De forma crítica e direta, os informativos comentam os
principais temas veiculados na mídia e que seriam decisivos na vida do Brasil.
Bernardo Kucinski / http://cartamaior.com.br/
Sinopse: Durante o mandato presidencial de Lula, entre os
anos de 2003 e 2006, Bernardo Kucinski atuou como assessor especial da
Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e reúne nesse
livro impressos escritos diariamente guardados em envelopes e entregues ao
presidente na primeira hora do dia. As cartas narram de forma exclusiva o
processo de criação do Fome Zero, os embates em torno do salário-mínimo e o
estouro do escândalo do mensalão. De
forma crítica e direta, os informativos, também usados para pautar as reuniões
diárias da cúpula do governo, comentam os principais temas veiculados na mídia
e que seriam decisivos na vida do Brasil. Cartas a Lula revela as decisões e
posições adotadas pelo presidente, e apresenta uma maneira singular de conhecer
a história recente do país.
Abaixo, texto de Bernardo Kucinski sobre seu livro:
Antigamente se dizia que governar é abrir estradas. No
governo Lula eu diria que governar era enfrentar crises. As crises nunca
faltaram. Começaram antes mesmo da posse, com a campanha de terrorismo
financeiro que levou Lula a fazer um acordão com os bancos para ter condições
de governabilidade. Avalizado por Palocci e Meirelles, esse pacto não escrito,
mas que incluía metas de contenção de gastos,
amarraria suas mãos e travaria o governo durante os dois primeiros anos
de mandato, provocando forte tensão interna e deprimindo o presidente.
Assumido o governo deu-se de cara o caos em torno do
programa Fome Zero. Caminhões e caminhões de mantimentos eram enviados ao
governo por grandes empresas pressurosas em agradar e não se sabia o que fazer
com aquilo tudo. Esse foi o tema principal das primeiras Cartas Criticas. Desse
programa, no entanto, surgiria depois o Bolsa Família, uma revolução que
instituiu o pobre como sujeito de direitos de cidadania e exigiu para o seu
funcionamento a criação do primeiro cadastro nacional dos pobres, base de todas
as atuais políticas publicas de cunho social.
Seguiu-se a batalha da reforma da previdência, principal
projeto de reformas do governo Lula. Uma reforma necessária devido às
transformações demográficas no país, mas que contrariava as bases sindicalistas
do petismo. A Carta Crítica tentou desenvolver os argumentos lógicos pela
reforma que foram pouco aproveitados. A muito custo, a reforma acabou
emplacando e sua seqüela foi o fenômeno Psol, o surgimento de uma oposição ao
PT pela esquerda, tratada numa Carta Especial.
Ao mesmo tempo, instalava-se o imbróglio das rádios
comunitárias, perseguidas pelo Ministério das Comunicações no governo Lula,
mais ainda que nos anteriores. Muitas eram falsamente comunitárias, outras de
proselitismo religioso. Para desgosto profundo de Lula e decepção do campo
popular, nada se resolveu. Foi um dos problemas que a Casa Civil, toda poderosa
no governo Lula, delegava a uma comissão especial para propor soluções que
nunca saiam.
Em agosto desse primeiro ano de mandato ocorreu a tragédia
de Alcântara: a explosão do foguete que matou 21 técnicos e dirigentes do nosso
programa espacial. Lembro que na ocasião senti no desastre uma espécie de
prenúncio do que seria o governo Lula. Felizmente meu pressentimento estava
furado. Mas a tragédia nos atrasou em vinte anos nosso programa espacial.
Alcântara para mim é até hoje o símbolo da nossa condição de sociedade
periférica, dependente e sem um projeto nacional. A natureza nos deu ali o
melhor local do planeta terra para o lançamento de foguetes e no entanto até
hoje não fizemos daquilo uma indústria rentável, um polo de lançamentos a
serviço de todos os países.
Nessa mesma época a Carta Crítica começa a abordar a questão
dos mortos e desaparecidos durante a ditadura, a partir de extensas matérias e
documentos inéditos publicados pelo Correio Braziliense sobre a guerrilha do
Araguaia. Vivia-se um paradoxo. Muitos dos presos ou torturados durante a
ditadura estavam agora no governo, inclusive o presidente e o ministro chefe da
Casa Civil. Tinham a tarefa de governar esse país gigantesco, atender demandas
sociais reprimidas e solucionar problemas complexos. A revisão dos horrores da
ditadura, ao arriscar uma crise na relação com os militares não ajudaria. As
cartas abordando esse tema algumas vezes até quase minha saída do governo,
refletem essa contradição. Foi também meu desassossego com esse tema que me
levou - entre outras razões - a sair do
governo pouco antes do final do mandato. Sentia crescente desconforto por estar
no coração de um aparelho de Estado que a rigor não abjurara seus crimes,
cometidos pouco tempo antes.
