Por Flavio Lyra | http://www.desenvolvimentistas.com.br/
Numa sociedade capitalista, o
natural seria que a classe capitalista, a quem pertence o comando das decisões
empresariais, assumisse a hegemonia no plano ideológico e liderasse o processo
de industrialização.
No Brasil, não foi assim, pois
sem forte participação autônoma do governo e da burocracia estatal, em aliança
com o setor privado, especialmente depois da Revolução de 1930, é pouco
provável que houvéssemos atingido o nível de industrialização alcançado.
A estagnação econômica dos anos
90, deu os primeiros sinais de que a burguesia industrial não era capaz de
liderar o processo de desenvolvimento, pois, fraturada entre o capital nacional
e o capital estrangeiro, não possuía a coesão necessária para fazer a
industrialização avançar na direção da maior autonomia requerida para sustentar
um projeto de desenvolvimento nacional.
A partir dos anos iniciais da
década de noventa, com as reformas neoliberais e a entrada em ação do processo
de desmonte do aparelho estatal, incluindo as empresas estatais — que culminou
com o intenso processo de privatização nos governos de FHC, sob a pressão
externa dos organismos multilaterais, especialmente FMI e Banco Mundial,
comandados pelas grandes potências industriais — fragilizou-se ainda mais a
capacidade da burguesia industrial de liderar o processo de industrialização.
A realidade não se compadeceu com
as “boas intenções” declaradas dos empresários privados, nem dos dirigentes
políticos do PSDB responsáveis pela política econômica, sob a batuta do FMI e
do Banco Mundial, de que a abertura econômica e as privatizações produziriam um
surto de desenvolvimento.
Muito pelo contrário, a falta do
apoio estatal levou a indústria a ingressar num processo continuado de perda de
competitividade — muito além do que se justificaria pela experiência histórica
dos países industrializados — e de queda em sua contribuição para a sustentação
do processo de desenvolvimento.
Entrava, assim, em marcha
forçada, em pleno funcionamento a estratégia de integração-dependente na
economia internacional, sob a égide das grandes corporações privadas
internacionais, cada vez mais dominadas pela financeirização de suas
atividades.
A assunção ao poder do PT, em
2003, reabriu a possiblidade de que as lideranças da classe trabalhadora,
através de seus representantes no governo, fossem capazes de recuperar a
dinâmica da industrialização do país, desta vez sob a hegemonia da classe
trabalhadora, mas em estreita aliança com a burguesia industrial nacional, liderada
por grandes empresas privadas constituídas para aproveitar o mercado interno de
obras públicas e pelas poucas empresas estatais que restaram do processo de
privatização, especialmente a PETROBRAS.
Já nas vésperas de assumir o
governo, o presidente vitorioso, entretanto, premido pelas ameaças internas e
dos organismos internacionais que davam as cartas na rolagem da elevada dívida
externa contraída no governo de FHC, teve de fazer fortes concessões e a
comprometer-se a não alterar a política econômica, nitidamente desfavorável à
recuperação do processo de industrialização.
Essa política mantinha a taxa de
câmbio apreciada, desestimulando as exportações e favorecendo a penetração dos
produtos importados no mercado interno. Mantinha as taxas de juros da dívida
pública elevadas em nome do combate à inflação e gerava superávits fiscais
elevados para pagar os serviços da dívida, restringindo a capacidade do Estado
para realizar investimentos na infraestrutura econômica.
Desde os governos militares já
havia surgido no cenário econômico um novo e poderoso ator econômico, um setor
financeiro altamente concentrado e com fortes articulações internacionais, com
grande poder não apenas de estabelecer as regras do jogo no mercado financeiro,
como também de influenciar o processo político em seu favor.
Esse novo ator patrocinou desde o
início as reformas neoliberais, pois estas vinham ao encontro de sua lógica de
funcionamento, vinculada ao favorecimento do aumento da acumulação financeira,
no contexto do que tem sido denominado de “financeirização”, em detrimento da
acumulação produtiva.
A burguesia industrial nacional,
em nenhum momento, se mostrou interessada em articular-se com as forças
políticas vinculadas à classe trabalhadora, que chegavam ao poder, para resistir
às investidas do setor financeiro na captação dos recursos financeiros para uso
não produtivos ligados à pura acumulação financeira. Prevaleceu, assim, o temor
de contribuir para o fortalecimento das forças populares que subiam ao Poder e
de submeter-se a sua hegemonia.
Com a entrada da China no
comércio internacional de produtos primários, aumentando substancialmente as
exportações e algumas mudanças introduzidas pelo novo governo na política
econômica, especialmente no campo social e na retomada dos investimentos
produtivos, sob a liderança do BNDES, e das empresas estatais, desfrutou-se de
um período de aceleração do crescimento econômico, até pouco depois da crise
financeira internacional de 2008.
