Alaor Leite, penalista
A teoria do domínio do fato, de criação do professor alemão Claus Roxin, foi mal aplicada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na visão de Alaor Leite. O penalista, que é orientando de doutorado de Roxin, acredita ainda que essa interpretação errônea possa ser adotada pelos outros tribunais do país e leve à predominância dessa visão deturpada do domínio do fato. As críticas de Leite também se dirigem à comissão de reforma do Código Penal, que teriam ignorado as contribuições que a doutrina teria apresentado. Em entrevista ao Justiça&Direito, Leite comentou também sobre a possibilidade de um penalista ser indicado como ministro do STF para a vaga deixada por Joaquim Barbosa.
A interpretação que o STF deu à teoria do domínio do fato contribuiu para o seu entendimento?
Não contribuiu para o entendimento correto dessa teoria, mas contribuiu para que o domínio do fato entrasse na pauta de discussões. Não é uma teoria inventada pelo STF e também não é nova. Quando o STF veio e resolveu decidir o caso do mensalão fazendo uso dela, ele tinha um sem número de artigos e considerações sobre sua aplicação. Mas o Supremo fez uma utilização própria do domínio do fato, usurpou o nome e aplicou outra coisa. Como o tribunal é nossa mais alta corte e, nesse caso, por se tratar de acusados de repercussão política enorme, é claro que essa discussão fez o tema entrar em pauta, mas não contribuiu nem para o esclarecimento do meio jurídico nem para a população. Foi muito confusa do ponto de vista técnico. Em quais pontos o STF divergiu da correta aplicação da teoria do domínio do fato?
Ela nasceu com um propósito bem modesto: distinguir quem é autor e quem é partícipe de um delito. Quando o STF fez uso, ele o fez com outra finalidade. Não havia preocupação em distinguir autor e partícipe, mas sim em fundamentar a responsabilidade de pessoas em posições de comando dentro de hierarquias. O problema do Supremo era a ausência de prova em relação a ações e omissões concretas de pessoas da cúpula diretiva. O STF se viu numa situação de estado de necessidade probatório e lançou mão da teoria do domínio do fato para suprir essa lacuna. Não foi para isso que a teoria foi criada. Ela pode conduzir a essas responsabilidades, mas não é sua finalidade primária. Houve também uma confusão com outras formas de responsabilização legítimas. O STF poderia ter responsabilizado essas pessoas com outras categorias do direito penal, não era necessário o uso da teoria do domínio do fato. Os erros que o STF cometeu partem de uma certa incompreensão do sistema de autoria e participação que deve viger no direito penal brasileiro, que não é igual ao direito penal alemão, que é o contexto no qual o domínio do fato foi criado.
Os erros quanto à aplicação dessa teoria estão presentes em outros tribunais do Brasil?
A confusão feita pelo STF não foi privilégio dele. A jurisprudência brasileira de outros tribunais já vinha aplicando a teoria de forma um tanto equivocada. O que a Ação Penal 470 fez foi escancarar um problema, o mau uso da teoria. Quando uma corte constitucional erra, o erro é mais grave do que o de um tribunal ou de um juiz. O erro do STF não foi um erro novo. É um erro que já vinha tomando conta e que foi consagrado e consolidado na Ação Penal 470. O perigo é que a jurisprudência se sinta segura em reproduzir esses erros chancelados pelo STF. Daí a necessidade de que a ciência brasileira se posicione e faça uma crítica cuidadosa a essas decisões judiciais. O STF precisa ter um criminalista na sua composição?
Há ministros no STF que entendem de direito penal, mas não há na composição atual um ministro com uma carreira dedicada exclusivamente ao direito penal. Como há 11 ministros, é natural e interessante que a composição seja heterogênea, e, se há uma lacuna, ela diz respeito ao direito penal. O que não pode ser esquecido é que o STF é uma corte constitucional. O julgamento do mensalão é na verdade uma patologia do sistema jurídico brasileiro, que permite que por competência originária cheguem ao STF ações penais. Isso é um desvio de finalidade e de foco da corte constitucional. Como essas ações existem, é importante que haja um penalista no STF. Há muito tempo há esse pedido, não ocorreu só por causa do mensalão. Como agora tudo ficou mais evidente, os órgãos de classe propuseram nomes concretos e enviaram listas para que a presidente da República indicasse um deles.
A comissão de reforma do Código Penal não olhou para a produção doutrinária em direito penal?
Esse projeto que está em curso ignora a ciência desde o começo e mesmo depois de dois anos de debates e seminários. Essa reforma é à margem da ciência e é orientada por interesses meramente práticos. O grande equívoco é que ele se propõe a reformar também a Parte Geral do código, que é um assunto eminentemente técnico. A parte geral do direito penal não está à disposição de políticas eficientistas dos parlamentares. Quando essa reforma se propõe a fazer uma alteração global do Código Penal a despeito da ciência brasileira, esse é o pecado original da reforma. E um pecado que se perpetuou. A reforma começou sem alarde. Quando saiu o primeiro relatório e todo mundo se espantou, a crítica científica produziu artigos muito agressivos contra a reforma. Esperava-se que depois daquilo houvesse chance de diálogo, mas não houve. Como a ciência não foi convidada para participar, é natural que ela se posicione da única forma que a ciência pode atuar: escrevendo artigos, debatendo. São dois anos de críticas científicas ignoradas. Por que a Parte Geral do Código Penal não precisa ser alterada?
Não é o momento de reformar esse coração do Código Penal. Por alguns motivos. O primeiro é que a reforma de 1984 é recente. Para a vida de um código, 30 anos não é nada. O coração do direito penal não é produto do legislador, é produto de uma interação entre legislador, ciência e jurisprudência. É necessário que o código que entre em vigor seja debatido e comentado pela ciência, ganhe a prática judiciária por meio das decisões em um movimento dialógico composto por esses três grandes grupos. Há problemas na Parte Geral, mas são superáveis por meio dos estudos científicos e da interpretação judicial. Não acho que seja necessária uma intervenção grave e ampla do legislador nessa parte do código, ainda é cedo. O discurso que foi feito de que é um código defasado e incompatível com a realidade é um discurso que talvez tenha aplicação na Parte Especial ou na Lei de Execução Penal, que estão mais sujeitas às circunstâncias empíricas, como superlotação carcerária, excesso de presos provisórios. São problemas que mudam rapidamente, e nesses aspectos pode ser que haja necessidade de reforma. A Parte Especial tem uma tendência descriminalizadora?
A solução do aborto, chamada de solução da indicação, que permite em alguns casos o aborto até a 12.ª semana já não consta no substitutivo do código. A descriminalização da posse de drogas para uso pessoal que foi proposta no primeiro relatório também não consta mais. A própria reforma se confunde, é uma colcha de retalhos que muda conforme as circunstâncias. Houve uma tendência descriminalizadora nesse setor, mas criminalizadora em outros. O mesmo legislador que queria descriminalizar em um primeiro momento a posse de drogas para uso pessoal criminalizou o bullying, o mobbing, condutas modernas que não têm conteúdo de injusto penal e passariam a ser criminalizadas de forma inovadora. Não havia nem no começo uma tendência, nem há agora. Na jurisprudência, o garantismo é tão valorizado quanto na universidade?
O termo garantismo penal é pouco preciso teoricamente. Com a utilização excessiva do termo garantismo, ele perdeu um pouco seu conteúdo semântico e foi utilizado de uma forma para o qual não foi pensado. A teoria do garantismo penal é de um professor italiano, Luigi Ferrajoli. