O jornal aceita acriticamente a doutrina aprovada: os EUA são
os donos do mundo, e o são por direito e por boas razões.
Noam Chomsky, do AlterNet / http://cartamaior.com.br/
Uma reportagem de primeira página é dedicada às falhas
jornalísticas expostas pela principal revista acadêmica de crítica da mídia em
uma matéria publicada na revista Rolling Stone sobre um estupro em um campus
americano. A derrapagem jornalística é tão grave que também é o tema da
principal reportagem na editoria de negócios, com uma página interna inteira
dedicado à continuação das duas matérias. Em tom de choque, ambas fazem
referência a vários crimes já cometidos%u20B%u20B pela imprensa: alguns casos de
invenção, logo desmascarados, e casos de plágio ("numerosos demais para
citar"). O crime específico da Rolling Stone foi "falta de
ceticismo", que é, "em muitos aspectos, o mais insidioso" entre
as três categorias.
É reconfortante ver o compromisso do Times com a integridade
do jornalismo.
Na página 7 da mesma edição, há uma matéria importante
escrita por Thomas Fuller intitulada "A Missão de uma mulher para libertar
o Laos de bombas não detonadas". Relata o "esforço único" de uma
mulher Laociana-americana, Channapha Khamvongsa, "para livrar sua terra
natal de milhões de bombas ainda enterradas lá, legado de uma campanha aérea
americana que durou nove anos e que fez do Laos um dos lugares mais
bombardeados na terra" – que logo seria superado pelo Camboja rural,
segundo as instruções de Henry Kissinger para a força aérea dos EUA:
"Campanha de bombardeio maciço no Camboja. Qualquer coisa que voe sobre
tudo o que se mova”. É difícil encontrar algum registro comparável em termos de
convocação de um virtual genocídio. Foi mencionado no Times em uma reportagem
sobre a revelação de gravações do Presidente Nixon, e recebeu pouca atenção.
Fuller relata que, como resultado do lobby da Sra Khamvongsa,
os EUA aumentaram generosamente o gasto anual com remoção de bombas não
detonadas em 12 milhões de dólares. As mais letais são as bombas de
fragmentação, projetados para "causar o máximo de baixas nas tropas"
pulverizando "centenas de pequenas bombas no chão”. Cerca de 30%
permanecem intactas, e vêm a matar e mutilar crianças que encontram as peças,
agricultores que esbarram nelas durante o trabalho, e outros casos de falta de
sorte. Um mapa completa a reportagem, com destaque para a província de Xieng
Khouang, no norte do Laos, mais conhecida como Planície de Jars, principal alvo
do bombardeio intensivo, que atingiu o ápice de sua fúria em 1969.
Fuller relata que a Sra. Khamvongsa "decidiu agir quando
se deparou com uma coleção de desenhos dos bombardeios feitos por refugiados,
reunidos por Fred Branfman, um ativista contra a guerra que ajudou a expor a
Guerra Secreta". Os desenhos aparecem no formidável livro de Fred Branfman
Vozes da Planície de Jars, publicado em 1972, e republicado pela editora da
Universidade de Wisconsin em 2013 com nova introdução. Os desenhos mostram em
detalhes o tormento das vítimas, camponeses pobres de uma região isolada que
não tinham nada a ver com a guerra do Vietnã, como foi admitido oficialmente.
Um relato típico de uma enfermeira de 26 anos capta a natureza da guerra aérea:
"Não havia uma noite em que pensamos que íamos sobreviver até a manhã
seguinte, uma manhã em que pensamos que pudéssemos sobreviver até a noite.
Nossos filhos choraram? Sim, e nós também. Eu só ficava em minha caverna. Não
vi a luz do sol durante dois anos. Em que eu pensava? Oh, eu apenas repetia,
`por favor, não deixe os aviões chegarem, por favor, não deixe os aviões
chegarem, por favor, não deixe os aviões chegarem".
Os valentes esforços de Branfman, de fato, trouxeram alguma
consciência sobre aquela atrocidade. Sua pesquisa perseverante também revelou
as razões da destruição brutal de uma comunidade camponesa e desprotegida. Ele
expôs as razões de novo na introdução à nova edição do livro Voices. Em suas
palavras:
"Uma das revelações mais devastadoras sobre os
bombardeios foi a descoberta da razão pela qual haviam aumentado tanto em 1969,
como descreviam os refugiados. Descobri que após o presidente Lyndon Johnson
ter ordenado a interrupção de um bombardeio sobre o Vietnã do Norte, em
novembro de 1968, ele simplesmente desviou os aviões para o norte do Laos. Não
havia razão militar para isso. Foi apenas porque, como testemunhou o
Vice-embaixador Monteagle Stearns no Comitê de Relações Exteriores do Senado
americano em outubro de 1969: ‘Bem, tínhamos todos aqueles aviões parados e não
podíamos deixá-los lá sem fazer nada’".
Dessa forma, os aviões sem uso foram descarregadas sobre os
pobres camponeses, devastando pacífica a Planície de Jars, longe da devastação
das assassinas guerras de agressão de Washington na Indochina.
