A decisão do TRF-4 que arquivou representação contra o juiz da Lava Jato remete ao totalitarismo e rifa direitos fundamentais
por Marcio Sotelo Felippe // http://www.cartacapital.com.br/
José Cruz / Agência Brasil
Sergio Moro em depoimento na Câmara: ele pode tudo?
Os fatos são bem conhecidos. O ex-presidenteLula estava “grampeado” por ordem do juiz Sérgio Moro. Uma conversa entre Lula e a então presidenta Dilma foi gravada quando já havia sido suspensa a ordem judicial. Apesar disso, o áudio foi divulgado pelo juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba e reproduzido pela TV Globo, violando todas as regras constitucionais sobre sigilo das comunicações. Moro claramente violou seus deveres funcionais, além de incorrer em outras sanções.
O que não ficou ainda claro é a exata extensão do fundamento e consequências da decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, responsável por revisar as decisões da Justiça Federal do Paraná, que absolveu Sergio Moro em 22 de setembro em uma votação por 13 a 1.
O relator, Rômulo Pizzolatti, amparou seu voto em uma extensa citação de Eros Grau, um entusiasta do legado do jusfilósofo Carl Schmitt.
Carl Schmitt publicou em 1922 uma pequena obra que se tornou célebre, denominada Teologia Política. Um inimigo do Iluminismo, Schmitt iniciou o texto com a frequentemente citada frase “soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. A ideia era: o Estado é como Deus. Deus criou o mundo fazendo-o funcionar de acordo com leis gerais e universais, mas pode, se necessário, revogar de vez em quando essas regras por meio de milagres. Do mesmo modo o Estado.
Uma ordem jurídica é constituída por regras gerais e impessoais, mas o Estado, tal como Deus, pode operar alguns “milagres” que passam a ser denominados, na linguagem jurídica, de estado de exceção.
A passagem que o relator Pizzolatti citou é extraída de um texto de Grau: “a exceção é o caso que não cabe no âmbito da “normalidade’ abrangida pela norma geral (...) a exceção está no Direito (...) diante de situações como tais o juiz aplica a norma ‘desaplicando-a’, isto é, retirando-a da exceção”.
Em 1933, Hitler ascendeu ao poder e Schmitt viu que sua Teologia Política estava perfeitamente de acordo com as práticas jurídicas nazistas. Publicou um artigo com o títuloO Fuhrer protege o Direito. Hitler destruiu a Constituição de Weimar, mas o soberano, tal como Deus, pode operar tais milagres e decidir sobre o estado de exceção. A doutrina de Schmitt legitimava a destruição da ordem democrática de Weimar por Hitler.
Esta concepção foi a utilizada pelo relator da representação disciplinar contra Moro. Um juiz viola flagrantemente seu dever funcional, descumpre a regra constitucional que protege o sigilo das comunicações, divulga o que colheu por uma ordem judicial que já estava revogada (por ele mesmo) entregando-a à maior rede de tevê do País e é absolvido porque se trata de uma “situação excepcional”.
Para eles, Schmitt, Grau e Pizzolatti, a Constituição, com suas regras genéricas e vagas, precisa de exceções. O problema é que essas exceções liquidam “apenas” as garantias e direitos fundamentais, cláusulas pétreas, ou seja, as que em hipótese alguma admitem exceções e somente podem ser revogadas por uma Constituinte.
Louve-se o voto vencido do desembargador federal Rogério Favretto: "o Poder Judiciário deve deferência aos dispositivos legais e constitucionais" (...) "sua não observância em domínio tão delicado como o Direito Penal, evocando a teoria do estado de exceção, pode ser temerária se feita por magistrado sem os mesmos compromissos democráticos do eminente relator e dos demais membros desta corte". Ficou isolado.
Em outras palavras: tal como Hitler pode destruir a Constituição de Weimar, Moro está autorizado a destruir a nossa. Isto quer dizer exatamente o seguinte: qualquer juiz no Brasil pode a partir de agora violar nossas garantias e direitos fundamentais desde que, a seu juízo subjetivo, se trate de uma “situação excepcional”.
Na prática, que nenhum juiz mais está mais vinculado à Constituição e, se essa autorização foi utilizada contra a então presidenta e um ex-presidente, nenhum brasileiro está mais protegido pelos direitos fundamentais.
Em outras palavras: o espectro de Carl Schmitt, o jurista de Hitler, ronda Curitiba. Ronda o Brasil.
Marcio Sotelo Felippe foi procurador-geral do Estado de São Paulo (1995-2000), diretor da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado e membro da Comissão da Verdade da OAB nacional, tendo exercido a docência nas áreas de Filosofia do Direito e Filosofia Política.
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