Extraído de A Era dos Direitos, publicado no Brasil pela
editora Campus. / http://www.outraspalavras.net/
1. Se examinarmos o longo curso da história humana, mais que
milenar, teremos de reconhecer – quer isso nos agrade ou não – que o debate
sobre a abolição da pena de morte mal começou. Durante séculos, o problema de
se era ou não lícito (ou justo) condenar um culpado à morte sequer foi
colocado. Jamais se pôs em dúvida que, entre as penas a infligir a quem violou
as leis da tribo, ou da cidade, ou do povo, ou do Estado, estivesse também a pena
de morte, ou mesmo que a pena de morte fosse a rainha das penas, aquela que
satisfazia ao mesmo tempo as necessidades de vingança, de justiça e de
segurança do corpo coletivo diante de um dos seus membros que se havia
corrompido. Para começar, tomemos um livro clássico, o primeiro grande livro
sobre as leis e sobre a justiça de nossa civilização ocidental: as Leis, os
Nómol, de Platão.
No Livro IX, Platão dedica algumas páginas ao problema das
leis penais. Reconhece que “a pena deve ter a finalidade de tornar melhor”; mas
aduz que, “se se demonstrar que o delinquente é incurável, a morte será para
ele o menor dos males.” Não cabe aqui mencionar todas as vezes em que se fala
nesse livro sobre a pena de morte em relação a uma série muito ampla de delitos,
desde os delitos contra as divindades e os cultos, até aqueles contra os
genitores, contra o pai e a mãe, ou, em geral, contra os homicídios
voluntários. Falando precisamente de homicidas voluntários, Platão diz em certo
momento que eles devem necessariamente “pagar a pena natural”, ou seja, a de
“padecer o que fizeram”. Chamo a atenção para o adjetivo “natural” e para o
princípio do “padecer” o que se fez. Esse princípio, que nasce da doutrina da
reciprocidade – que é dos pitagóricos (mais antiga ainda, portanto, que a de
Platão) e que será formulada pelos juristas medievais e repetida durante
séculos com a famosa expressão segundo a qual o malum passionis deve
corresponder ao malum actionis – atravessa toda a história do direito penal e
chega até nós absolutamente inalterado. Como veremos mais adiante, é uma das
justificações mais comuns para a pena de morte.
Citei esse célebre texto da Antiguidade apenas para
apresentar um testemunho – o mais autorizado possível – de como a pena de morte
foi considerada não só perfeitamente legítima, mas até mesmo “natural”, desde
as origens de nossa civilização, bem como do fato de que aceitá-la como pena
jamais constituiu um problema. Poderia citar muitos outros textos. A imposição
da pena de morte constitui tão pouco um problema que até mesmo uma religião da
não-violência, do noli resistere malo, uma religião que, sobretudo nos
primeiros séculos, levantava o problema da objeção de consciência ao serviço
militar e à obrigação de portar armas, uma religião que tem por inspirador
divino um condenado à morte, jamais se opôs substantivamente à prática da pena
capital.
2. É preciso chegar ao Iluminismo, no coração do século
XVIII, para encontrar pela primeira vez um sério e amplo debate sobre a
licitude ou oportunidade da pena capital, o que não quer dizer que o problema
não tivesse jamais sido levantado antes. A importância histórica – que nunca
será suficientemente sublimada – do famoso livro de Beccaria (1764) reside
precisamente nisto: trata-se da primeira obra que enfrenta seriamente o
problema e oferece alguns argumentos racionais para dar-lhe uma solução que
contrasta com uma tradição secular.
É preciso dizer, desde já, que o ponto de partida usado por
Beccaria em sua argumentação é a função exclusivamente intimidatória da pena.
“A finalidade [da pena] não é senão impedir o réu de causar novos danos aos
seus concidadãos e demover os demais de fazerem o mesmo. Veremos em seguida a
importância desse ponto de partida para o desenvolvimento do tema. Se esse é o
ponto de partida, trata-se de saber qual é a força intimidatória da pena de
morte com relação a outras penas. E esse é o tema que se põe ainda hoje e que
foi várias vezes posto pela própria Amnesty International. A resposta de
Beccaria deriva do Princípio introduzido no parágrafo intitulado “Doçura das
penas”. O princípio é o seguinte: “Um dos maiores freios contra os delitos não
é a crueldade das penas, mas a infalibilidade dessas, e, por conseguinte, a
vigilância dos magistrados, e a severidade de um juiz inexorável, a qual, para
ser útil à virtude, deve ser acompanhada de uma legislação doce.” Suavidade das
penas. Não é necessário que as penas sejam cruéis para serem dissuasórias.
