'O desafio é político: construir
um bloco para viabilizar um processo de crescimento com redução das
desigualdades', afirma o economista Fernando Rugitsky
Patrícia Fachin e Leslie Chaves -
IHU Online // www.cartamaior.com.br
O cenário econômico brasileiro é
desolador e diante dessa conjuntura a tendência é que não haja uma recuperação
tão cedo. Essa é a avaliação do economista Fernando Rugitsky, que na entrevista
a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, analisa alguns dos principais
elementos geradores desse quadro. Para o pesquisador, a situação do mercado de
trabalho no país serve como termômetro para dimensionar a gravidade do estágio
atual da crise. “A taxa de desemprego nas seis principais regiões
metropolitanas caiu continuamente entre 2004 e 2014, de pouco mais de 12 por
cento para em torno de 5 por cento. A partir de janeiro de 2015, no entanto,
esse movimento é revertido e, se continuarmos na tendência atual,
ultrapassaremos a média de 2004 já no próximo mês de setembro”, avalia.
O economista ressalta que, apesar
de ter se agravado mais recentemente, a crise está em processo desde 2011, com
o arrefecimento da economia chinesa e a consequente queda dos preços das
commodities. Situação que foi agravada pelas mudanças da política monetária
norte-americana, pela queda nos preços do petróleo e pelo tumultuado contexto
político brasileiro, como os efeitos gerados pelas investigações da Operação
Lava Jato. “Por outro lado, o governo resolveu jogar lenha nessa já complicadíssima
fogueira ao embarcar em um ajuste fiscal que vem sendo muito bem caracterizado
como austericídio. Levando em conta esse conjunto de fatores, as perspectivas
não são nada boas”, prevê.Ao longo da entrevista, Rugitsky defende ainda que há
uma relação direta entre os campos político e econômico, onde a instabilidade
de um setor acaba atingindo o outro. “Nocapitalismo contemporâneo, uma
separação muito grande de determinantes ditos econômicos e outros considerados
políticos tende a ser enganadora. O primeiro governo Dilmasó pode ser
compreendido, a meu ver, se tomarmos as tensões políticas e econômicas
conjuntamente. E a conjuntura atual é, em grande medida, produto do
aprofundamento daquelas tensões”, explica.
Fernando Rugitsky é graduado em
Direito e em Economia pela Universidade de São Paulo – USP, instituição pela
qual ele também obteve o título de mestre em Direito Econômico. É doutor em
Economia pela New School for Social Research, Estados Unidos, com pós-doutorado
na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São
Paulo - FEA-USP, onde atualmente é professor do Departamento de Economia.
Ainda, é pesquisador associado do Núcleo Direito e Democracia do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento - CEBRAP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como inicia a
situação econômica no Brasil em 2016 e quais as perspectivas para a economia ao
longo do ano?
Fernando Rugitsky - A economia
brasileira inicia 2016 em queda livre e, pior, sem perspectiva de reversão. A
contração do Produto Interno Bruto - PIB ocorrida em 2015 e as previsões de
outra contração em 2016 têm sido o foco dos comentários, mas, a meu ver, a
dinâmica do mercado de trabalho é mais transparente pare ilustrar a dimensão do
problema. A taxa de desemprego nas seis principais regiões metropolitanas caiu
continuamente entre 2004 e 2014, de pouco mais de 12 por cento para em torno de
5 por cento. A partir de janeiro de 2015, no entanto, esse movimento é
revertido e, se continuarmos na tendência atual, ultrapassaremos a média de
2004 já no próximo mês de setembro. Ou seja, 11 anos de criação de empregos,
formalização e compressão das disparidades salarias estão sendo revertidos em
pouco mais de um ano e meio. E note que é uma previsão relativamente
conservadora, é possível que o aumento do desemprego seja ainda mais rápido.
Esse colapso tem muitos
determinantes, naturalmente. A situação econômica está se deteriorando
rapidamente em várias economias da periferia, em parte devido à desaceleração
da economia chinesa e à queda dos preços das commodities que resulta dela. Esse
processo está em curso desde 2011, mas acelerou-se no último ano. Somado a ele,
a mudança de rota da política monetária dos Estados Unidos, com o encerramento
do afrouxamento quantitativo e a gradual elevação da taxa básica de juros, tem
um profundo impacto nos fluxos de capitais e nos mercados de moeda,
desvalorizando a taxa de câmbio de inúmeros países, o que contribui para
deprimir essas economias, ao menos no curto prazo.
