Juízes se veem como agentes da segurança e não como
garantidores de direitos. Prendem para obter confissões e são festejados como
heróis.
Márcio Sotelo Felippe // www.cartamaior.com.br
Quando Chico Buarque de Holanda não conseguia passar pela
censura da ditadura militar qualquer música que assinasse, inventou um
personagem. Deu-lhe o nome de Julinho da Adelaide, que “compôs” o samba Chama o
ladrão. Aprovada pela censura, obteve grande sucesso. “Julinho da Adelaide” deu
até entrevista para Mario Prata contando a história de sua vida e de sua mãe
Adelaide...
A letra era uma denúncia satírica da delinquência repressiva
da ditadura militar. Assinada por Chico, evidente a natureza política. Mas por
alguém com o nome de sambista do morro terá sido talvez entendida como a
história de um malandro fugindo da polícia. Dizia “acorda amor/eu tive um
pesadelo agora/sonhei que tinha gente lá fora/batendo no portão, que
aflição/era a dura, numa muito escura viatura/minha nossa santa criatura/chame,
chame, chame o ladrão/chame, chame o ladrão, chame o ladrão”. No final, o eu
lírico de Julinho da Adelaide percebe que não era pesadelo coisa nenhuma. Era a
dura mesmo. Ou a ditadura.
Escrevo na manhã de quinta, 18 de fevereiro e ao acordar,
naquela perturbada zona limítrofe entre sono e vigília, pensei ter tido
pesadelo, como na letra de Julinho da Adelaide. Pensei ter sonhado que no dia
anterior o STF havia decidido que onde estava escrito na Constituição Federal
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória” devia-se ler “ninguém será considerado inocente até o trânsito em
julgado da sentença penal absolutória”. Era um pesadelo: o STF voltava aos
tempos pré-iluministas, aos tempos do Santo Ofício, em que a acusação era
suficiente para que alguém fosse presumido culpado e que Deus providenciasse
uma prova da inocência por uma ordália.
Pensei ter sonhado que o celebrado constitucionalista
Barroso, ora ministro do STF, que tanto escreveu sobre como princípios deveriam
moldar o ordenamento, havia dito que era preciso reestabelecer o “prestígio e a
autoridade das instâncias ordinárias” e que em certos casos até após apenas a
decisão condenatória em primeira instância a prisão poderia caber, e deu como
exemplo o júri.
Porque, afinal de contas, somente em pesadelo um ministro do
STF tido como moderno poderia dizer tal coisa em um país em que a população
carcerária cresce em proporções geométricas, submetida a condições
absolutamente degradantes, sub-humanas e em que, como Celso de Mello lembrou na
mesma sessão, 25% das condenações são revertidas no STF.
Mas não era pesadelo.
Corri para o computador para verificar o acórdão do STF no
HC 84.078, que fez valer a presunção constitucional de inocência em 2009. Porque poderia se dar que eu tivesse sonhado
a sua existência. Mas não. Também era real. E nele, exatamente nele, no acórdão
que sete ministros do STF pisotearam no dia 17 de fevereiro, cita-se uma frase
do maior dos advogados brasileiros, também um dia ministro do STF, Evandro Lins
e Silva: “na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo,
está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente”.
Chama o ladrão?
Nada disso era sonho, mas também não amanheceu. Há algum
tempo que são 3 horas da madrugada no Brasil, a hora mais trevosa da noite, a hora
que secular tradição diz ser a hora do demônio.
Na noite escura do Brasil, sob uma Constituição democrática
na qual o princípio da dignidade humana é basilar, cresce a repressão do
Estado, hipertrofia-se o Direito Penal, mais e mais gente abarrota cadeias em
nome da “ordem” e há uma criminosa omissão de parte da sociedade e de
autoridades diante dos homicídios cometidos pelas Polícias Militares. São
jovens, negros e pobres das periferias que morrem nessa hora mais escura e
jamais verão os raios da aurora. E diante de seus cadáveres há omissão ou às
vezes festejos.
Na noite escura do Brasil torturadores confessos dos tempos
da ditadura zombam de nós, impunes e sob o beneplácito do Estado. São
enterrados com honras militares A impunidade dos perpetradores dos crimes de
lesa humanidade ecoa hoje nos porões das delegacias.
Na noite escura do Brasil juízes se veem como agentes da
segurança pública e fiscais de (seletiva) moralidade pública, pequenos
torquemadas, e não como garantidores de direitos. Prendem para obter confissões
e são festejados como heróis.
Na noite escura do Brasil magistrado que cumprir a
Constituição e libertar pessoas presas além do tempo da pena pode ser punido
pelos seus pares.
Na noite escura do Brasil zumbis vestidos de amarelo pedem a
volta da ditadura e sorriem felizes em fotos com soldados armados.
Na noite escura do Brasil dizem que tudo isto está muito bem
porque é preciso manter a ordem, prender corruptos e “higienizar” a sociedade,
seja matando, seja amontoado pessoas como ratos em presídios imundos, seja
pisoteando garantias fundamentais.
Na noite escura do Brasil é desordem defender direitos, é
desordem dar eficácia aos preceitos democráticos da Constituição, é desordem
garantir a dignidade humana. É desordem até mesmo libertar presos que já
cumpriram pena.
Mas esta “ordem” é, como dizia com a contundência e a
coragem dos grandes advogados Evandro Lins e Silva, a vontade do mal. Como se
defender se o mal veste majestosas togas cheias de pompa e circunstância e é
proferido por pessoas que ali estão, supostamente, para guardar a Constituição?
Chama o ladrão?
O velho e sábio mestre da Filosofia do Direito Goffredo da
Silva Telles fulminava a ideia de “ordem” dizendo que tudo pode ser ordem ou
desordem. Usamos essas palavras quando a disposição das coisas nos convém. E
elas podem nos convir como seres éticos ou convir para aqueles que, no fundo,
“equiparam-se um pouco” a quem delinque e podem fazê-lo, insciente ou não do
mal, em nome do Estado. E isto não sou eu que digo. Foi um ex-ministro do STF,
citado pelo próprio STF, que disse.
As palavras “norma”, “interpretação da norma” “decisão
judicial”, “poder”, “autoridade” e outras tantas tem a capacidade de suspender
juízos lógicos e morais. Elas proporcionam um salto para o pensamento mágico.
Basta a palavra para que se perca o sentido de mal e bem.
Na noite escura do Brasil pune-se.
Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria
Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu
o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da
Verdade da OAB Federal.
Créditos da foto: EBC
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