Basta que sejam certas. O que constitui uma razão (aliás, a razão principal)
para não se cometer o delito não é tanto a severidade da pena quanto a certeza
de que se será de algum modo punido. Subsidiariamente, Beccaria introduz também
um segundo princípio, além da certeza da pena: a intimidação nasce não da
intensidade da pena, mas de sua extensão, como é o caso, por exemplo, da prisão
perpétua. A pena de morte é muito intensa, ao passo que a prisão perpétua é
muito extensa. Portanto, a perda perpétua total da própria liberdade tem mais
força intimidatória do que a pena de morte.
Ambos os argumentos de Beccaria são utilitaristas, no
sentido de que contestam a utilidade da pena de morte “nem útil nem
necessária”, como se expressa Beccaria ao iniciar sua argumentação. A esses
argumentos, Beccaria aduz um outro, que provocou a maior perplexidade (e que,
de fato, foi hoje em grande parte abandonado). Trata-se do chamado argumento
contratualista, que deriva da teoria do contrato social ou da origem
convencional da sociedade política. Esse argumento pode ser assim enunciado: se
sociedade política deriva de um acordo dos indivíduos que renunciam a viver em
estado de natureza e criam leis para se proteger reciprocamente, é inconcebível
que esses indivíduos tenham posto à disposição de seus semelhantes também o
direito à vida.
Sabe-se que o livro de Beccaria teve estrepitoso sucesso.
Basta pensar na acolhida que lhe deu Voltaire: grande parte da fama do livro de
Beccaria se deve sobretudo ao fato de que foi acolhido favoravelmente por
Voltaire. Beccaria era um ilustre desconhecido, ao passo que na pátria das
luzes, que era a França, Voltaire era Voltaire. Sabe-se também que, por
influência do debate sobre a pena de morte que teve lugar naqueles anos, foi
emanada a primeira lei penal que aboliu a pena de morte: a lei toscana de 1786,
que no §51, depois de uma série de considerações (entre as quais emerge, mais
uma vez, sobretudo a função intimidatória da pena, mas sem negligenciar a sua
função também corretora a correção do réu, também ele filho da sociedade e do
Estado), declara: “abolir para sempre a pena de morte contra qualquer réu, seja
primário ou contumaz, e ainda que confesso e convicto de qualquer delito
declarado capital pelas leis até aqui promulgadas, todas as quais ficam
revogadas e abolidas no que a isso se refere.”
Talvez ainda mais clamoroso tenha sido o eco que obteve na
Rússia de Catarina II, em cuja célebre Instrução, proposta já em 1765, ou seja,
imediatamente após a publicação do livro de Beccaria, pode-se ler o seguinte:
“A experiência de todos os séculos prova que a pena de morte jamais tornou uma
nação melhor. Segue-se uma frase que parece extraída do livro de Beccaria:
“Portanto, se demonstro que, no estado ordinário da sociedade, a morte de um
cidadão não é nem útil nem necessária, terei feito vencer a causa da
humanidade.
3. Contudo, deve-se acrescentar que, apesar do sucesso
literário do livro junto ao público culto, não só a pena de morte não foi
abolida nos países civilizados (ou que se consideravam civilizados com relação
à época e aos países considerados bárbaros, quando não mesmo selvagens), mas a
causa da abolição tampouco estava destinada a predominar na filosofia penal da
época. Poderíamos fazer muitas citações. Escolho três delas, entre os mais
ilustres pensadores da época: Rousseau, no Contrato social (que saiu em 1762, dois
anos antes do livro de Beccaria), o grande Kant e o ainda maior Hegel. No
capítulo do Contrato social intitulado “Do direito de vida e de morte” Rousseau
refutou antecipadamente o argumento contratualista. Não é verdade, disse ele,
que o indivíduo, ao se acordar com os outros para constituir o Estado,
reserve-se um direito à vida em qualquer caso: “É para não ser vítima de um
assassino que alguém consente em morrer caso venha a ser assassino. Portanto, a
atribuição ao Estado do direito à própria vida serve não para destruí-la, mas
para garanti-la contra o ataque dos outros.”
Poucos anos depois da publicação de Dos delitos e das penas,
um outro ilustre escritor político, Filarigieri, em Scienza della legislazione
(1783), a maior obra italiana de filosofia política da segunda metade do século
XVIII, caracterizou como “sofisma” o argumento contratualista de Beccaria,
afirmando que é verdade que, no estado de natureza, o homem tem direito à vida,
sendo também verdade que não pode renunciar àquele direito, mas pode perdê-lo
com seus delitos. Se pode perdê-lo no estado de natureza, não se vê por que não
possa perdê-lo no estado civil, que é instituído precisamente com a finalidade
não de criar um novo direito, mas de tornar seguro o exercício do antigo
direito, o do ofendido de reagir com força à força, de rechaçar com a ofensa à
vida do outro a ofensa contra a própria vida.