Tanto a burguesia industrial,
quanto a classe trabalhadora se beneficiaram do soerguimento da atividade
econômica, mas a primeira jamais disfarçou sua antipatia frente ao governo
popular e nunca se interessou em enveredar, de modo decisivo, por uma aliança
estratégica para a criação de um bloco de poder que possibilitasse a
conformação de um novo modelo de política econômica assentado em maior
participação estatal na atividade econômica e em mais autonomia em relação aos
mercados.
Posteriormente, já no primeiro
governo de Dilma, quando foi feita uma tentativa de fugir à rigidez da política
econômica voltada para a acumulação financeira e a
integração-internacional-dependente, a burguesia industrial colocou-se ao lado
do sistema financeiro para boicotar sua continuação.
A burguesia industrial durante
todo o período concentrou seu poder em reivindicações de redução da carga
tributária e no combate às políticas que aumentavam os gastos sociais e os
salários reais, deixando de lado qualquer articulação contrária ao controle da
ação predatória do sistema financeiro, que permanecia extraindo capacidade
financeira da sociedade, para esterilizá-la em aplicações financeiras
recorrentes, num círculo vicioso e perverso contra o aumento da formação de
capital produtivo e a reindustrialização.
A campanha de desestabilização
dos governos vinculados à classe trabalhadora começou desde meados do primeiro
mandato de Lula, com denúncias de corrupção, orquestradas pela imprensa e,
certamente, vistas com bons olhos pela burguesia industrial, cuja representação
política vislumbrava no resultado dessa ação o retorno ao poder, sob a
liderança do PSDB.
Com a desaceleração do
crescimento econômico e o aparecimento de desequilíbrios importantes nas contas
fiscais, no balanço de pagamentos e o aparecimento de pressões inflacionárias,
como consequência da inadequação do modelo de política econômica voltado para a
acumulação financeira e a integração-dependente na economia internacional,
criou-se o clima favorável para a exacerbação das pressões contra a permanência
no Poder dos representantes da classe trabalhadora.
A campanha contra a corrupção,
sob a liderança da grande imprensa, com o apoio da burguesia industrial, do
capital estrangeiro e, principalmente, do setor financeiro, sob o comando
político do PSDB — contando com a mobilização de setores da burocracia estatal
instalada na Poder Judiciário, e na Polícia Federal — intensificou a crise
econômica que já vinha tomando forma em decorrência da mudança na conjuntura
internacional e da incapacidade do modelo de política econômica em lidar com o
problema da desaceleração do crescimento econômico.
Vive o país nestes dias um
período crucial para os rumos que tomará seu processo de desenvolvimento
econômico e político nos próximos anos, o da disputa feroz entre duas
ideologias de desenvolvimento: a ideologia, dominante, da
integração-internacional-dependente, que entregará definitivamente aos mercados
a direção do processo de desenvolvimento; e a ideologia social-desenvolvimentista,
ainda em etapa de consolidação, que propugna pela participação decisiva do
Estado na condução do processo de desenvolvimento e na sustentação de políticas
sociais em benefício da classe trabalhadora.
A fragilidade política em que se
encontra o governo e a incapacidade revelada pelo PT, ao longo de seus
governos, para consolidar junto à sociedade e sua própria base social, a
ideologia social-desenvolvimentista, já determinaram uma primeira derrota
frente ao modelo de política econômica adotado pela ideologia de
integração-Internacional dependente, com a adoção das medidas de reajuste
fiscal e monetário vigentes.
As pressões externas, cujas
manifestações através das agências de “rating”, ameaçando o rebaixamento do
“grau de investimento”, são apenas a ponta do iceberg dos interesses das
corporações internacionais privadas, que atuam ao lado das pressões internas
lideradas pelo PSDB e apoiadas pelo sistema financeiro, sob a orquestração da
grande imprensa, em favor de uma rendição total à ideologia da integração
internacional-dependente.
Restam, entretanto, alguns
baluartes, que a duras penas o governo vem tentando preservar, como é o caso,
no campo econômico, da consolidação do complexo minero-industrial e de
construção naval, que gira em torno da PETROBRAS e dos recursos do PRE-SAL, e a
preservação dos bancos estatais; e no, campo social, a política de aumentos
reais do salário mínimo e as políticas de universalização dos serviços de saúde
e previdência social.
A preservação das chances de
consolidar um bloco do poder que dê sustentação a ideologia
social-desenvolvimentista está na dependência da capacidade e sensibilidade das
lideranças políticas e empresariais para articularem um pacto de resistência às
pressões internas e internacionais, mormente as do capital financeiro para uma
rendição total à política econômica de corte neoliberal ainda dominante.
No campo político, a preservação
da democracia é indispensável para manter a classe trabalhadora com chances de
se manter no Poder e abrir espaço para, num futuro ainda distante, consolidar
sua hegemonia na sociedade e tornar viável uma alternativa ideológica
pós-capitalista, cuja etapa preliminar consiste na consolidação da ideologia
social-desenvolvimentista.
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Flavio Lyra é economista da
escola da UNICAMP. Ex-técnico do IPEA e de organismos internacionais.
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