Testemunha engajada da independência de Moçambique, em 1975,
e da guerra civil que se seguiu a ela, o grande escritor Mia Couto apropria-se
do português para reinventá-lo. Como se o trabalho com a língua lhe permitisse
oferecer aos seus concidadãos uma renovação do mundo
por Sébastien Lapaque / http://www.diplomatique.org.br/
Branco e moçambicano, Mia Couto, nascido em 5 de julho de
1955 em Beira, na margem do Oceano Índico, é biólogo de profissão e “escritor
nas horas vagas”. Quando se evoca um escritor africano, imaginamos geralmente
que este compõe suas obras em inglês, como o nigeriano Wole Soyinka e a
sul-africana Nadine Gordimer, em francês, como o marfinense Ahmadou Kourouma,
ou ainda em árabe, como o egípcio Alaa Al-Aswany...
Couto escreve em português.
Artesão de uma língua clássica, precisa e sóbria, distinta
do crioulo empregado em Cabo Verde, na Guiné-Bissau e na Guiné Equatorial, mas
prima do português quente e temperado falado em Angola e no Brasil, Couto
reivindica o uso com muita humildade. “O português moçambicano – ou ainda,
neste momento, o português de Moçambique – é por si só um lugar de conflitos e
ambiguidades. A adesão moçambicana à lusofonia é carregada de reservas,
aparentes recusas, aprovações desconfiadas”, explicava em 2001, em um discurso
feito na Universidade de Faro, em Portugal.1 António Emílio Leite Couto,
apelidado Mia quando ainda era criança porque amava os gatos, adora as posições
desfavoráveis e as contradições produtoras de sentido. Continua: “Sou um branco
que é africano; um ateu não praticante; um poeta que escreve em prosa; um homem
com nome de mulher; um cientista que tem poucas certezas sobre a ciência; um
escritor em terra de oralidade”. Filho do jornalista e poeta Fernando Couto
(1924-2013), nativo da região do Porto, emigrado para Moçambique, ele olha com
ironia para sua situação pessoal em um país de 25 milhões de habitantes.
“Pertenço a uma tribo quase extinta. Somos hoje entre 2 mil e 3 mil.” Lendo sua
obra, entendemos que essas considerações étnicas lhe importam pouco, pois para
ele “cada homem é uma raça”,2 e aí se encontra, sem dúvida, sua única doutrina
política. Mas ele não esquece que os habitantes de Moçambique aprenderam a
desconfiar dos brancos, os mezungos, e da língua que falam, o português
percebido como um instrumento de opressão. As caravelas desapareceram há muito
tempo do porto de Lourenço Marques, que se tornaria Maputo, mas a libertação,
ao final de cinco séculos de colonização, data apenas de 1975. Na obra de
Couto, muitos personagens expressam esse sentimento de despersonalização. Assim
é em A varanda do Frangipani, falso romance policial evocando o turbulento
período pós-independência. “Sempre estudei a missão, com os padres. Eles
moldaram meus modos, calibraram minhas expectativas. Eles me educaram em uma
língua que não era materna...” E um branco que ficou em Moçambique se preocupa
em se “desaportuguesar”: “Desculpem meu português, eu já não sei que língua
falo, minha gramática está toda rebocada e da cor desta terra. Não é apenas meu
falar que agora está diferente. É meu pensamento”.3
O português como butim de guerra
Em 1975, mais de 80% dos habitantes não falavam português;
eles ainda são 60% nos dias de hoje. Pensando na proximidade da África do Sul,
do Zimbábue, da Zâmbia e da Tanzânia, que falam inglês, os dirigentes da Frente
de Libertação de Moçambique (Frelimo) foram tentados a adotar o inglês como a
língua oficial, para apagar qualquer traço da presença portuguesa. No primeiro
congresso do movimento nacionalista, em 1962, essa questão foi debatida. A
decisão (redigida em inglês...) de fazer do português um veículo de comunicação
entre as diversas etnias e uma língua de unificação do país assinalou a
transformação reivindicada de um instrumento de dominação colonial em seu
oposto. “O português foi adotado não como uma herança, mas como o mais
importante troféu de guerra”, observa Couto, ecoando a famosa frase do escritor
argelino Kateb Yacine: “A língua francesa foi e continua sendo um butim de
guerra”. Assim, “o governo moçambicano fez mais pela língua portuguesa do que
os séculos de colonização, por seu próprio interesse nacional, para a defesa da
coesão interna, para a construção de sua própria interioridade”.4
O Moçambique português era um país improvisado à beira da
água e ao longo dos balcões da burocracia, “um vestígio de Estado, uma espécie
de cadáver empoeirado conservando sua forma graças à imobilidade do meio onde
se encontra, sem esperar nada além, para se dissolver, de um dedo que queira
tocá-lo”, observava, estupefato, um viajante francês no meio do século XIX.5 No
século XX, nada tinha mudado. Longe das cidades portuárias onde tinha sido
educada uma minoria de “assimilados”, negros que se beneficiavam de um status
que lhes permitia servir à administração, os moradores do interior continuavam
usando as línguas bantus. Em 1975, 41 dessas línguas indígenas foram
reconhecidas como “línguas nacionais” pela nova Constituição, e o português foi
mantido como “língua oficial”. Se acrescentamos a isso a linguagem dos sinais,
também registrada pela Constituição, usam-se em Moçambique 43 línguas – e
minoritariamente o árabe, o indiano e o chinês. A obra de Couto nasceu nesse
campo magnético linguístico inédito: o idioma português não é a língua dos
moçambicanos, é a da “moçambicanidade”. Uma utopia? O país precisava disso ao
final da guerra civil, que durou de 1976 a 1992 e fez 1 milhão de mortos.
