quarta-feira, 31 de agosto de 2016

O estupro da democracia

Passando por cima dos direitos humanos dos brasileiros, os senadores da oposição avançaram um novo capítulo na violação das regras do devido processo.

             Martín Granovsky, para o Página/12 // www.cartamaior.com.br

A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Se é negra, jovem e pobre, aumentam as possibilidades de sofrer uma agressão. Os estudos de antropologia chamam isso de “cultura do estupro”.

Depois de assistir a sessão do Senado contra Dilma Rousseff, qualquer um pode substituir a palavra “mulher” pela referência à Constituição brasileira, e a palavra “negra” por “democracia”, e verá que a teoria pode se aplicar à política sem se forçar nada. Nada.
Os senadores da oposição avançaram um novo capítulo na violação das regras do devido processo. Vulneraram os direitos políticos de Rousseff, que deve perder o cargo, a não ser que aconteça um milagre, e deverá ficar inabilitada politicamente por oito anos. Estão, assim, passando por cima dos direitos humanos dos brasileiros: em outubro de 2014, votaram no primeiro e no segundo turno, a favor de Dilma Rousseff e contra o direitista Aécio Neves. Daquele momento em que 54 milhões de votos deram a vitória a ela, até o atual golpe de Estado em marcha, se passaram menos de dois anos.

“Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais, para que o governo que assume sem o amparo das urnas ganhe aparência de legitimidade”, disse Dilma, em sua intervenção no Senado, nesta segunda-feira (29/8). “Se invoca a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente os fatos”.

Não é um tema de forma, porque, na democracia, a forma é também o tema de fundo. Uma constelação integrada pelos grandes banqueiros internacionais, os grandes industriais brasileiros, uma parte importante do Poder Judiciário, os grandes meios de comunicação, todos os parlamentares do PSDB e a maioria dos legisladores do PMDB tentam construir uma narrativa para manter a aparência de legalidade na violação da Constituição do país.

O Brasil não vive sob um regime parlamentarista. Mas o Congresso pode censurar a presidenta cujo mandato estava previsto até dezembro de 2018.

Os parlamentares devem fundamentar sua acusação contra Dilma, como em qualquer processo. Em abril, quando o processo enfrentou sua primeira etapa, na Câmara dos Deputados, um deles expôs, em sua alegação, uma homenagem ao militar que torturou a presidenta quando ela era uma guerrilheira e estava presa nos porões da ditadura. Outros dedicaram seus votos às suas mães, esposas, filhos e outros familiares.

Quatro congressistas apoiadores de Dilma Rousseff denunciaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que não se respeitou o direito de defesa, apontando a restrição ao tempo de suas testemunhas, entre outros argumentos. Quando foi notificado sobre a petição, o chanceler interino José Serra disse: “São uns idiotas, essa notificação deve ser dirigida ao Senado”. Em política internacional, a representação deve ser assumida pelo Poder Executivo, não pelo Congresso. Podemos ver um resumo, ou o texto completo da petição à CIDH, neste link: http://bit.ly/2bzINaZ.

Nesta segunda-feira, no Senado brasileiro, vários senadores criticaram o desempenho de Dilma no governo. Porém, num juízo político, os senadores são juízos, não parlamentares em meio de uma interpelação. Os juízes perguntam e depois sentenciam. Não replicam.

O presidente do Supremo Tribunal Federal brasileiro, ministro Ricardo Lewandowski, encarregado de dirigir as sessões do Senado, deixou que os senadores esquivassem alegremente o seu papel de juízes. Mas não se furtou em corrigir Dilma: “peço que não fale mais nada sobre o governo interino”, exigiu, se referindo às menções dela ao “governo usurpador” e “golpista”. “a condenação exige provas cabais de que se haja cometido, dolosamente, um delito de responsabilidade fiscal”, explicou Dilma. “Sem delito, é golpe”, sintetizou.

É equivocado pensar que um juízo político sem direito de defesa é uma coisa e a política é outra. São duas caras da mesma moeda. Para observar o que ocorre no Brasil e seus efeitos para a posteridade não é preciso nenhum relato do futuro. Como citou a própria Rousseff, Temer já impôs limites para o gasto orçamentário até o ano de 2037 que nem mesmo as políticas sociais poderão perfurar. Seu governo também impulsou a redução da maioridade pena e a ampliação da terceirização no mundo do trabalho. “Isso significa a precarização do trabalho no Brasil”, anunciou o senador Roberto Requião, um dos poucos dirigentes do PMDB fiéis ao projeto original.

A Polícia Federal busca argumentos para prender o ex-presidente Lula da Silva, o único político do Partido dos Trabalhadores (PT) em condições de competir nas eleições presidenciais de 2018. As polícias militares (que são administradas no Brasil pelos governos estaduais) utilizam cada vez mais o gatilho fácil, e reprimem manifestantes contrários ao interesses do poder econômico, como se viu nesta mesma segunda-feira em São Paulo. O futuro já chegou.

Dilma talvez tenha se equivocado no Senado, com respeito aos seus interlocutores, Ela falou aos senadores, não ao povo. Não é por suas debilidades políticas que os escravocratas do Brasil querem expulsá-la. É para continuarem fiéis à cultura do estupro, que praticam desde o Século XVI.

Tradução: Victor Farinelli


Créditos da foto: Edilson Rodrigues / Agência Senado

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