Governo moribundo e acuado, Legislativo sem legitimidade, Judiciário contaminado e manifestantes polarizados colocam à prova equilíbrio institucional brasileiro
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Este é o primeiro texto da série especial produzida pelo Politike e pelo OxPol sobre a crise no Brasil.
Jogadas imorais, manobras maquiavélicas e descarada falta de honestidade. São características em comum que explicam a popularidade das comparações entre a política brasileira e a série House of Cards. Até o Netflix ficou à vontade para usá-las na promoção de sua nova temporada no País. A repercussão da iniciativa de marketing levou o cientista político Maurício Santoro a brincar noTwitter: “… a única instituição que atualmente goza da confiança e apreço de todos os brasileiros é o Netflix”.
As analogias são tentadoras, mas, no Brasil, que nada tem de ficção, a brincadeira se baseia em uma constatação preocupante. Mesmo diante de toda a turbulência política e derrocada econômica, houve um tempo em que o país parecia caminhar a passos firmes em direção a um sistema democrático mais legítimo, onde nem mesmo as mais altas autoridades ficariam imunes à Justiça. As instituições democráticas construídas e fortalecidas nas três décadas de exercício dinâmico da política em que o Brasil gradualmente foi se livrando das correntes da ditadura, dizia a predição, permaneceriam firmes e funcionariam como alicerces para a estabilização e a retomada. Nas últimas semanas, passou a ser evidente que essa percepção se baseava em outra mania nacional, otimismo demasiado.
A histeria polarizada que toma conta das redes sociais e reverbera com frequência no Congresso acabou por respingar no Judiciário, em especial após uma série de decisões em resposta à nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ministro chefe da Casa Civil. Despachos judiciais e liminares de cortes de primeira instância, ao menos uma delas emitida por um juiz cujaimparcialidade foi fortemente questionada, pipocaram país afora apontando em direções contraditórias. O STF demorou para se pronunciar sobre um tema de sua competência — se Lula poderia ou não assumir como ministro. Enquanto isso, as cortes inferiores continuaram suspendendo e aprovando a posse do ex-presidente em um ioiô jurídico que agravou a convulsão política.
O STF enfim assumiu o caso com o posicionamento do ministro Gilmar Mendes, suspendendo a posse de Lula e negando foro privilegiado ao ex-presidente. Outros ministros examinaram a questão, mas o impasse ainda não terminou, uma vez que recursos da Advocacia Geral da União devem exigir uma decisão final em plenário. Ainda assim, outra decisão do ministro Teori Zavascki, responsável pela Operação Lava Jato no STF, determinou, com base em jurisprudência da corte, que a investigação envolvendo Lula seja enviada de volta ao Supremo, dando novo ar de vai e volta para as decisões jurídicas.
Em outra frente, Sergio Moro — uma figura até então amplamente tida como imparcial, à frente de uma operação que não poupou figurões politicos ou empresários poderosos — deu uma guinadaem direção ao que muitos interpretaram como um posicionamento político. Isso ocorreu quando, horas após a nomeação de Lula à Casa Civil e sem autorização do STF, o juiz liberou a divulgação de uma série de conversas telefônicas interceptadas pela Polícia Federal.
O debate em torno da legalidade das gravações, já que uma delas envolvia a presidente e havia sido captada após Moro ordenar o fim da escuta telefônica em Lula, e a forma com que foram divulgadas geraram uma tensão ainda maior na comunidade jurídica, com juízes, OAB e juristasrenomados se pronunciando a favor e contra a ação de Moro.
A maior reprimenda partiu do STF, por meio de Zavascki, que criticou fortemente Moro por liberar áudios envolvendo autoridades com foro privilegiado e conversas sem relação com a investigação. Segundo o ministro, Moro não tinha autoridade para tal. Ele concedeu dez dias para o juiz se explicar sobre o levantamento do sigilo da presidente. Na terça-feira 29, Moro sedesculpou. Sua atitude foi considerada precipitada e pode ter manchado, ou até mesmo comprometido parte da Lava Jato. Principalmente, a capacidade de Moro para julgar com independência está agora em cheque.
Deputados pedem a saída de Eduardo Cunha. Foto: Lula Marques/ Agência PT
O judiciário, contudo, é somente a mais recente das instituições brasileiras a tremer. Há muito, o Legislativo se equilibra sobre pernas bambas. O processo de impeachment é liderado por Eduardo Cunha, réu no STF sob acusação de corrupção e lavagem de dinheiro por suposto envolvimento no esquema de desvios na Petrobras. Além disso, a comissão responsável por analisar o processo tem um quarto dos deputados investigados no STF por crimes eleitorais, lavagem de dinheiro, corrupção passiva e formação de quadrilha, entre outros. Ou seja, a legitimidade do processo conduzido pela Câmara é altamente questionável.
Do Senado, veio a proposta “criativa”. Uma manobra para implementar um sistema parlamentarista com um primeiro-ministro que enfraqueceria os poderes da presidente. A ideia, que retoma um projeto parlamentar já rejeitado em referendo, foi veiculada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, que também é protagonista de um histórico de escândalos. O episódio, provisoriamente arquivado, evidencia que soluções de curto prazo para acalmar a situação e salvar as peles de alguns legisladores em apuros podem ter prevalência sobre a Constituição.
Reflexo de uma classe política em ruínas
Após a divulgação da lista de pagamentos da Odebrecht para campanhas, ficou ainda mais evidente que os principais atores da política nacional têm explicações a dar aos eleitores.
O governo balança por seus erros na área econômica, por pressão da Lava Jato e pelo colapso do apoio popular. Também por não ter conseguido solidificar sua própria base na Câmara em mais de um ano de mandato. O eclético grupo que compõe sua coalizão tem a tendência de debandar com a falta de agrados atrativos para satisfazer suas demandas políticas.
No momento, a carniça em oferta é a queda de Dilma Rousseff. O PMDB abandonou o governo nesta terça-feira e aposta em uma eventual administração de Michel Temer em um cenário pós-impeachment. Encurralado, o Planalto busca apoio em sua base de militantes à esquerda, que enxerga o impeachment sem provas de crime de responsabilidade como um golpe, atitude que acirra a tensão nas ruas. Do outro lado, se intensificam as manifestações pró-impeachment, com apoio de parte do empresariado nacional, em especial da Fiesp.
Para sobreviver, Dilma Rousseff precisa responder à mobilização de Michel Temer e do PMDB para removê-la do poder. Foto: Lula Marques/ Agência PT
No olho do furacão, a operação Lava Jato fez aniversário. Completou dois anos com 93 condenações e R$ 2.9 bilhões em desvios devolvidos aos cofres públicos. Desmantelou redes de corrupção, expondo não apenas a classe política por trás delas, mas também atores econômicos extremamente poderosos. É um desenvolvimento crucial para o Brasil, mas esse processo sempre caminhou sobre uma linha tênue entre reforçar as bases democráticas dos país e expor a fragilidade de seus alicerces. Não são efeitos necessariamente opostos, mas a situação chega muito próxima a uma etapa delicada e imprevisível, assim como o desfecho de uma boa série de TV. No entanto, o que mais convida a analogia agora é o fato de que as instituições democráticas brasileiras — corroídas por corrupção, interesses escusos, patronagem e polarização política — aparentam fragilidade e parco equilíbrio.
O Brasil pode se mostrar um castelo de cartas real.
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