Vejamos agora como essas revelações se transmutam na
novilíngua do New York Times: "Os alvos eram as tropas norte-vietnamitas –
especialmente as localizadas ao longo da trilha Ho Chi Minh, grande parte da
qual passava pelo Laos – bem como os
comunistas do Laos aliados ao Vietnã do Norte."
Compare com as palavras do Vice-embaixador americano e os
emocionantes desenhos e testemunhos da coleção de Fred Branfman.
É claro que o repórter tem uma fonte: a propaganda oficial
americana. Isso certamente basta para sobrepôr alguns fatos sobre um dos
maiores crimes ocorridos desde a Segunda Guerra Mundial, como detalhado pela
própria fonte que ele cita: as revelações cruciais de Fred Branfman.
Podemos apostar que esta mentira colossal a serviço do Estado
não vai merecer exposição prolongada muito menos denúncias de práticas
vergonhosas da Imprensa Livre, como plágio e falta de ceticismo.
A mesma edição do New York Times nos brinda com um artigo do
inimitável Thomas Friedman, retransmitindo com sinceridade as palavras do
Presidente Obama ao apresentar o que Friedman chama de "a Doutrina
Obama" – cada presidente tem que ter uma doutrina. A Doutrina profunda
consiste em "‘engajamento’ combinado com o alcance de necessidades
estratégicas fundamentais".
O Presidente ilustrou com um caso crucial: "Veja um país
como Cuba. Ao testarmos a possibilidade de que um engajamento leve a um
resultado melhor para o povo cubano, não há muitos riscos para nós. É um país
pequeno. Não representa ameaça aos nossos principais interesses de segurança,
então [não há razão para não] testar a proposta. E se acontecer de não obtermos
melhores resultados, podemos ajustar nossas políticas”.
Aqui, o prêmio Nobel da Paz se estende sobre as razões para
empreender o que o principal jornal intelectual da esquerda liberal, o New York
Review, saúda como como o “passo "corajoso e verdadeiramente
histórico" de restabelecer relações diplomáticas com Cuba. É um movimento
realizado a fim de "fortalecer de forma mais efetiva o povo cubano",
explicou o herói, já que nossos esforços anteriores para levar-lhes a liberdade
e a democracia não haviam conseguido atingir nossos nobres objetivos. Os
esforços anteriores incluíam um embargo esmagador condenado pelo mundo todo
(exceto Israel) e uma brutal guerra terrorista. Esta última é, como sempre,
varrida da história, exceto pelas tentativas fracassadas de assassinar Castro,
episódios de menor importância nesta guerra, e aceitáveis porque podem ser
reduzidos, com desprezo, a ridículas travessuras da CIA. Consultando os
registros internos anteriormente confidenciais e já acessíveis, ficamos sabendo
que estes crimes foram cometidos por Cuba representar um "desafio
bem-sucedido" à política americana desde a Doutrina Monroe, que
estabelecia a intenção de Washington de dominar o hemisfério. Nada disso foi
mencionado, bem como tantos fatos que não haveria espaço para contar aqui.
Prosseguindo a leitura encontramos outras pérolas, por
exemplo, o artigo de primeira página sobre o acordo com o Irã, assinado por
Peter Baker alguns dias antes, alertando sobre os crimes iranianos
frequentemente enumerados pelo sistema de propaganda de Washington. Todos provam-se
bastante reveladores, embora nenhum mais do que o crime iraniano por
excelência: "desestabilizar” a região ao apoiar as “milícias xiitas que
mataram soldados americanos no Iraque". Aqui, novamente, é o quadro
padrão. Quando os EUA invadem o Iraque, praticamente destruindo-o e incitando
os conflitos sectários que estão esfacelando o país e agora toda a região, isto
conta como "estabilização" na retórica oficial e, portanto, da mídia.
Quando o Irã apoia as milícias que resistem à agressão, a isto se dá o nome de
"desestabilização". E não se poderia pensar em crime mais hediondo do
que matar soldados americanos que vieram atacar a casa de alguém.
Tudo isso, e muito, muito mais, faz todo o sentido para quem
mostra a esperada obediência e aceita acriticamente a doutrina aprovada: os EUA
são os donos do mundo, e o são por direito, por razões também explicadas
lucidamente na New York Review, em artigo de março de 2015 escrito por Jessica
Matthews, ex-presidente do Carnegie Endowment for International Peace (Fundo
Carnegie para a Paz Internacional): “As contribuições americanas para a
segurança internacional, o crescimento econômico global, a liberdade e o
bem-estar humano são tão evidentemente inigualáveis, e sempre dirigidas ao
benefício dos outros, que os americanos se acostumaram a pensar que os EUA são
um tipo diferente de país. Quando outros fazem pressão por seus interesses
nacionais, os EUA procuram privilegiar princípios universais”.
Sem mais.
Noam Chomsky é professor de lingüística e filosofia no MIT.
Créditos da foto: Andrew Rusk / Flickr
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