Escritor uruguaio influenciou gerações de jovens rebeldes e
permanece atual. Ao contrário de tantos, ele soube articular grandes
construções da utopia com lentas mudanças do cotiano
Por Deni Rubbo e Tiago Villa / http://outraspalavras.net/
O mundo ultimamente tornou-se estranho e desagradável. E
isso parece materializado com o anúncio da morte do escritor uruguaio Eduardo
Galeano (1940-2015). Foi de câncer, essa doença que nunca respeito mando de
campo. Para nós, o impacto foi tão forte comparável à perda de um amigo ou um
parente próximo. De repente o dia ficou pequenino, menos poético, mais
conservador, menos delirante, mais injusto. E o transbordar da paixão que tanto
Galeano frisava? Parece que no dia de sua partida, ele também fez as malas e
sumiu do mundo feito um passarinho triste, desterrado de seu ninho. Tudo ficou
acinzentado, normal demais, terrível demais.
Não temos a intenção de fazer um balanço de sua obra e a
reconstrução de sua trajetória. Outras pessoas mais capazes certamente farão
isso com mais precisão e rigor. Gostaríamos apenas de realizar modestamente um
ligeiro depoimento sobre a relação amorosa que tivemos com os livros de Eduardo
Galeano. Afinal, o exercício de recordar, do latim re-cordis, é tornar a passar
pelo coração, como está na epígrafe de um de seus livros, O livro dos abraços.
Ler As veias abertas da América Latina durante a
adolescência foi decisivo para tudo o que vem depois para estes garotos
franzinos que, assim como Galeano, sonhavam desde pequenos em ser jogadores de
futebol. Era a história da América Latina, a região das veias abertas, que era
contada nesse livro. Mas era escrita de maneira peculiar, inimitável, como a
história de um pirata ou uma canção de amor: delicada e cortante, como a vida.
A narrativa parecia constituída de diversos gêneros: um coquetel explosivo de
análise política e histórica, jornalismo, literatura e documentos. Um gol de
placa.
Era um pouco demais para ele ser aplaudido pelos campos
aprisionados do saber especializado ou pelo fanatismo político acorrentado
pelas doutrinas asfixiantes. Aos primeiros, defensores de uma linguagem
hermética, deu a seguinte resposta: “suspeito que o fastio serve para dizer a
ordem estabelecida: confirma que o conhecimento é uma privilégio das elites”.
Aos segundos disparou: “talvez essa literatura de paróquia esteja tão longe da
revolução como a pornografia está longe do erotismo”.
A sensação de cada página, cada parágrafo, cada frase, cada
palavra era deliciosamente desesperadora. Era como se descobríssemos que havia
uma janela nunca aberta, e uma vez destravada, surgia uma paisagem e horizonte
infinitos. Parecia que ele tinha nos bolsos as melhores palavras para se
expressar com o mundo: denunciava o que doía e compartilhava o que dava
alegria.
Fato é que um novo mundo se abria. Um continente se
apresentava naquelas páginas com mil histórias e memórias, com mil dores e
esperanças, com mil momentos e pessoas, aquelas entregues ao esquecimento de
nosso continente. Era o ponto de vista dos vencidos, dos marginalizados, dos
párias e tudo indicava que tinham muito que dizer. Galeano driblou a história
dos vencedores. Um silêncio parecido com a estupidez tinha sido quebrado. Desde
então, nunca mais fechamos essa janela.
Tempos depois fomos conhecendo outros livros de sua autoria,
que carregavam a mesma verve narrativa: uma estranha acidez misturada com
ternura. Parecia mais radical a sua linguagem. Ele optou em relatar a memória
social latino-americana com histórias em pedacinhos. “Para que a gente escreve,
se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na
igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a
razão do coração. Sábio doutores de Ética e Moral serão os pescadores das
costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a
linguagem que diz a verdade”.
A literatura passou a ser um caldo mais grosso no seu
coquetel, mas sem perder o caráter provocador, radical e subversivo à ordem
estabelecida. Contudo, ao contrário do que os mais apressados dizem, Galeano
não renegou o conteúdo político d’As veias abertas, apenas seguiu o conselho
dos sábios pescadores colombianos para uma forma que expressasse mais a
convergência entre prosa e conto. Ele temia as formas de burocratização das
palavras, do amor, da política, do futebol, muito embora As veias não sejam um
livro burocrático.
Como um mendigo que implora apenas por gesto de rebeldia na
sociedade contemporânea, prestou toda solidariedade aos movimentos que sonham e
anunciam outra realidade possível. Galeano despertou o gatilho da imaginação e
a vontade da transformação em muitos que o leram. Ele possuía uma doença rara:
sofria de obsessão pela memória da América Latina. Assim como Walter Benjamin
nas suas Teses sobre o conceito de história apostava que “o dom de despertar no
passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo
vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.
Uma promissora hipótese para avançarmos na caracterização da
obra do escritor uruguaio é o conceito de “romantismo revolucionário”, definido
pelo sociólogo Michael Löwy. Segundo o sociólogo franco-brasileiro o romantismo
é mais do uma escola literária, mas uma estrutura de sensibilidade que começa
no século XVIII e perdura até os dias de hoje. Sua manifestação ecoa em todos
os campos do saber: artes, literatura, política, sociologia. Trata-se de um
grito “contra o advento da moderna civilização capitalista, uma revolta contra
a irrupção da sociedade industrial/burguês fundamentada na racionalidade
burocrática, na reificação mercantil, na quantificação da vida social e uma
manifestação do ‘desencantamento do mundo’”. Ela pode assumir diversas
tonalidades: regressivas e reacionárias, mas também utópicas e revolucionárias.
No caso da obra de Galeano, parece mais adequado o romantismo revolucionário,
já que seu legado pode dar nome à cultura política mais geral que costurou
projetos e utopias de diferentes matrizes durante a história, ancorada numa
visão de ruptura autêntica com a modernidade capitalista.
E agora, o que resta sem Galeano? Galeanar, pois. Continuar
perseguindo obsessivamente o encontro com novas utopias. Galeanar as pequenas
construções do cotidiano, galeanar os laços afetivos construídos ternamente com
pessoas por uma mágica chamada de afinidade. Construir apaixonadamente caminhos
abertos à esperança. Mas também indignar-se com um mundo que prometeu
diuturnamente paz e justiça social e em nome da ganância e do livre mercado
entregou-nos um mundo pior do que havia prometido.
É por essas e outras que, infelizmente, os livros de Galeano
são atuais. Torcemos para que seu legado não se transforme em um mausoléu
sagrado, mas que sua crítica profana à modernidade capitalista, sem deuses nem
fetiches, se estenda as novas gerações como uma leitura estratégica
imprescindível para enfrentar os novos demônios do século XXI. Vencidos da
América Latina, galeanemos o mundo! Esta é a crônica do abraço. Do abraço à
Eduardo Galeano.
Tiago Villa é licenciado em Ciências Sociais e funcionário
da USP.
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