O francês Thomas Piketty é a
grande sensação da economia e também seu crítico mais feroz
Por EMILY EAKIN, publicado
originalmente na revista Piauí / http://www.outraspalavras.net/
O economista francês Thomas
Piketty chegou a Washington no domingo 13 de abril para uma semana de palestras
em alguns dos mais importantes centros de pesquisa sobre políticas públicas dos
Estados Unidos. Sua visita também poderia ter sido anunciada como uma volta
olímpica pela Costa Leste. Lançada havia menos de cinco semanas, a tradução
inglesa de seu novo livro, O Capital no Século XXI – 700 páginas de um rigor
formidável sobre a história da riqueza –, tinha acabado de entrar para a lista
dos mais vendidos do New York Times. Antes mesmo da publicação, um punhado de
resenhas do livro e um grande burburinho na internet produziram uma
transformação na imagem de Piketty: de pesquisador respeitado na área da
distribuição de renda, ele virou um pensador de alto calibre que, armado de
enorme quantidade de dados e gráficos – e de uma habilidade com as palavras
incomum entre economistas –, se propunha a pôr abaixo décadas de sabedoria
convencional sobre a desigualdade, por meio de uma análise inédita do passado.
A revista The Economist declarou
que o livro de Piketty poderia “revolucionar o modo como as pessoas enxergam a
história econômica dos últimos dois séculos”, e deu início a um grupo de
leitura online, a fim de discuti-lo capítulo por capítulo. A também britânica
Prospect acrescentou Piketty a sua lista anual de pensadores mais influentes do
mundo ocidental, e comentou-se que seu livro circulava pelo gabinete de Ed
Miliband, o líder do Partido Trabalhista inglês. Documentaristas começaram a
competir pela oportunidade de transformar o livro em filme, e um compositor
pediu a bênção do autor para transformá-lo numa ópera.
Agora, à maneira de um herdeiro
de Tocqueville hábil no manejo de gráficos e fórmulas matemáticas, o francês de
43 anos tinha ido dizer aos americanos como salvar o que ele chamou de “ideal
igualitário dos pioneiros” de uma “tendência à oligarquia” potencialmente
devastadora. Sua unção foi tanto mais notável na medida em que, com seu livro,
ele não pretendeu apenas apresentar um novo ponto de vista sobre a
desigualdade, mas também repreender duramente a economia como disciplina, em
particular em sua vertente norte-americana.
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Na segunda-feira, dia 14, a
agenda de Piketty incluía o Conselho Econômico da Casa Branca, o Government
Accountability Office, órgão do Congresso americano que audita gastos do
governo, e o gabinete do secretário do Tesouro, Jacob Lew, que o convocou para
uma reunião particular com o intuito de discutir a proposta do francês de um
imposto progressivo sobre a riqueza. Na terça, Piketty apareceu em companhia de
dois prêmios Nobel de Economia: George Akerlof, que ao apresentá-lo a um grupo no
Fundo Monetário Internacional declarou que ele era “o mais próximo que um
economista pode chegar de uma estrela do rock”; e Robert Solow, que, no
Instituto de Política Econômica – onde uma multidão de centenas de pessoas
enfrentou um aguaceiro gelado para ouvi-lo falar –, louvou a originalidade da
argumentação de Piketty e “a própria coleta, apresentação e análise” dos dados,
prevendo que “vamos passar um bom tempo digerindo tudo isso”.
Piketty encarou o estardalhaço
com um sorriso modesto. Vestia um paletó cinza, sem gravata, e, com seu cabelo
escuro aparado, o rosto redondo e limpo e uma postura despretensiosa, sugeria
menos um astro de rock que um estudante muito empenhado de pós-graduação.
Falando por 45 minutos sem parar e sem a ajuda de notas, num inglês ágil,
Piketty expôs com zelo suas descobertas. “Os mais ricos ficam de 6 a 7% mais
ricos a cada ano, uma velocidade que é três vezes maior que a da economia
mundial”, disse ele no Instituto de Política Econômica. “Ninguém sabe onde isso
vai parar.”