Os dois maiores filósofos da época, Kant e Hegel – um antes,
outro depois da Revolução Francesa -, defendem uma rigorosa teoria retributiva
da pena e chegam à conclusão de que a pena de morte é até mesmo um dever. Kant
– partindo da concepção retributiva da pena, segundo a qual a função da pena
não é prevenir os delitos, mas simplesmente fazer justiça, ou seja, fazer com
que haja uma perfeita correspondência entre o crime e o castigo (trata-se da
justiça como igualdade, daquela espécie de igualdade que os antigos chamavam de
“igualdade corretiva”) – afirma que o dever da pena de morte cabe ao Estado e é
um imperativo categórico, não um imperativo hipotético, fundado na relação
meio-fim. Cito diretamente o texto, selecionando a frase mais significativa:
“Se ele matou, deve morrer. Não há nenhum sucedâneo, nenhuma comutação de pena
que possa satisfazer a justiça. Não há nenhuma comparação possível entre uma
vida, ainda que penosa, e a morte; e, por conseguinte, nenhuma outra
compensação entre o delito e a punição, salvo a morte juridicamente infligida
ao criminoso, mas despojada de toda maldade que poderia, na pessoa de quem a
padece, revoltar a humanidade.”
Hegel vai além. Depois de ter refutado o argumento
contratualista de Beccaria, negando que o Estado possa nascer de um contrato,
afirma que o delinquente não só deve ser punido com uma pena correspondente ao
crime cometido, mas tem o direito de ser punido com a morte, já que somente a
punição o resgata e é somente através dela que ele é reconhecido como ser
racional (aliás, ele é “honrado”, diz Hegel). Num aderido, porém, ele tem a
lealdade de reconhecer que a obra de Beccaria teve, pelo menos, o efeito de
reduzir o número de condenações à morte.
4. O infortúnio quis que, enquanto os maiores filósofos da
época continuavam a defender a legitimidade da pena de morte, um dos maiores
defensores de sua abolição tivesse sido, como se sabe, Robespierre, num famoso
discurso à Assembleia Constituinte de maio de 1791; ou seja, Robespierre, o
mesmo que iria passar à história, na época da Restauração (a época em que Hegel
escreveu sua obra), como o maior responsável pelo terror revolucionário, pelo
assassinato indiscriminado (de que ele próprio foi vítima, quase que como para
demonstrar a inexorabilidade da lei segundo a qual a revolução devora os seus
próprios filhos, a violência gera violência, etc.). Esse discurso de
Robespierre deve ser recordado porque contém uma das condenações mais
convincentes, do ponto de vista da argumentação, da pena de morte. Ele refuta,
em primeiro lugar, o argumento da intimidação, afirmando não ser verdade que a
pena de morte seja mais intimidadora do que as demais penas; e aduzia o exemplo
quase ritual, já utilizado por Montesquieu, do Japão: na época, afirmava-se
que, embora as penas aplicadas no Japão fossem atrozes, o Japão era um país de
criminosos. Depois, além desse argumento, refuta também aquele, fundado na
justiça. Finalmente, aduz o argumento – que Beccaria não recordara – da
irreversibilidade dos erros judiciários. Todo o discurso se inspira no
principio de que a suavidade das penas (e aqui a derivação de Beccaria é
evidente) é prova de civilização, enquanto a crueldade delas caracteriza os
povos bárbaros (mais uma vez, o Japão). Não nos afastaremos muito da verdade se
dissermos que o mais célebre e inteligente continuador (quase repetidor) de
Beccaria foi – desgraçadamente – Robespierre.
