Aqueles que promovem a guerra
contra o terror e os que semearam o terrorismo por todos os cantos do mundo
estão tentando de apropriar dos ataques.
Alejandro Nadal (La Jornada) / http://cartamaior.com.br/
A luta para se apropriar de um
duelo político tem longa trajetória, sobretudo quando o luto tem origem em um
crime. Plutarco narra, em Vidas paralelas, como, depois do assassinato de
César, no Senado romano, as distintas facções batalharam para ocupar o vazio
que engendra o desolamento público para se consolidar no poder. Cássio e Brutus
disputam a aflição popular com Antônio, mas este conseguiu com sua elegia
fúnebre colocar o povo de Roma contra os assassinos de César e desencadear uma
guerra civil.
Um paralelismo pode ser traçado
com os esforços para recuperar espaços públicos após o ataque contra a Charlie
Hebdo. Esta sempre foi uma revista irreverente com o poder, militar ou
econômico, iconoclasta com todos os símbolos de hierarquias, laicas ou
religiosas. É e foi inimiga do racismo e da discriminação em todas suas
manifestações. Sempre lutou contra as ditaduras e a arbitrariedade, o poderio
militar e o intervencionismo neocolonial. Mas agora, em pleno duelo social,
buscam de todas as formas se apropriar dos símbolos e bandeiras que
acompanharam a Charlie em sua luta. Estão buscando instrumentalizar a tragédia
para promover o terrorismo de Estado. Hoje, corre-se o risco de transformar
tudo isto em um episódio mais da luta contra o terror e do suposto choque entre
civilizações.
A concentração em Paris, no
domingo passado, teve dois públicos. No primeiro, o povo e suas organizações,
sindicatos, associações civis, manifestando repúdio ao covarde assassinato dos
redatores da Charlie Hebdo e dos reféns do metrô de Paris. Muitos deles
seguiram de perto a épica luta do semanário e de seu predecessor, Hebdo
HaraKiri, desde 1969. Luta a partir da esquerda contra o despotismo,
exploração, engano e intimidação.
Mas, naquele dia, marcharam em
Paris também chefes de Estado e líderes políticos de partidos e organizações
que sempre abriram as portas para a guerra, para o comércio de armas e para o
capital financeiro. Marcharam lado a lado Merkel, Rajoy e Renzi, chefes da
austeridade neoliberal que atualmente destrói a Europa. Não faltaram Netanyahu
e outros amigos do militarismo. Também se somaram a eles alguns notáveis como
guardiões da ordem moral burguesa e da obesa hipocrisia dos bons costumes,
amigos do racismo e da descriminação. Faltaram somente Marine Le Pen e os
neonazistas para completar o quadro.
Outros, nem sequer tiveram que
viajar a Paris para explorar o momento. Em Atenas, o primeiro-ministro
aproveitou a oportunidade para fazer investidas contra o Syriza por sua postura
sobre a imigração. Do México, o governo manifestou seu pesar: deve saber que
isso não anula sua grave responsabilidade nos assassinatos (Tlatlaya) e
desaparecimentos (Ayotzinapa).
A ironia é brutal: os inimigos da
Charlie Hebdo estão lutando para disputar o duelo, os que promovem a guerra
contra o terror e os que semearam esta praga por todos os cantos do mundo.
Criticou-se a imprudência dos
caricaturistas da Charlie Hebdo. Mas é preciso responder com uma reflexão
política, porque é disso que estamos falando, de política, não de bons costumes
ou de etiqueta. Por que é tão importante a liberdade de expressão? A resposta é
clara: a liberdade de expressão é irmã gêmea da liberdade de consciência, e as
demais liberdades carecem de sentido sem elas. Em particular, sem liberdade de
expressão, a liberdade de associação política fica sem sentido.
Não é exagero afirmar que a
liberdade de consciência e a liberdade de expressão são as mais importantes do
catálogo de liberdades republicanas. Por isso, os limites da liberdade de
expressão são apenas três: a não incitação à violência ou um crime e a
difamação. A blasfêmia não é uma das restrições, como deixa claro a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Na imprensa internacional,
sobretudo no mundo anglo-saxão, a Charlie Hebdo tem sido apresentada como um veículo
obstinado em ridicularizar o fundamentalismo islâmico, como se este tivesse
sido seu único trabalho. Nada mais afastado da verdade. Os primeiros inimigos
da Charlie foram o fascismo, o racismo, o neocolonialismo, o militarismo e a
pena de morte. O fanatismo religioso e seu apoio hipócrita a estruturas de
exploração esteve sempre em seu catálogo de inimigos a vencer, mas não é o
único nesta lista.
O luto público é a parteira de
uma análise política fraca porque a dor e a sede de vingança escurecem o
raciocínio e tornam a racionalização difícil. Por isso, o oportunismo encontra
nas lamentações um terreno fértil para suas estratagemas. Hoje, mais do que
nunca, é necessária uma análise política cuidadosa. A tragédia em Charlie Hebdo
não é parte dessa farsa chamada guerra contra o terror, nem de um suposto
choque de civilizações.
Tradução de Daniella Cambauva
Créditos da foto: Israel Ministry
of Foreign Affairs / Flickr
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