***
A aparente simplicidade da tese
de Piketty dissimula sua ousadia: a desigualdade é intrínseca ao capitalismo e,
se não for combatida com vigor, é provável que ela cresça – e cresça a níveis
que ameaçam nossa democracia e bloqueiam o crescimento econômico. Karl Marx fez
previsões bem mais sombrias – a desigualdade largada à própria sorte
conduziria, em última instância, ao colapso social –, e Piketty toma o cuidado
de distanciar seu ponto de vista daquele do apocalipse previsto por Marx. Ainda
assim, sua tese caminha na contramão da teoria econômica estabelecida, que
postula que a desigualdade tende a diminuir, de acordo com um processo
conhecido como “convergência”.
Segundo Piketty, que recolheu
dados relativos a renda e riqueza que se estendem por três séculos e vinte
países, as forças que propiciam a convergência (a disseminação do conhecimento
e da qualificação, por exemplo) são consideráveis, mas, de modo geral, as que
provocam divergência levaram a melhor. O cerne de seu argumento resume-se a uma
fórmula de simplicidade enganosa: r > g – onde “r” representa a taxa média
anual do retorno obtido pelo capital (ou seja, lucros, dividendos, juros e
renda de imóveis) e “g”, a taxa de crescimento econômico. Ao longo de grande
parte da história moderna, sustenta Piketty, a taxa de retorno obtida pelo
capital ficou entre 4 e 5%, ao passo que a taxa de crescimento tem sido bem
mais baixa, entre 1 e 2%. (Piketty é convincente ao argumentar ser improvável
que o crescimento econômico, que depende em boa parte do crescimento
populacional, venha a se acelerar radicalmente em qualquer outra parte do mundo
que não seja a África, considerando-se as tendências demográficas atuais.) É
daí que ele aduz “a principal força desestabilizadora do capitalismo”: sempre
que r > g, “o capitalismo automaticamente gera desigualdades arbitrárias e
insustentáveis, que minam de forma radical os valores meritocráticos nos quais
se assentam as sociedades democráticas”.
Em outras palavras: numa economia
de crescimento lento, a riqueza acumulada cresce mais depressa que a renda
proveniente do trabalho. Assim, os ricos, já detentores da maior parte da
riqueza, se tornarão mais ricos, enquanto o resto, que depende sobretudo da
renda obtida com seus empregos, terá sorte se conseguir acompanhar a inflação.
Hoje, r > g na maioria dos países do mundo desenvolvido, incluindo os
Estados Unidos, onde os 10% mais ricos detêm mais de 50% da renda nacional. Se
Piketty estiver certo, os Estados Unidos podem estar se tornando rapidamente o
pior caso em escala mundial. Por todo o Ocidente, escreve ele, “os níveis de
desigualdade crescem a uma taxa insustentável em longo prazo, o que deveria
preocupar até os mais ardorosos defensores do mercado autorregulável”. (No
quadro traçado por Piketty, o mercado autorregulável é, por definição, um
regime do r > g: “Quanto mais perfeito o mercado de capitais” – como o
entendem os economistas –, “maior é a probabilidade de r ser maior que g.”)
Impressionado com essa justaposição de r e g, Solow comentou: “Que eu saiba,
ninguém atentou para isso antes.”
