O massacre de Curuguaty foi uma
manobra política 'perfeita': depôs o presidente Fernando Lugo, que pela
primeira vez em décadas, debateu a questão agrária.
Mariana Serafini – www.cartamaior.com.br
Esta semana o Paraguai acompanha
mais uma tentativa da Justiça de encarcerar os pobres e enfraquecer os
movimentos sociais. Os presos políticos acusados de matar seis policiais
durante o episódio de 2012 que ficou conhecido como o massacre de Curuguaty serão
julgados, provavelmente, na próxima segunda-feira (3). O julgamento foi adiado,
pela quinta vez, na última terça-feira (27), depois que os acuados solicitaram
a troca de seus advogados logo no início da primeira audiência.
O massacre de Curuguaty foi o
resultado de uma ação policial que tinha por objetivo desocupar o assentamento
de agricultores sem terra Marina Kue, localizados no município de Curuguaty, na
região Norte do Paraguai. O conflito terminou em 11 camponeses e 6 policiais
mortos, na ocasião 16 trabalhadores rurais foram presos, entre eles, dois
menores de idade. Atualmente 11 seguem detidos em regime aberto e o líder,
Rubén Villalba, continua no presídio de Tacumbú, na região metropolitana da
capital Assunção. A violência policial foi totalmente desproporcional, o
assentamento era composto por aproximadamente 50 famílias que foram
surpreendidas por um aparato de mais de 300 oficiais apoiados por helicópteros
e atiradores de elite.
Nenhum policial nunca foi
investigado pela morte dos 11 camponeses. E os 12 que estão presos não têm
contra eles absolutamente nenhuma prova de que estejam envolvidos na matança.
Um estudo feito de maneira extrajudicial pela Coordenadoria de Direitos Humanos
do Paraguai (Codehupy) mostrou que durante o confronto as armas dos camponeses
– todas instrumentos obsoletos de caça – não foram disparadas e, em
contrapartida, os seis policiais mortos foram atingidos por projéteis de alto
calibre, capazes de perfurar o colete de proteção, ou com tiros certeiros na
cabeça. Em momento algum a Justiça do país considerou este relatório.
O massacre aconteceu no dia 15 de
junho de 2012, uma semana depois, no dia 21, o presidente eleito
democraticamente, Fernando Lugo, foi deposto. Uma das alegações foi de que
“promoveu a revolta no campo”. Isso porque, pela primeira vez em décadas, um
chefe de Estado ousou debater a reforma agrária, mais que necessária, não só no
Paraguai. O país guarani tem atualmente uma das concentrações de terra mais
desiguais do mundo, apenas 2,6% são proprietários de 85,5% de todo o território
cultivável, enquanto 91,4% do camponeses contam com apenas 6% de área agrícola.
O terreno de Marina Kue, que em
Guarani – segundo idioma oficial do Paraguai – significa “pertenceu à Marinha”
é considerado uma chamada “tierra malhabida”, ou seja, áreas públicas que podem
ser destinadas à reforma agrária. Isso porque, como o próprio nome diz, o
terreno pertencia à Marinha paraguaia. Porém, a propriedade foi reclamada pela
família Riquelme, integrante da cúpula que domina política e economicamente o
país. Prontamente o pedido foi atendido pela polícia que invadiu o assentamento
sem um mandado judicial.
Desde então, uma das questões
discutidas em torno do caso Curuguaty é o pertencimento da terra. Os presos
políticos vão a julgamento sem que este impasse tenha sido resolvido porque o
Estado não tratou com a celeridade que deveria o assunto.
Depois de três anos presos em
condições subumanas, os acusados pelo massacre serão finalmente julgados e
provavelmente condenados por um crime que nem se quisessem teriam condições de
cometer. O advogado paraguaio que, apesar de não ser o responsável pelo caso,
acompanha de perto a situação, Hugo Valiente, afirmou que o julgamento não
passa de um “protocolo a ser cumprido” para depois apelar à Justiça
internacional.
Acuados e sem esperança de um
processo justo, durante a primeira audiência, realizada na manhã da terça-feira
(27), um dos presos políticos, Nestor Castro, disse que a decisão de solicitar
a troca dos advogados no meio do processo se deu devido à “falta de confiança”
de que haveria alguma chance de ele e seus companheiros serem julgados com
transparência. O novo advogado responsável pelo caso terá pouco mais de 100
horas para estudar todo o processo.
O presidente da Plataforma de
Estudo e Investigação de Conflitos Campesinos (Peicc) disse que há uma
ingerência política porque o prazo dado para o novo defensor, que deve se
apresentar junto aos acusados já na segunda-feira (3), é “algo inacreditável”.
Aconselhou ainda os campesinos a não se apresentarem mais e para não dar
continuidade ao que ele qualifica como “uma farsa”. “É um teatro armado pela
justiça paraguaia”. A ex-ministra de Função Pública, Lilian Soto, argumenta que
o prazo curto deixa os acusados “impotentes”.
A resistência
A desocupação violenta de Marina
Kue não foi a primeira, e não será a última no Paraguai. Com o governo do
presidente Horácio Cartes – do Partido Colorado que permaneceu 62 anos
consecutivos no poder até as eleições de 2008 –
a repressão aos movimentos sociais do campo e da cidade cresceu
consideravelmente, na mesma medida que a resistência também ganhou mais adesão.
No entanto, este foi o único caso que resultou em um golpe parlamentar, nenhum
outro foi tão bem planejado.
O Paraguai é estratégico
geograficamente na América Latina, não são poucos os interesses econômicos que
Lugo ameaçou ao se impor, ainda que de forma tímida, contra a dinastia
perpetuada há séculos. Constituído de uma democracia frágil, o país se torna um
empecilho para o processo colocado em curso pelos governos progressistas de
integração latino-americana. Não à toa, a Venezuela só ingressou no Mercosul
quando o Paraguai estava suspenso do bloco.
Cartes não titubeou em estreitar
novamente as relações com os Estados Unidos e implementar medidas antipopulares
que em nada contribuem para melhorar a vida do povo paraguaio. Abriu as portas
para as multinacionais se instalarem com pouca ou nenhuma regulamentação e
entregou os bens naturais e parte das responsabilidades do Estado ao capital
estrangeiro por meio de sua lei de Aliança Público-Privada. Não bastasse ir na
contramão do continente, ainda implementou uma Lei de Militarização, que está
em vigor no Norte do país, onde a repressão aos movimentos camponeses é feita
pelo Exército.
Observadores internacionais
Dado este cenário desproporcional
e desfavorável aos camponeses acusados, diversos movimentos sociais paraguaios
e dos países vizinhos se mobilizam para cobrar um julgamento justo e reparação
para as famílias dos mortos e dos presos. A campanha intitulada Observadores de
Curuguaty conta com a adesão de lideranças sociais que acompanham de forma
presencial, ou não, o julgamento em Assunção. Já passam de 500 pessoas
inscritas.
Créditos da foto: reprodução
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