5. Apesar da persistência e da predominância das teorias
antiabolicionistas, não se pode dizer que o debate sobre a pena de morte,
levantado por Beccaria, tenha deixado de produzir efeitos. A contraposição
entre abolicionistas e antiabolicionistas é demasiadamente simplista e não
representa exatamente a realidade. O debate sobre a pena de morte não visou somente
à sua abolição: num primeiro momento, dirigiu-se para a limitação dessa pena a
alguns crimes graves, especificamente determinados; depois, para a eliminação
dos suplícios (ou crueldades inúteis) que, via de regra, a acompanhavam; e, num
terceiro momento, para a supressão de sua execução publica. Quando se deplora
que a pena de morte ainda exista na maioria dos Estados, esquece-se que o
grande passo à frente realizado pelas legislações de quase todos os países, nos
dois últimos séculos, constitui na diminuição dos crimes puníveis com a pena de
morte. Na Inglaterra, no início do século XVIII, ainda eram mais de duzentos os
casos, entre os quais até mesmo o de crimes hoje punidos com poucos anos de
prisão. Mesmo nos ordenamentos nos quais a pena de morte sobreviveu (e ainda
sobrevive), ela é aplicada, quase exclusivamente, no caso de homicídio
premeditado. Ao lado da diminuição dos delitos capitais, inclui-se entre as
medidas atenuadoras, a supressão da obrigação de aplicá-la nos casos previstos,
que é substituída pelo poder discricionário do juiz ou dos jurados de aplicá-la
ou não. No que se refere à crueldade da execução, basta a leitura daquele
fascinante livro de Foucault que é Vigiar e Punir, no qual se descrevem – no
capítulo intitulado “A ostentação dos suplícios” – alguns episódios aterradores
de execuções capitais precedidas de longas e ferozes sevícias. Um autor inglês
do século XVIII, citado por Foucault, escreve que a morte-suplício é a arte de
conservar a vida no sofrimento, subdividindo-a em mil mortes e obtendo-se –
antes que cesse a existência – as mais refinadas agonias. O suplício é, por
assim dizer, a multiplicação da pena de morte: como se a pena de morte não
bastasse, o suplício mata uma pessoa várias vezes. O suplício responde a duas exigências:
deve ser infamante (seja pelas cicatrizes que deixa no corpo, seja pela
ressonância de que é acompanhado) e clamoroso, ou seja, deve ser constatado por
todos.
Esse elemento nos remete ao tema da publicidade e, portanto,
à necessidade de que a execução fosse pública (publicidade que, deve-se
observar, não desaparece com a supressão das execuções públicas, já que se
estende ao desfile em meio à multidão dos deportados encadeados rumo aos
trabalhos forçados). Hoje, a maioria dos Estados que conservaram a pena de
morte a executam com a discrição e a reserva com que se executa um doloroso
dever. Muitos Estados não abolicionistas buscaram não apenas eliminar os
suplícios, mas tornar a pena de morte o mais possível indolor (ou menos cruel).
Naturalmente, isso não quer dizer que o conseguiram: basta
ler relatórios sobre as três formas de execução mais comuns – a guilhotina
francesa, o enforcamento inglês e a cadeira elétrica norte-americana – para
compreender que não é inteiramente verdade que tenha sido eliminado também o
suplício, já que a morte nem sempre é tão instantânea como se deixa crer, ou se
busca fazer crer, por parte dos que defendem a pena capital. De qualquer modo,
a execução não se realiza mais à vista do público, ainda que o eco de uma execução
capital na imprensa – e não se deve esquecer que, num regime de liberdade de
imprensa, tem amplo espaço e difusão a imprensa sensacionalista – substitua a
antiga presença do público na praça, diante do patíbulo. Sobre a vergonha da
publicidade como argumento contra a pena de morte, gostaria de me limitar a
recordar as invectivas de Victor Hugo, que por toda a vida a combateu
apaixonadamente, com toda a potência do seu estilo eloqüente (ainda que hoje
nos possa parecer grandiloquente). Recentemente, foi publicado na França um
livro que recolhe os escritos de Victor Hugo sobre a pena de morte: uma fonte
de citações. Da leitura dessas páginas, resulta que ele batalhou, da juventude
à velhice, contra a pena de morte, em todas as ocasiões, inclusive como politico,
mas também através dos escritos, das poesias e dos romances. As invectivas
quase sempre partem da visão ou da descrição de uma execução. Em Os Miseráveis,
ele escreveu: “0 patíbulo, quando está lá, erguido para o céu, tem algo de
alucinante. Alguém pode ser indiferente quanto à pena de morte e não se
pronunciar, não dizer nem sim nem não; mas isso só enquanto não viu uma
guilhotina. Quando vê uma, o abalo é violento: ele é obrigado a tomar partido a
favor ou contra.” Hugo recorda que, quando tinha dezesseis anos, viu uma ladra
que um carrasco marcava com ferro em brasa: “Ainda conservo no ouvido, quarenta
anos depois, e sempre conservarei na alma, o espantoso grito da mulher. Era uma
ladra; mas, a partir daquele momento, tornou-se para mim uma mártir.”