A exceção digna de nota ao
reinado do r > g é o período que se estende de 1945 a 1970, a chamada “época
de ouro” do capitalismo, também conhecida como “a grande compressão”, em que as
economias da Europa Ocidental e dos Estados Unidos se expandiram e a
desigualdade diminuiu. Não é por acaso, Piketty sugere, que esse período deu
origem ao credo otimista da disciplina econômica moderna: o livre mercado gera
dividendos para todos. Esse mantra, ele insiste, baseia-se numa ilusão. Vista
em seu contexto histórico, a “era de ouro” revela-se uma aberração – uma
exceção passageira ao sombrio domínio do r > g. Duas guerras mundiais e a
Grande Depressão, acompanhadas por uma tributação “confiscatória” imposta aos
ricos para pagar pelo esforço da guerra, reduziram bastante muitas fortunas
familiares, diminuindo, assim, temporariamente a diferença entre as classes
alta e baixa. Enquanto a teoria da convergência afirmou que a desigualdade
descreve uma curva em forma de sino, declinando à medida que a economia
amadurece, Piketty descobriu que acontece o contrário: a desigualdade no século
XX descreve uma curva de sino invertida – isto é, em forma de U –, cuja
escalada íngreme não mostra agora nenhum sinal de arrefecimento.
Deslumbradas, ao que parece, com
os argumentos apresentados no livro, poucas resenhas mencionaram o ataque que
ele contém à economia como disciplina. O desdém de Piketty, no entanto, é
inequívoco; ele se revela no lamento de um estudioso há muito afastado do
núcleo central e estabelecido de sua profissão. “Há tempo demais”, escreve ele,
“os economistas têm buscado se definir com base em seus métodos supostamente
científicos. Na verdade, esses métodos se apoiam no emprego desmesurado de
modelos matemáticos que, com frequência, nada mais são que uma desculpa para
marcar terreno e mascarar o vazio do conteúdo. Um excesso de energia foi e
continua sendo gasto em especulações puramente teóricas, sem uma demarcação
clara dos fatos econômicos que se tenta explicar e dos problemas sociais e
políticos que se tenta resolver.”
***
O primeiro artigo publicado por
Piketty apareceu no Journal of Economic Theory em 1993, quando ele tinha 22
anos. O artigo consistia em um modelo matemático para a definição da melhor
tabela possível de imposto de renda. Continha abundantes referências à teoria
dos jogos, ao ótimo de Pareto e aos equilíbrios bayesianos[1]. Estudante
precoce de matemática, Piketty entrara para uma escola de elite, a École
Normale Supérieure de Paris, aos 18 anos; ao fazer 22, tinha um PhD em economia
e ofertas de emprego do MIT, de Harvard e da Universidade de Chicago. “Estavam
muito entusiasmados porque eu era uma máquina de provar teoremas, e eles
gostavam disso”, me disse. Escolheu o MIT e se mudou para Cambridge, no estado
de Massachusetts, onde permaneceu apenas dois anos.
Piketty gostava de morar nos
Estados Unidos e dos colegas do MIT, e achava estimulante dar aulas para
estudantes de pós-graduação, a maioria mais velha que ele. “Eu estava muito
feliz, mas, ao mesmo tempo, achava que tinha alguma coisa estranha
acontecendo”, ele contou. O problema, Piketty logo concluiu, era que ele “não
sabia coisa nenhuma de economia”.
Thomas Piketty continuou
publicando fórmulas sobre distribuição de renda, mas se perguntava cada vez
mais como era a desigualdade no mundo real. Como ela se desenvolvera ao longo
do tempo? “Percebi que havia muitos dados à disposição que nunca tinham sido usados
de forma sistemática”, conta. Como estudante, ele interessara-se tanto por
história e sociologia como por economia, e admirava a obra de Pierre Bourdieu,
Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss. Seus pais, que nunca terminaram o
colégio, tinham participado dos protestos estudantis de 1968 e, ainda
adolescente, Piketty passara um verão trabalhando para o avô, “um empresário
com uma ética capitalista muito forte” que tinha uma pedreira nas proximidades
de Paris. Mas influência ainda maior em seu desenvolvimento, ele acredita, veio
dos acontecimentos dramáticos no Leste Europeu. No ano em que entrou na École
Normale, caiu o Muro de Berlim, e, ao se formar, também a União Soviética já
havia desmoronado. “Para mim, a pergunta natural e importante era: o que podemos
dizer sobre desigualdade e justiça social e sobre a dinâmica da distribuição no
regime capitalista? Por que é que em determinado momento as pessoas acharam que
o comunismo era necessário?”