O Brasil foi atingido em cheio
por ambos os processos. E esses fatores externos combinaram-se com
circunstâncias domésticas para gerar uma crise de imensas proporções. Por um
lado, a freada brusca do setor de petróleo foi em parte causada pela trajetória
do preço internacional do produto, mas não pode ser entendida sem levar em
consideração os efeitos da Operação Lava Jato. A Petrobras sozinha é
responsável por cerca de 10 por cento de todo investimento realizado no Brasil
e os efeitos contracionistas de sua crise não podem ser subestimados. Por outro
lado, o governo resolveu jogar lenha nessa já complicadíssima fogueira ao
embarcar em um ajuste fiscal que vem sendo muito bem caracterizado como
austericídio. Levando em conta esse conjunto de fatores, as perspectivas não
são nada boas.
IHU On-Line - O que aconteceu no
primeiro governo Dilma em termos políticos e econômicos, que nos ajudam a
compreender tanto o desequilíbrio fiscal quanto a opção pela austeridade fiscal
nesse momento?
Fernando Rugitsky - O primeiro
governo Dilma foi marcado por uma iniciativa ousada de enfrentar dois problemas
estruturais da economia brasileira: os juros elevados e o câmbio valorizado. O
objetivo subjacente seria recuperar a competitividade internacional e o
dinamismo da produção industrial do país. Esse “ensaio desenvolvimentista”,
para usar a expressão de André Singer, padeceu essencialmente de dois limites.
Economicamente, focou-se em
recuperar a margem de lucro das empresas sem se preocupar simultaneamente em
garantir-lhes demanda. Foi uma estratégia de estimular as exportações em um
momento em que a economia internacional desacelerava e ainda incluiu algumas
políticas que contribuíram para deprimir a demanda doméstica. Além disso, era
sabido que a desvalorização cambial pressionaria a inflação e requereria
medidas alternativas para mantê-la sob controle. Tais medidas não foram,
contudo, suficientes e acabaram tendo efeitos colaterais negativos.
O segundo limite do primeiro
mandato da presidenta foi de natureza política. Apostou-se que o ensaio
desenvolvimentista conseguiria sustentar-se com apoio dos industriais, ainda
que fosse sofrer resistência das elites financeiras. Porém, não apenas os
interesses desses grupos parecem ser mais imbricados do que se imaginava, como
também parece ingenuidade acreditar que uma divisão interna às classes
dominantes pode sustentar-se sem efetiva mobilização popular que a justifique.
Seja como for, o ensaio
desenvolvimentista não logrou acelerar o investimento privado, o que era seu
principal objetivo. Assim, a desaceleração do investimento, desacelerou o
crescimento do PIB e consequentemente a arrecadação tributária. O contínuo
aumento da receita tributária que financiou as políticas adotadas desde o
primeiro governo Lulaestancou e levou a uma grande pressão sobre as contas
públicas. Abriu-se assim uma brecha para a ascensão do discurso em defesa da
austeridade fiscal.
IHU On-Line - Muitos economistas
relacionam o desequilíbrio fiscal com as desonerações da folha de pagamento.
Qual foi o impacto disso na economia?
Fernando Rugitsky - De fato, as
desonerações foram as opções mais problemáticas do ensaio desenvolvimentista.
Acreditava-se que, ao recuperar as margens de lucro das empresas via
desonerações, o investimento privado aceleraria e puxaria a economia. No
entanto, em um contexto de demanda relativamente deprimida, com estoques
acumulando-se, as empresas não investem mais, ainda que suas margens tenham
subido. Assim, as desonerações permitiram que se embolsassem maiores lucros,
mas não tiveram efeito algum no investimento. E, ao reduzir a arrecadação,
geraram o pretexto para as políticas de austeridade.
As desonerações cabem bem em uma
narrativa crítica que busca caracterizar o ensaio desenvolvimentista apenas
como a adoção de uma “agenda FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo)”. Mas, se de fato parte do ensaio teve essa natureza e deve ser
criticada, a esquerda não deveria esquecer a outra parte, isto é, a redução da
Selic e a chamada “batalha do spread”. Essa outra parte precisa ser
reivindicada.
IHU On-Line - O senhor está entre
os economistas que defendem que parte da crise econômica tem raízes na crise
política. Que aspectos da crise política geraram a crise econômica?
Fernando Rugitsky - No
capitalismo contemporâneo, uma separação muito grande de
determinantes ditos econômicos e
outros considerados políticos tende a ser enganadora. O primeiro governo Dilma
só pode ser compreendido, a meu ver, se tomarmos as tensões políticas e econômicas
conjuntamente. E a conjuntura atual é, em grande medida, produto do
aprofundamento daquelas tensões.
Desde a reeleição, Dilma está
implementando um programa conservador aparentemente com o objetivo de recuperar
o apoio das classes dominantes que fizeram oposição ao ensaio
desenvolvimentista. Tal programa tende, por si só, a gerar recessão e
desemprego. No entanto, a situação é mais grave porque a oposição popular ao
ajuste combina-se com a resistência conservadora ao governo, gerando um governo
extremamente frágil e grande instabilidade política. Como se isso não fosse
suficiente, a Operação Lava Jato atinge em cheio o vínculo do sistema
partidário com os interesses privados e transforma a instabilidade política em
uma grande crise.