Chamei a atenção para essa evolução no interior do instituto
da pena de morte para mostrar que, embora essa pena não tenha sido abolida, a
polêmica iluminista não deixou de ter efeitos. Gostaria ainda de acrescentar
que, frequentemente, mesmo quando a pena de morte é pronunciada por um
tribunal, nem sempre é executada: ou é suspensa, e depois comutada, ou o
condenado é agraciado. Nos Estados Unidos, o caso de Gary Gilmore, que foi
justiçado em janeiro de 1977, no estado de Utah, provocou grande comoção porque,
desde 1967 (há dez anos), ninguém fora justiçado. Em 1972, uma famosa sentença
da Suprema Corte estabeleceu que muitas das circunstâncias em que se aplicava a
pena capital eram anticonstitucionais, com base na VIII Emenda, que proíbe
impor penas cruéis e desproporcionais (“unusual”). Porém, em 1976, uma outra
decisão mudou a interpretação, afirmando que a pena de morte nem sempre viola a
Constituição, com o que se abriu caminho para uma nova execução, precisamente a
de Gilmore. O fato de que uma condenação à morte tenha suscitado tantas
discussões e reanimado as associações abolicionistas mostra que, mesmo nos
países onde ainda existe a pena capital, há uma opinião pública vigilante e
sensível, que obstaculiza sua aplicação.
6. Do que disse até aqui, resulta já bastante evidente que
os argumentos pró e contra dependem quase sempre da concepção que os
debatedores têm da função da pena. As concepções tradicionais são sobretudo
duas: a retributiva, que repousa na regra da justiça como igualdade (já a vimos
em Kant e em Hegel) ou correspondência entre iguais, segundo a máxima de que é
justo que quem realizou uma má ação seja atingido pelo mesmo mal que causou a
outros (a lei de talião, do olho-por-olho, de que é exemplo conhecidíssimo o
inferno de Dante), e, portanto, de que é justo (assim o quer a justiça) que
quem mata seja morto (não tem direito à vida quem não a respeita, perde o
direito à vida quem a tirou de outro, etc.); e a preventiva, segundo a qual a
função da pena é desencorajar, com a ameaça de um mal, as ações que um
determinado ordenamento considera danosas. Com base nessa concepção da pena, é
óbvio que a pena de morte só se justifica se se puder demonstrar que sua força
de intimidação é grande e superior à de qualquer outra pena (incluindo a prisão
perpétua). As duas concepções da pena se contrapõem também como concepção ética
e concepção utilitarista; elas se fundem em duas teorias diversas da ética, a
primeira numa ética dos princípios ou da justiça, a segunda numa ética
utilitarista (que predominou nos últimos séculos e predomina até hoje no mundo
anglo-saxônico). Pode-se dizer que, em geral, os adeptos da pena de morte
apelam para a primeira (como, por exemplo, Kant e Hegel), enquanto os
adversários se valem da segunda (como, por exemplo, Beccaria).
Permitam-me expor um episódio histórico, frequentemente
relembrado num debate como o nosso, que remonta nada menos do que a 428 a.C.,
retirado das Histórias de Tucídides. Os atenienses têm de decidir sobre a sorte
dos habitantes de Mitilene, que se haviam rebelado. Falam dois oradores: Cléon
afirma que os rebeldes devem ser condenados à morte porque lhes deve ser
imposta a lei de talião e a punição que merecem; além disso, ele aduz que os
outros aliados saberão assim que quem se rebela é punido com a morte; Diódoto,
ao contrário, afirma que a pena de morte não serve para nada, já que “é
impossível (e dá provas de grande ingenuidade quem assim pensa) que a natureza
humana, quando se empenha com paixão na realização de qualquer projeto, possa
ter um freio na força das leis ou em qualquer outra ameaça, de modo que é
preciso evitar ter excessiva confiança em que a pena de morte seja uma garantia
para impedir o mal.” Continua sugerindo a observância de um critério de
utilidade, segundo o qual – em vez de matar os habitantes de Mitilene – deve-se
buscar transformá-los em aliados.
7. Na realidade, o debate complica-se um pouco mais porque
as concepções da pena não são somente essas duas (embora essas duas sejam, de
longe, as predominantes). Recordo, pelo menos, outras três: a pena como
expiação, como emenda e como defesa social. Dessas, a primeira parece mais
favorável à abolição do que à conservação da pena de morte: para expiar preciso
continuar a viver. Mas pode-se também afirmar que verdadeira expiação é a
morte, – a morte entendida como purificação da culpa, como cancelamento da
mácula: o sangue se lava com sangue. A rigor, essa concepção da pena é
compatível tanto com a tese da manutenção quanto com a da abolição da pena de
morte.