Os colegas de Piketty
demonstravam pouco interesse pela pesquisa histórica. “O que achei bastante
surpreendente no MIT foi que, às vezes, havia um nível de arrogância
inacreditável em relação a outras disciplinas das ciências humanas”, afirma.
“No caso da distribuição de renda, que era o que me interessava, quase não
dispúnhamos de fatos históricos que conhecêssemos bem. Achava muito espantoso o
abismo entre a autoconfiança dos economistas e os feitos reais de seu ofício.”
Ou, nas palavras de Branko
Milanovic, entusiasta de primeira hora do livro de Piketty e especialista do
Centro de Estudos de Renda da City University de Nova York (CUNY): “Os modelos
matemáticos têm essa coisa estéril; não se baseiam na realidade, e sim naquilo
que alguém imagina ser o comportamento das pessoas. A economia perdeu o gosto
pelas grandes questões. Mergulhamos em questões minúsculas, e o exemplo extremo
disso é o livro Freakonomics,[2] que trata do comportamento de lutadores de
sumô e da razão pela qual traficantes de drogas moram com a mãe. Temos 25% de
desemprego na Espanha, e vamos discutir lutadores de sumô?”
***
Em certo sentido, críticas à
disciplina não são nenhuma novidade. Economistas, uma gente muito falante,
parecem ocupar espaço desproporcional na blogosfera e gastam um bocado de tempo
em acalorados debates metodológicos. Em uma briga muito comentada ocorrida no
mês de março, Paul Krugman e Lars P. Syll, economista da Universidade de Malmö,
na Suécia, postaram visões divergentes sobre o modelo IS-LM,[3] que há décadas
tem sido o esteio da teoria macroeconômica. Syll descartou o modelo como um
“dispositivo de uma tolice brilhante”. Krugman o defendeu como “uma
simplificação da realidade, projetada para facilitar a compreensão de certas
questões específicas, um modelo que, desde 2008, tem, sim, cumprido seu papel
com brilhantismo”. (Numa postagem posterior a respeito do assunto, Krugman foi
mais circunspecto: “A gente deve usar modelos, mas também deve se lembrar de
que são modelos e sempre tomar cuidado com conclusões que dependam demais das
premissas simplificadas.”)
Ainda assim, trocar farpas online
é uma coisa; outra, bem diferente, é alguém apresentar sua magnum opus como ato
de sublevação metodológica. Piketty deixa claro:O Capital no Século XXI é sua
ideia de como um estudo de economia deveria ser, ou seja, é preciso combinar
análises de questões macro (crescimento) e micro (distribuição de renda); o
trabalho deve estar fundado em abundantes dados empíricos e entremeado de
referências sociológicas, históricas e literárias; e deve, ainda, economizar na
matemática. Em sua escala e em seu alcance, o livro lembra as obras fundadoras
da economia clássica: Ricardo, Malthus e Marx, a cujo tratado sobre o
capitalismo o título de Piketty alude. A extensa literatura recente sobre
vários aspectos da desigualdade mal é mencionada. “Tem uma boa quantidade de
trabalhos empíricos por aí”, diz James K. Galbraith, da Universidade do Texas,
que estuda desigualdade salarial e publicou na revista Dissent uma das poucas
resenhas céticas a respeito do livro de Piketty até o momento. “Ele tende a
citar com deferência pensadores do mainstream e ignora as críticas já feitas a
esses economistas.”