“Uma boa história era uma arma mais poderosa do que um fuzil
e uma faca”, descobre, maravilhado, o narrador de Jerusalém.6 A vida e o
destino de Couto se baseiam nessa frase. Militante pela independência de sua
terra natal, jornalista para a revista Tempo e para o jornal Notícias de Maputo
nos anos 1970, ele se tornou um poeta engajado no início dos anos 1980, depois
um prosador desengajado em busca de uma vibração mais justa, mais íntima e
lírica.7 Ele escolheu promover o diálogo entre os vivos e os mortos, o visível
e o invisível, “apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim,
porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de
gravidez”.8 Depois de uma primeira coletânea de poemas publicada em seu país em
1983,9 seus romances e contos traduzidos em cerca de vinte línguas lhe
permitiram impor uma relação inédita com o mundo real, tributário ao mesmo
tempo da tradição literária ocidental e da oralidade africana. “Amplifique-se
de muito ouvido. É que nós aqui vivemos muito oralmente”, escreve em um de seus
romances, em forma de arte poética e manifesto literário.10
Brincriar e falinventar
Acompanhando o nascimento de uma nação que ele quis que
crescesse como um poema, Couto trabalhou para “moçambicar” o português, como
Mário de Andrade e os modernistas de São Paulo o tinham abrasileirado no
primeiro quarto do século XX, a fim de inventar um imaginário político e
literário nativo. Por meio da capital angolana, Luanda, cujos intelectuais e
artistas se comunicavam mais diretamente com o Rio de Janeiro do que os de
Maputo, sua ambição o vinculou a modelos brasileiros como João Guimarães Rosa,
Jorge Amado e Manuel Bandeira, que souberam inventar sua identidade com
palavras de artista. Na obra de Couto, em que abundam os neologismos, as
palavras-malas e os jogos de linguagem, esse exercício de apropriação é
fascinante. Para qualificar seu trabalho, o escritor elaborou o verbo
brincriar, nascido da conjunção de brincar e criar. Dopando o português mais
puro de palavras emprestadas de todas as línguas nacionais de Moçambique para
impor um modelo narrativo novo, ele reivindica o prazer de falinventar.
Com palavras que ele parece redescobrir a cada vez que
digita uma letra em seu teclado, esse escritor tem o dom de tornar sensível a
relação entre os homens e a terra, concretos os sonhos das crianças e quase
suportável o peso da infelicidade. Nativo de um país onde dispõe de apenas
alguns milhares de leitores, ele precisa contar com uma comunidade de 250
milhões de lusófonos e com as traduções para que seu canto seja ouvido. Assim,
ele fala não apenas para Moçambique, mas para o mundo. Nele, o local nunca se
fecha na singularidade e derruba sem cessar os muros para se articular com o
universal, ilustrando a fórmula do poeta português Miguel Torga: “O universal é
o local sem muros”. “A escrita não é nem uma função, nem uma missão”, certifica
esse claro africano de prosa musical, intensa, criativa e afetuosa. “Escrevo
para ser feliz. A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner contava histórias
para que seus filhos doentes dormissem. Escrevo para fazer dormir um mundo que
me parece doente. E assim invento histórias.”11 Ao longo do tempo, estas
últimas se casaram com as grandiosidades e as misérias da África contemporânea.
Depois do ciclo das descolonizações e das guerras civis, brevíssimos sonhos de
paz foram esmagados e humilhados pela “indecência daqueles que enriquecem
graças a tudo e a todos”, lamenta um escritor menos desengajado do que se diz.
Aos africanos de seu século, Couto quer oferecer as palavras que lhes
permitirão revogar o desencantamento do homem ocidental. Pois “os tempos de
hoje são alvejante esbranquiçando as maravilhas”, escreve ele em O fio das
missangas.12Couto pretende contar tanto sobre o alvejante quanto sobre as maravilhas...
Sébastien Lapaque
*Sébastien Lapaque é escritor. Sua última obra é Théorie de
Rio de Janeiro [Teoria do Rio de Janeiro], Actes Sud, Arles, 2014.
Ilustração: Lollo
1 “Luso-afonias, a
lusofonia entre viagens e crimes”, em E se Obama fosse africano?, Cia. das
Letras, São Paulo, 2011.
2 Vinte e zinco,
Caminho, Alfragide, 1999.
3 A varanda do
Frangipani, Cia. das Letras, São Paulo, 2007.
4 Ibidem.
5 Charles Guillain,
Documents sur l’histoire, la géographie et le commerce de l’Afrique orientale
[Documentos sobre a história, a geografia e o comércio da África Oriental],
Bertrand, Paris, 1856, citado por René Pélissier, Les campagnes coloniales du
Portugal, 1844-1941 [As campanhas coloniais de Portugal, 1844-1941], Pygmalion,
Paris, 2004.
6 Publicado no Brasil
com o título de Antes de nascer o mundo, Cia. das Letras, São Paulo, 2009.
7 Ver o DVD de
entrevistas intitulado Umas palavras, Bia Corrêa do Lago entrevista prosadores
e poetas, Som Livre, 2006.
8 Antes de nascer o
mundo, op. cit.
9 Raiz de orvalho,
Associação dos Escritores Moçambicanos, Maputo, 1983. Reedição Editorial
Caminho, Lisboa, 2009.
10 O fio das
missangas, Cia. das Letras, São Paulo, 2009.
11 Entrevista
publicada na revista Época, 25 abr. 2014.
12 O fio das
missangas, op. cit. A destacar igualmente A chuva pasmada, Caminho, Alfragide,
2004, e A confissão da leoa, Cia. das Letras, São Paulo, 2012.
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