A segunda – a da emenda – é a única que exclui totalmente a
pena de morte. Mesmo o mais perverso dos criminosos pode se redimir: se ele for
morto, ser-lhe-á vedado o caminho do aperfeiçoamento moral, que não pode ser
recusado a ninguém. Quando os iluministas disseram que a pena de morte deveria
ser substituída pelos trabalhos forçados, justificaram frequentemente essa tese
afirmando que o trabalho redime. No comentário ao livro de Beccaria, Voltaire
escreveu o seguinte, referindo-se à política penal de Catarina II, favorável à
abolição da pena de morte: “Os delitos não se multiplicaram por causa dessa
humanidade e quase sempre ocorreu que os culpados, enviados à Sibéria, lá se
tornaram pessoas de bem”; e, pouco após, acrescenta: “Se os homens forem
obrigados a trabalhar, tornar-se-ão pessoas honestas.” (Caberia fazer um longo
discurso sobre essa ideologia do trabalho, cuja extrema, macabra, demoníaca
consequência se revelou nas palavras colocadas na entrada dos campos de
concentração nazistas – “Arbeit macht frei”, ou seja, “o trabalho liberta”).
A terceira concepção, a da defesa social, é também ambígua:
geralmente, os defensores da pena como defesa social foram e são
abolicionistas, mas o fazem por razões humanitárias (e também porque recusam o
conceito de culpa que está na base da concepção redistributiva, a qual só
encontra sua própria justificação se admitir a liberdade do querer). Todavia, a
defesa social não exclui a pena de morte: poder-se-ia afirmar que o melhor modo
para se defender dos criminosos é eliminá-los.
8. Embora sejam muitas as teorias da pena, as duas
predominantes são as que chamei de ética e de utilitarista. De resto, trata-se
de um contraste que vai além do contraste entre dois modos diversos de conceber
a pena, já que remete a uma oposição mais profunda entre duas éticas (ou
morais), entre dois critérios diversos de julgamento do bem e do mal: ou com
base em princípios bons, acolhidos como absolutamente válidos, ou com base em
bons resultados, entendendo-se por bons resultados os que levam à maior utilidade
do maior número, como afirmavam os utilitaristas (Beccaria, Bentham, etc.). Uma
coisa, com efeito, é dizer que não se deve fazer o mal porque existe uma norma
que o proíbe (por exemplo, os dez mandamentos); outra é dizer que não se deve
fazer o mal porque ele tem consequências funestas para a convivência humana.
Dois critérios diversos e que não coincidem, porque pode muito bem ocorrer que
uma ação considerada má com base em princípios tenha consequências
utilitaristicamente boas, e vice-versa.
A julgar pela disputa a favor ou contra a pena de morte,
como vimos, dir-se-ia que os defensores da pena de morte seguem uma concepção
ética da justiça, enquanto os abolicionistas são seguidores de uma concepção
utilitarista. Reduzidos a seus termos mais simples, os dois raciocínios opostos
poderiam ser resumidos nestas duas afirmações: para uns, “a pena de morte é
justa”; para os outros, “a pena de morte não é útil”. Justa, para os primeiros,
independentemente de sua utilidade. Desse ponto de vista, o raciocínio kantiano
e irrepreensível: considerar o condenado à morte como um espantalho
significaria reduzir a pessoa a meio, ou, como se diria hoje,
instrumentalizá-la. Não útil, para os segundos, independentemente de qualquer
consideração de justiça. Em outras palavras: para os primeiros, a pena de morte
poderia até não ser útil, mas é justa; para os segundos, poderia até ser justa,
mas não é útil. Portanto, enquanto os que partem da teoria da retribuição veem
a pena de morte como um mal necessário (e talvez até como um bem, como vimos no
uso de Hegel, já que reconstitui a ordem violada), os que partem da teoria
intimidatória julgam a pena de morte como um mal não necessário e, portanto,
como algo que de modo algum pode ser considerado um bem.