Romances de Jane Austen, Balzac e
Henry James, por outro lado, têm um segmento só para si no livro. Piketty chega
ao ponto de extrapolar de uma leitura atenta de um romance de Balzac, O Pai
Goriot, um fenômeno que chama de “dilema de Rastignac”, referindo-se ao fato de
que, ao longo de todo o século XIX, unir-se pela via do matrimônio a uma
família detentora de riqueza herdada constituía rota muito mais segura para uma
vida confortável que tentar subir na vida por meio do talento próprio, da
educação e do trabalho duro. Hoje, escreve Piketty, séries de tevê em horário
nobre, como House, Bones e The West Wing, “são estreladas por heróis e heroínas
carregados de diplomas e altas qualificações” e parecem celebrar “uma
desigualdade justa, baseada no mérito, na educação e na utilidade social das
elites”. Mas isso, afirma ele, não passa da expressão fantasiosa de um desejo:
o número das heranças gigantescas caiu desde a Belle Époque e, no entanto, na
Europa – assim como, em menor grau, nos Estados Unidos – o montante da riqueza
herdada retornou ao nível daquela época. Na visão de Piketty, isso tem o efeito
de distorcer nossa democracia.
Não há dúvida de que a eloquência
acessível do livro tem beneficiado sua recepção. Ao destacar-lhe a veia
irônica, um crítico já comparou as notas de Piketty às do historiador inglês
Edward Gibbon. (Um típico comentário: “Entre os membros desses grupos de maior
renda estão acadêmicos e economistas norte-americanos, muitos dos quais
acreditam que a economia dos Estados Unidos está funcionando razoavelmente bem
e, em particular, que ela recompensa o talento e o mérito de maneira correta e
precisa.”) Mas Piketty foi favorecido também por um timing excelente.
***
Depois de deixar o MIT, em 1995,
ele voltou a Paris e passou os três anos seguintes nos arquivos que ficam no
porão do Ministério das Finanças francês, coletando e selecionando dados
relativos a renda, herança e legislação tributária em pastas caindo aos
pedaços. O resultado dessa pesquisa foi o livro Les Hauts Revenus en France au
XXe Siècle: Inégalités et Redistributions, 1901–1998 [As rendas altas na França
do século XX: desigualdades e redistribuição, 1901–1998]. Foi nele que, pela
primeira vez, Piketty identificou a curva em forma de U que descreve a
desigualdade na França do século passado. Ele diz que não teria escrito o livro
se tivesse ficado no MIT, ou pelo menos não antes de obter uma cátedra
vitalícia. “Eu quis voltar à França porque queria ficar mais perto de
historiadores e sociólogos”, conta. “Meu sentimento era o de que, se ficasse no
MIT, teria incentivos muito fortes para continuar fazendo aquilo em que eu era
bom, ou seja, teoremas matemáticos.”
Piketty enviou esse primeiro
livro a Anthony Atkinson, eminente estudioso da desigualdade de renda que
trabalhava na Universidade de Oxford e é, desde então, seu colaborador.
Atkinson propôs que ele estendesse seus estudos a outros países. Piketty
retornou ao MIT por um semestre em 2000 e, enquanto estava lá, recrutou um
então estudante de pós-graduação em economia, Emmanuel Saez, para colaborar com
ele num estudo de dados de renda dos Estados Unidos. Outros estudiosos da
distribuição de renda tendiam a se basear sobretudo em pesquisas domiciliares,
em que o próprio pesquisado fornecia a informação. Piketty se valeu das
declarações de imposto de renda, que, introduzidas em 1913, oferecem um quadro
bem mais exato da renda no topo da pirâmide.
Ele não foi o primeiro a usar
esses dados. Simon Kuznets, autor na década de 50 da influente teoria de que a
desigualdade tendia a declinar, também se baseou em declarações de imposto de
renda. Seus dados, porém, cobriam apenas o período de 1913 a 1948 – quando a
desigualdade caiu. O próprio Kuznets foi mais cuidadoso quanto ao valor de sua
“curva de Kuznets” – em forma de U invertido – do que muitos de seus
seguidores, segundo Piketty influenciados pela geopolítica da Guerra Fria.
