
Há razões objetivas para se avançar na
exploração dos potenciais de crescimento dessas regiões com o apoio de um
elenco de políticas públicas territoriais articuladas entre si e com as demais
instâncias da federação e preparadas para desdobrar, no plano econômico,
resultados alcançados no campo social. O desafio nesse segundo plano parece
promissor.
É doutor em economia aplicada - IE/Unicamp (sanduíche Sussex - UK), mestre em teoria econômica pelo IPE/USP e bacharel UnB. É diretor do CGEE e analista CT&I do CNPq
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