9. Não há dúvida de que, a partir de Beccaria, o argumento
fundamental dos abolicionistas foi o da força de intimidação. Mas a afirmação
de que a pena de morte teria menos força intimidatória do que a pena a
trabalhos forçados era, na época, uma afirmação fundada em opiniões pessoais,
derivadas, por sua vez, de uma avaliação psicológica do estado de espírito do
criminoso, não sufragada por nenhuma comprovação factual. Desde que foi
aplicado ao estudo da criminalidade o método da investigação positiva, foram
feitas pesquisas empíricas sobre o maior ou menor poder dissuasório das penas,
comparando-se os dados da criminalidade em períodos e em lugares com ou sem
pena de morte. Essas investigações, naturalmente, foram facilitadas nos Estados
Unidos pelo fato de existirem estados em que vigora a pena de morte e outros em
que ela foi abolida. No Canadá, um Moratorium Act de 1967, que suspendeu a pena
de morte por cinco anos, permitiu estudar a incidência dessa pena sobre a
criminalidade, comparando-se o presente com o passado. Um exame cuidadoso
desses estudos mostra que, na realidade, nenhuma dessas pesquisas forneceu
resultados inteiramente convincentes. Basta pensar em todas as variáveis
concomitantes que têm de ser levadas em conta, além da relação simples entre
diminuição das penas e aumento ou diminuição dos delitos. Por exemplo: a
certeza da pena, problema já colocado por Beccaria (o que dissuade mais, a
gravidade da pena ou a certeza de que ela será aplicada?). Somente se a certeza
permanecer estável nos dois momentos é que a comparação pode ser feita. É o
caso do terrorismo na Itália: o que contribuiu mais para a derrota do
terrorismo, o agravamento das penas ou o melhoramento dos meios para descobrir
os terroristas?
Diante dos resultados até agora obtidos por essa análise
(nem sempre probatórios), tem-se buscado refúgio nas pesquisas de opinião: as
opiniões dos juízes, dos condenados à morte, do público. Mas é preciso começar
dizendo: em matéria de bem e de mal, o princípio da maioria não vale; e
Beccaria o sabia muito bem, tanto que escreveu o seguinte: “Se me opusessem o
exemplo de quase todos os séculos e de quase todas as nações que puniram alguns
delitos com pena de morte, responderia que esse exemplo se anula em face da
verdade, contra a qual não há prescrição, que a história dos homens nos dá a
ideia de um imenso arquipélago de erros, entre os quais sobrenadam, poucas e
confusas, e a grandes intervalos de distância, algumas verdades.” Em segundo
lugar, as pesquisas de opinião provam pouco, já que estão sujeitas às mudanças
de humor das pessoas, que reagem emotivamente diante dos fatos de que são
espectadoras. E sabido que a atitude do público diante da pena de morte varia
de acordo com a situação de menor ou maior tranquilidade social. Se não
tivessem ocorrido o terrorismo e o aumento da criminalidade nestes últimos
anos, é provável que o problema da pena de morte sequer tivesse sido levantado.
A Itália foi um dos primeiros Estados a abolir a pena de morte (em 1889, no
código penal Zanardelli): quando Croce escreveu a Storia d’Italia, em 1928,
afirmou que a abolição da pena de morte tornara-se um dado dos costumes, e que
a simples ideia da restauração da pena capital era incompatível com o
sentimento nacional. Apesar disso, poucos anos depois, o fascismo a restaurou
sem grandes abalos na opinião pública, com exceção do protesto estéril de
alguns antifascistas. Entre esses, recordo o livro de 1932 escrito por Paolo
Rossi, que depois se tornou ministro da República e também presidente da Corte
Constitucional, La pena di morte e la sua critica, no qual o autor pronuncia
uma nítida condenação da pena de morte contra o projeto de novo código penal
então em elaboração, recorrendo principalmente ao argumento da emenda. O lado
débil do argumento que baseia a exigência de abolir a pena de morte na sua
menor força de intimidação reside no fato de que, caso fosse possível
demonstrar de modo irrefutável que a morte tem (pelo menos em determinadas
situações) um poder de dissuasão maior do que o de outras penas, ela deveria
ser mantida ou restabelecida. Não se pode ocultar a gravidade da objeção. Por
isso, penso que seria, não diria um erro, mas um grande limite fundar a tese da
abolição apenas num argumento utilitarista.
É verdade que existem outros argumentos secundários, mas
que, a meu ver, não são decisivos. Há o argumento da irreversibilidade da pena
de morte e, portanto, da irreparabilidade do erro judiciário. Mas os
antiabolicionistas podem sempre retorquir que a pena capital, precisamente por
sua gravidade e irremediabilidade, deve ser aplicada somente em caso de certeza
absoluta de culpa. Nesse caso, tratar-se-ia de introduzir uma nova limitação à
aplicação. Mas, se a pena de morte é justa e dissuasória, não importa que seja
pouco aplicada, mas sim que exista. Há, além disso, um argumento contrário de
peso: o das recidivas. Num opúsculo recente sobre a pena de morte (1980), o
último que tive oportunidade de ler, publicado na popular coleção francesa “Que
sais-je?”, o autor – Marcel Normand – defende ferrenhamente a pena de morte e insiste
no argumento da recidiva: cita alguns casos (que reconheço impressionantes) de
assassinos condenados à morte e depois agraciados, os quais, quando retornaram
à liberdade, apesar dos muitos anos de prisão, voltaram a cometer homicídios.