“Quando a competição entre os
modelos soviético e capitalista era muito forte, as pessoas no Ocidente queriam
muito acreditar que economias de mercado eram capazes de reduzir a desigualdade
e equilibrar a distribuição de renda e da riqueza”, Piketty me disse.
Com modéstia característica, ele
sugeriu que sua principal vantagem como economista foi ter pertencido a uma
geração para a qual “o conflito entre comunismo e capitalismo na verdade não
existe mais”. Contudo, para muitos dos discípulos de Kuznets o fim da União
Soviética parece ter reforçado sua crença. Em 2011, um comitê de economistas de
ponta elegeu o artigo de 1955, em que Kuznets apresentou sua famosa curva, um
dos vinte textos mais influentes já publicados na American Economic Review.
A inovação de Piketty foi
expandir o trabalho de Kuznets para outras décadas e outros países, numa época
em que a maioria dos economistas, quando se baseava em dados empíricos,
concentrava-se em algumas poucas décadas e, de modo geral, em salários, e não em
riqueza. Ou então obtinha seus dados por intermédio de amostras controladas, e
não pela via da pesquisa histórica. “O que é de fato bastante estranho é que
ninguém tenha feito isso antes”, diz Piketty sobre a abrangência de sua
análise. “É história demais para os economistas, e economia demais para os
historiadores. Uma espécie de terra de ninguém em termos acadêmicos.”
Em 2003, Piketty, então
catedrático da École des Hautes Études en Sciences Sociales, e Emmanuel Saez
publicaram suas descobertas sobre a desigualdade de renda nos Estados Unidos.
Mais uma vez, os dados indicavam uma curva em U ao longo do século XX. (Se a
análise de ambos subestimou alguma coisa, diz Piketty, foi a taxa de
desigualdade atual, dado que muitos dos principais detentores de capital levam
sua riqueza para paraísos fiscais, onde ela não é declarada).
De início, o trabalho ensejou
poucos comentários. Naquele mesmo ano, Robert E. Lucas Jr., economista da
Universidade de Chicago agraciado com o prêmio Nobel, declarava que “entre as
tendências prejudiciais a uma ciência econômica sólida, a mais sedutora, e na
minha opinião a mais insidiosa, é concentrar-se em questões de distribuição”.
Lucas, um entusiasta da chamada economia de oferta – segundo a qual quanto
menos impostos e regulação, maior o estímulo ao investimento e à produção –,
pregava a fé nos benefícios de longo prazo do crescimento econômico. “O
potencial de melhoria da vida dos pobres que deriva da busca de meios
diferentes de distribuir a produção atual não é nada, se comparado ao potencial
aparentemente ilimitado de aumentar a produção.”
Cinco anos depois, com o colapso
do mercado imobiliário e as revelações das práticas de empréstimos predatórios
e das recompensas estratosféricas pagas aos executivos dos bancos de investimentos,
a desigualdade virou notícia. No início de 2009, num resumo do Orçamento que
seria proposto ao Congresso, o governo Obama apresentou um gráfico extraído da
pesquisa de Piketty e Saez, mostrando a íngreme escalada da renda nacional nas
mãos do 1% mais rico. O Wall Street Journal batizou o gráfico de “a pedra de
Roseta da mente do presidente Barack Obama”, ajudando, assim, a disseminar a
ideia (sem dúvida exagerada) da influência de Piketty e Saez na Casa Branca.
Em maio de 2011, o economista da
Universidade Columbia Joseph E. Stiglitz relatou à revista Vanity Fair que, nos
Estados Unidos, o 1% mais rico controlava 40% da riqueza do país, tornando esse
“1%” expressão corrente e um sonoro epíteto do movimento Occupy, que tomou
impulso naquele outono. Dois anos depois, Robert Reich, ex-secretário do
Trabalho e hoje catedrático em Berkeley, citou o trabalho de Piketty e Saez em
seu famoso documentário Desigualdade para Todos (no qual Saez faz uma breve
aparição).
