Em 1976, Washington ajudou a instaurar, em Buenos Aires, a ditadura mais sangrenta da América Latina. Agora, diz Nobel da Paz, EUA articulam outros tipos de ataque à democracia
Por Thales Schmidt | Imagem: Martin Acosta // http://outraspalavras.net/
Há 40 anos os militares argentinos prenderam a presidente Isabel Perón e invadiram as estações de televisão e rádio para dar um recado: “O país está sob o controle operacional do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas. Se recomenda a todos os habitantes o estrito respeito às ordens das autoridades militares e policiais”. A madrugada de 24 de março de 1976 durou mais de 7 anos e terminou com milhares de mortos, torturados e desaparecidos pelos militares. Agora, o país relembra o aniversário do golpe com a visita de Barack Obama, presidente dos Estados Unidos e chefe de Estado de um país diretamente envolvido com a derrubada do governo.
A data da visita de Obama a Mauricio Macri foi muito criticada por alguns setores da sociedade argentina. O prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, preso e torturado pelo governo militar, publicou carta pública em que diz que os Estados Unidos “foram cúmplices de golpes de Estado no passado e no presente da região”. Esquivel também afirmou que Obama será bem recebido quando os Estados Unidos “deixarem de ser o único país da América que não ratifica a Convenção Americana de Direitos Humanos”.
Histórias de tortura e desaparecimento forçado de opositores unem diversos países da América Latina, mas na Argentina a violência contou com um episódio a mais: o sequestro de bebês. Presas grávidas eram obrigadas a dar à luz em cativeiro e seus bebês eram doados a militares e civis próximos ao regime. Vários filhos têm como pais os assassinos de seus pais. Esses crimes deram origem às Mães e Avós da Praça de Maio — famosas mundialmente por sua luta em busca da identidade verdadeira dos sequestrados.
Até o momento, 119 filhos de desaparecidos conseguiram recuperar a sua verdadeira identidade por meio de testes de DNA. Victoria Donda descobriu a verdade sobre seus pais, militantes políticos sequestrados pela ditadura, com 26 anos, em 2003. “Não há nenhuma sociedade que possa amadurecer e avançar sem conhecer seu passado. A justiça é um direito básico que temos como seres humanos”, conta a hoje deputada federal pelo partido Libres del Sur. Seus pais biológicos seguem desaparecidos até hoje.
Obama tinha planejado uma visita a Escola de Mecânica da Armada (ESMA) — um simbólico centro de tortura e detenção durante a ditadura e local onde Donda e diversos outros bebês sequestrados nasceram — mas recuou diante da pressão de organismos de direitos humanos. Hoje, o local funciona como um museu sobre o período e foi rebatizado como Espaço para a Memória e Promoção e Defesa dos Direitos Humanos. O presidente dos EUA anunciou que documentos sobre o envolvimento do país na ditadura argentina serão divulgados como forma de “reconstruir a confiança que pode ter sido perdida entre nossos dois países”. A última divulgação de arquivos secretos aconteceu em 2000, no governo do também democrata Bill Clinton.
“A vinda de Obama é muito importante porque as relações entre Estados Unidos e Argentina ficaram estremecidas durante o governo de Néstor e Cristina Kirchner (2003–2015), embora não tenha havido uma ruptura. Agora, com Macri será um governo muito mais próximo de Washington”, avalia Luis Fernando Ayerbe, coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
A participação do Tio Sam
Documentos do Departamento de Estado dos EUA revelados anteriormente comprovam a cumplicidade do país com os crimes contra a humanidade cometidos pelos argentinos. “O que não é entendido nos Estados Unidos é que vocês (argentinos) estão em uma guerra civil”, disse Henry Kissinger, então secretário de Estado, em reunião em 1976 com César Guzzetti — ministro de Relações Exteriores do governo militar. “Se vocês puderem terminar antes de o Congresso voltar, melhor”, disse Kissinger, preocupado com a votação de sanções à Argentina no Congresso americano após denúncias de violações de direitos humanos. O mesmo Kissinger teve participação ativa na derrubada do governo chileno de Salvador Allende em 11 de setembro de 1973.
“Os Estados Unidos deram apoio ao golpe e reconhecimento ao governo de (Jorge Rafael) Videla, e foi parceiro dos militares até a Guerra das Malvinas, em 1982. Eles participaram do treinamento de militares argentinos”, diz Ayerbe.
Diversos militares que comandaram a Argentina durante a ditadura, como Videla, Leopoldo Fortunato Galtieri e Emilio Massera estudaram na Escola das Américas, instituição de ensino militar localizada no Panamá e financiada pelos Estados Unidos. O local foi responsável pela formação de outras importantes figuras das ditaduras da época como Manuel Noriega e Hugo Banzer Suárez, responsáveis por crimes contra a humanidade no Panamá e na Bolívia, respectivamente.
Texto publicado inicialmente no site do autor.
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