Surge a inquietadora questão: se a condenação à morte tivesse sido executada,
uma ou mais vidas humanas teriam sido poupadas. E a conclusão: para poupar a
vida de um delinquente, a sociedade sacrificou a vida de um inocente. O
leitmotiv do autor é o seguinte: enquanto os abolicionistas se põem do ângulo
do criminoso, os antiabolicionistas se situam no das vítimas. Quem tem mais
razão?
10. Ainda mais embaraçosa é a pergunta que me formulei há
pouco, a respeito da tese utilitarista: o limite da tese está numa pura e simples
presunção, a de que a pena de morte não serve para fazer diminuir os crimes de
sangue. Mas se se conseguisse demonstrar que ela previne tais crimes? Então o
abolicionista teria de recorrer a outra instância de caráter moral, a um
princípio posto como absolutamente indiscutível (um autêntico postulado ético).
E esse argumento só pode ser derivado do imperativo moral “não matarás”, que
deve ser acolhido como um princípio de valor absoluto. Mas como? Poder-se-ia
retrucar: o indivíduo tem o direito de matar em legítima defesa, enquanto a
coletividade não o tem? Responde-se: a coletividade não tem esse direito porque
a legítima defesa nasce e se justifica somente como resposta imediata numa
situação na qual seja impossível agir de outro modo; a resposta da coletividade
é mediatizada através de um processo, por vezes até mesmo longo, no qual se
conflitam argumentos pró e contra. Em outras palavras, a condenação à morte
depois de um processo não é mais um homicídio em legítima defesa, mas um
homicídio legal, legalizado, perpetrado a sangue frio, premeditado. Um
homicídio que requer executores, ou seja, pessoas autorizadas a matar. Não é
por acaso que o executor da pena de morte, embora autorizado a matar, tenha
sido sempre considerado como um personagem infame: leia-se o livro de Charles
Duff, Manual do Carrasco, recentemente traduzido em italiano, no qual o
carrasco é apresentado de modo grotesco como o cão, o amigo fiel da sociedade.
Entre outras coisas, aduz-se – para negar a eficácia intimidatória da pena de morte
– o caso de um carrasco que se torna, por sua vez, assassino, e que deve ser
justiçado. O Estado não pode colocar-se no mesmo plano do indivíduo singular. O
indivíduo age por raiva, por paixão, por interesse, em defesa própria. O Estado
responde de modo mediato, reflexivo, racional. Também ele tem o dever de se
defender. Mas é muito mais forte do que o indivíduo singular e, por isso, não
tem necessidade de tirar a vida desse indivíduo para se defender. O Estado tem
o privilégio e o benefício do monopólio da força. Deve sentir toda a
responsabilidade desse privilégio e desse beneficio. Compreendo muito bem que é
um raciocínio difícil e abstrato, que pode ser tachado de moralismo ingênuo, de
pregação inútil. Mas busquemos dar uma razão para nossa repugnância frente à
pena de morte. A razão é uma só: o mandamento de não matar. Não vejo outra.
Fora dessa razão última, todos os demais argumentos valem pouco ou nada; podem
ser contraditos por argumentos que têm, mais ou menos, a mesma força
persuasória. Dostoiévski o disse magnificamente, quando pôs na boca do Príncipe
Michkin as seguintes palavras: “Foi dito: ‘Não matarás.’ E, então, se alguém
matou, por que se tem de matá-lo também? Matar quem matou é um castigo
incomparavelmente maior do que o próprio crime. O assassinato legal é
incomparavelmente mais horrendo do que o assassinato criminoso.”
De resto, precisamente porque a razão última da condenação
da pena de morte é tão elevada e árdua, a grande maioria dos Estados continua a
praticá-la, e continuará a fazê-lo, apesar das declarações internacionais, dos
apelos, das associações abolicionistas, da nobilíssima ação da Amnesty
International. Apesar disso, acreditamos firmemente que o desaparecimento total
da pena de morte do teatro da história estará destinada a representar um sinal
indiscutível do progresso civil. Esse conceito foi muito bem expresso por John
Stuart Mill (um ator que amo): “Toda a história do progresso humano foi uma
série de transições por meio das quais costumes e instituições, umas após outras,
foram deixando de ser consideradas necessárias à existência social e passaram
para a categoria de injustiças universalmente condenadas.”
Estou convencido de que esse será também o destino da pena
de morte. Se me perguntarem quando se cumprirá esse destino, direi que não sei.
Sei apenas que o seu cumprimento será um sinal indiscutível do progresso moral.
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