Por volta de dezembro do ano
passado, quando se começou a falar no livro de Piketty, então já publicado na
França, a desigualdade como tópico político havia passado por sua própria
transformação: de obsessão predileta da esquerda liberal americana tornou-se
prioridade tanto para democratas como para republicanos. Naquele mês, Barack
Obama dedicou um discurso importante ao tema, caracterizando a desigualdade
como “o desafio decisivo de nossa época”. Republicanos proeminentes –
incluindo-se aí o líder da maioria na Câmara, Eric Cantor, e o senador Marco
Rubio – logo seguiram o exemplo e fizeram discursos que mencionavam, ainda que
com cautela, a desigualdade de renda. A Comissão de Finanças do Senado promoveu
uma audiência sobre o sofrimento da classe média.
***
Se O Capital no Século XXI vai
sobreviver a seu lançamento espetacular e se tornar inspiração para futuros
estudos – para não falar em futuras políticas públicas –, isso dependerá em
parte de como os dados de Piketty e sua interpretação resistirão ao tempo. Os
resmungos contra o livro que se ouvem aqui e ali ainda não se reuniram numa
refutação de peso. (Kevin Hassett, economista do American Enterprise Institute,
um centro de estudos conservador, participou de um painel com Piketty em
Washington e argumentou que, quando se levam em conta as transferências
governamentais feitas a grupos de menor renda nos últimos trinta anos – em
comida e subsídios diversos –, essas transferências virtualmente compensariam o
aumento de renda dos 20% mais ricos. Piketty respondeu: “É verdade que houve um
grande aumento nas transferências. Mas me surpreende que alguém como o senhor,
no AEI, fique feliz com a ideia de que transferências estejam diminuindo a
desigualdade.”) Mesmo detratores concordam a respeito do valor inestimável da
World Top Incomes Database, a base de dados sobre a concentração de renda no
topo da pirâmide social que Piketty e seus colaboradores reuniram na Escola de
Economia de Paris, onde ele agora leciona. No momento, ela cobre trinta países
e é, de longe, a maior base de dados internacional sobre desigualdade.
Menor chance de sobrevivência tem
o remédio proposto por Piketty para a desigualdade: um imposto progressivo
global sobre a riqueza para fortunas acima de 1 milhão de euros, ou cerca de
3 milhões de reais.
Em Washington, cidade em que se
definem políticas, os comentadores da obra de Piketty queriam discutir
soluções, embora muitos tenham descartado a proposta dele e aproveitado a
oportunidade para promover suas próprias ideias. Até mesmo Piketty reconhece
que aplicar um imposto global sobre a riqueza exigiria níveis inéditos de
cooperação internacional e, pelo menos nos Estados Unidos – onde muitos
acreditam que impostos mais altos levam a um crescimento menor –, a superação
de uma ferrenha oposição política. Ainda assim, em seu livro ele faz uma defesa
apaixonada dessa proposta, assinalando que os Estados Unidos, afinal,
inventaram a tributação confiscatória – em 1919, quando o Congresso aprovou uma
alíquota máxima de 77% no imposto de renda, sob o argumento de que rendas e
patrimônios gigantescos eram “inaceitáveis, do ponto de vista social, e
economicamente improdutivos”. (Hoje, a alíquota máxima é de cerca de 40%.)
Recentemente, a ideia de Piketty
ganhou o impulso indireto de um estudo publicado em fevereiro pelo Fundo
Monetário Internacional, que está longe de ser uma instituição radical. Esse
estudo, uma análise da desigualdade de renda que abrange diversos países,
descobriu não apenas que há “pouca evidência de que medidas redistributivas
típicas” – impostos e crédito – “tenham, em média, efeito adverso sobre o
crescimento”, mas também que baixa desigualdade em geral se associa a
crescimento mais rápido. Como me disse em um e-mail Jonathan D. Ostry, o
principal autor desse estudo, “essa lógica de fato contribuiu para abrir nossos
olhos”.