A análise da grande mídia, a condutora ideológica da
oposição no governo Lula, ocupa lugar de destaque nas cartas. Já no primeiro
semestre de governo, em junho, surgiu na mídia o escândalo do Banestado e das
contas CC5, criadas secretamente pela Circular numero 5 do Banco Central,
usadas durante anos por centenas de pessoas e empresas para remeter divisas
para exterior. Foi criada uma CPI que o
governo administrou de modo hesitante, provocando muita critica da mídia. É provável que por deter informações
explosivas sobre o Banestado, José Dirceu tenha provocado a campanha que por
fim o derrubaria dois anos depois. O mal estar do Banestado, como Carta Critica
chamou esse episódio, acabou abafado.
Para produzir a Carta Critica não bastava saber o que se
passava fora do governo, era preciso saber também o que se passava dentro.
Conhecer as preocupações do presidente e suas reações às cartas. Minha equipe
passou a investigar internamente o funcionamento do governo,
principalmente o que não funcionava. A
imprensa pouco sabe desses assuntos. Assim nasceram, entre outras, as cartas
sobre a crise da aftosa. Descobrimos um dos principais mecanismos que fazem com
que o Brasil não funcione: todos os programas federais – o combate à aftosa era
um deles - são implantados através de convênios com os Estados, a maioria
incluindo contra-partidas. Se a Secretaria de Agricultura de um Estado não
elabora um programa de combate à aftosa no seu estado e não o apresenta, não
tem convênio. Não tem combate à aftosa. E muitas não o faziam. Daí os percalços
que se vêem até hoje em programas como Mais Médicos, Minha Casa Minha Vida.
As dificuldades de projetos e políticas públicas decolaram,
seja por ineficácia da máquina administrativa, seja pela negação das verbas
pela equipe econômica, que foi objeto de muitas Cartas Criticas especiais mono
temáticas. Assim produzimos a Carta Crítica especial sobre o couro Wet Blue que
exportamos quase de graça para a China fabricar calçados que vão competir
deslealmente com nossa indústria de calçados; sobre o ambicioso Plano Naval,
criado para repor a frota sucateada pelo governo FHC; sobre as a ausências de
campanhas para evitar o grande número de mortes no trânsito.
Por iniciativa de Lula, as cartas passaram a ser entregues
também a outros ministros, a começar pelo chamado núcleo duro do governo: Zé
Dirceu, Palocci além de Gushiken que já recebia como meu chefe imediato. Logo
foram incluídos outros ministros e auxiliares, em algumas ocasiões chegando a
quinze destinatários, sempre em mãos, já impressas e em envelopes lacrados. Não
circulavam pela intranet para evitar vazamentos. Assim as cartas foram se tornando um
instrumento coletivo de trabalho. Várias
vezes aborrecido com as cartas, Lula quis me demitir. No último momento
recuava.
Mais de uma vez o ministro Palocci pediu minha cabeça e
Gushiken não deu. Desde o início, as cartas criticavam as políticas recessivas
de Palocci. Passou a ser uma marca da Carta Critica dar combate ao Paloccismo
dentro do governo. Em algumas ocasiões, reconheço, até exagerada ou o que é
pior, previsível. As cartas a Lula, portanto, não eram neutras nem ingênuas.
Era um exercício duro e consciente que só não foi desautorizado por Lula porque
tomávamos extremo cuidado nas informações e caprichávamos nos seus conteúdos
didáticos. Lula via as vantagens de ter esse instrumento. Dava a ele uma
alavancagem nas reuniões e nos encontros com ministros. No início, adotei a
linha editorial anti-paloccista por iniciativa própria, de forma intuitiva.
Explicava a anomalia dos juros no Brasil, os mais altos do mundo, martelando na
tecla da necessidade de redução dos juros. Tornou-se tão insistente e pesada
minha cobrança que a cada véspera da reunião do Copom, Lula ficava nervoso.
Depois, conseguiu com muita pressão cortar alguns pontos na Taxa Selic, mas uma
década depois voltávamos à estaca zero, com juros anômalos, os mais altos do
planeta, numa demonstração de domínio absoluto dos bancos e do capital rentista
sobre nossa economia.
Créditos da foto: *Divulgação

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