O sistema político-partidário
está, há um ano, girando em falso, completamente descolado dos conflitos
sociais e da dinâmica econômica. Isso cria um nível de incerteza que trava a
economia, suspendendo as decisões de investimento. Ainda que a China, as
commodities e o ajuste tenham um grande efeito recessivo, o colapso econômico a
que estamos assistindo não pode ser explicado só por esses fatores. A crise
econômica é, em grande parte, uma manifestação da crise política.
IHU On-Line - Em conversa recente
com os jornalistas, a presidente Dilma disse: “o maior erro do governo, estou
falando de 2014 e que teve repercussão em 2015, foi não percebemos o tamanho da
desaceleração que ocorreria em decorrência de efeitos externos e internos”.
Como você interpreta essa declaração e qual foi o peso dessa “falta de percepção”
para a economia brasileira?
Fernando Rugitsky - O contraste
entre a campanha eleitoral da presidenta e o programa que ela vem implementando
demonstra um grande desprezo pela lenta formação de uma cultura política
democrática no Brasil. Essa declaração mencionada é um simples artifício
retórico para justificar a guinada da política em curso. E, pior, joga água no
moinho da narrativa econômica liberal, segundo a qual a desaceleração em curso
requer um violento ajuste fiscal.
IHU On-Line - O senhor menciona
com frequência em seus textos o economista polonês Michal Kalecki. Como o
pensamento dele nos ajuda a compreender o atual momento econômico no mundo e no
Brasil?
Fernando Rugitsky - A
contribuição teórica de Kalecki acerca do funcionamento do capitalismo é muito
próxima da de Keynes. No entanto, ele explicitou muito mais as tensões entre
política e economia no capitalismo, apontando de forma muito original os
limites de uma concepção tecnocrática da política econômica. É claro que Keynes
tinha consciência dos constrangimentos políticos à política econômica, mas como
membro da elite burocrática inglesa ele se sentia à vontade para representar o
papel de tecnocrata. Kalecki, por sua vez, era socialista e buscava deixar
claro que políticas que beneficiassem os trabalhadores, ainda que tecnicamente
viáveis, não seriam politicamente sustentáveis se não se limitasse
significativamente o controle dos capitalistas sobre a dinâmica econômica.
Acho que essa contribuição
desempenha um papel fundamental no debate brasileiro porque o reflorescimento
de desenvolvimentismos variados, na última década no campo da esquerda, produz
muitas vezes um voluntarismo tecnocrático assustador. E isso se refletiu, a meu
ver, na estratégia política. Colocou-se grande ênfase nas disputas de
bastidores dos ministérios econômicos, sem que se buscasse simultaneamente
construir as condições políticas e institucionais para mudanças na política
econômica, democratizando o Estado brasileiro.
IHU On-Line - O que deveria ser
feito para evitar o aumento do desemprego e retrações econômicas neste ano? E
quais medidas garantiriam a retomada do crescimento? Quais serão as questões
mais difíceis que o governo terá de resolver em relação à economia neste ano?
Fernando Rugitsky - Como já
mencionei, a economia brasileira estaria em uma situação de fragilidade independentemente
do ajuste fiscal, por conta da conjuntura internacional. Mas, sem o corte
violento do investimento público, o tarifaço abrupto e a desproporção da
elevação da Selic – todas medidas adotadas em 2015 –, a situação do mercado de
trabalho estaria bem melhor. Então, as tarefas emergenciais são recuperar o
investimento público e reduzir a taxa de juros. Políticas de crédito,
timidamente cogitadas, são inócuas com esse nível de incerteza e em situação de
empobrecimento acelerado das famílias. É necessário que o governo injete
dinheiro diretamente na economia, para elevar a renda em circulação. Ao mesmo
tempo, estabilizar o câmbio com controle de capitais é a única saída para
controlar a inflação e dar alguma autonomia nacional à política econômica.
Claro que nada disso será feito
enquanto o sistema político continuar girando em falso. O grande desafio é
político: construir um bloco político hegemônico disposto a viabilizar um
processo de crescimento com redução das desigualdades (não apenas econômicas) e
aprofundamento da democracia. Trata-se do caminho que estaria à altura das
promessas não cumpridas nos últimos 13 anos. O governo, porém, tem tornado esse
desafio cada vez maior, a cada dia em que insiste na tentativa de superar a
crise de hegemonia fazendo concessões para o conservadorismo. Enquanto
fracassa, mantém o país no caos. E, caso venha a ser bem sucedido, terá criado
condições políticas para levar o Brasil de volta ao caminho que sempre
trilhamos, o da desigualdade máxima e democracia mínima. E os últimos três
governos ficarão para a história como uma miragem fugaz.
Créditos da foto: EBC
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