***
Na quarta-feira, dia 16, Piketty
estava à noite em Nova York, onde participou de um painel na CUNY com mais
ganhadores do Nobel: Joseph Stiglitz (que ganhou o prêmio duas vezes) e Paul
Krugman, além de Steven Durlauf, economista da Universidade de
Wisconsin-Madison. Duas dúzias de jornalistas estavam no auditório. O interesse
da mídia por Piketty era tanto que uma parte dos assentos foi reservada a ela,
e uma sala de imprensa foi preparada para que o entrevistassem ao final do
evento.
Mais cedo, Piketty estivera no
Conselho de Relações Exteriores e na ONU. Na CUNY, porém, estava entre seus
pares: os acadêmicos. Parecia muito contente. “Os Estados Unidos inventaram a
tributação progressiva em grande parte porque não queriam se parecer com a Europa,
dominada por classes”, disse ele, enquanto, ainda sem gravata, mas com um
sorriso largo, projetava para a plateia um gráfico feito em PowerPoint que
mostrava as flutuações da alíquota máxima do imposto de renda.
Os demais membros do painel
fizeram efusivos elogios. “É um livro fantástico!”, exultou Krugman. “Ele
resolve problemas que vêm preocupando as pessoas há décadas.” Stiglitz, em tom
de lamento, declarou: “Alguns de nós nos especializamos num momento particular
da curva que ele apresenta, quando as coisas pareciam ir muito bem. Isso nos
deu uma imagem distorcida do mundo.”
Eufóricos com as ideias de
Piketty sobre desigualdade, os participantes chapinharam aqui e ali por terreno
mais técnico – modelos estocásticos e a teoria da produtividade marginal foram
invocados mais de uma vez. Mas estavam igualmente ansiosos para discutir o
remédio proposto, o imposto global sobre a riqueza. “Nós tivemos aqui decisões
da Suprema Corte que afirmam que as grandes empresas têm o mesmo direito que as
pessoas quando se trata de financiar a política, mas não têm deveres
equivalentes quando se trata de responderem pelo que fazem. Não vai ser uma
batalha fácil”, observou Stiglitz.[4] Krugman citou o discurso de Theodore
Roosevelt “O novo nacionalismo”, de 1910, que clama por impostos progressivos
sobre “grandes fortunas”. Esse discurso, sugeriu Krugman, é um motivo para se
ter esperança de que os americanos venham, um dia, a retomar o combate à
desigualdade. “A visão pessimista é a de que a diminuição da desigualdade no
século xxfoi, em sua totalidade, o resultado de guerras”, disse Krugman. “Mas,
na verdade, Roosevelt fez esse discurso antes da guerra, o que significa que um
sistema político democrático, que acredita em ideais, é capaz de se reformar
também na ausência de catástrofes.”
Piketty ainda sorria quando
deixou o palco. Uma sala cheia de jornalistas esperava por ele.
[1]Uma referência às teses do sociólogo italiano Vilfrido Pareto
(1848–1923) e do matemático inglês Thomas Bayes (1701–61).
[2]Best-seller do economista Steven Levitt e do jornalista Stephen J.
Dubner lançado em 2005, no qual os dois buscavam mostrar que alguns
comportamentos sociais obedeciam a constantes matemáticas.
[3]Uma formalização da teoria de John Maynard Keynes, em geral
apresentada como um gráfico, usada para avaliar os efeitos conjuntos das
políticas fiscal e monetária sobre a renda e a taxa de juros.
[4]Stiglitz refere-se a uma decisão de 2010 que acabou com limites para
os gastos de empresas em campanhas eleitorais. A maioria da Suprema Corte
equiparou esses gastos ao direito de expressão dos cidadãos. Seus oponentes
argumentavam que eles distorcem a disputa política em favor dos interesses
corporativos.
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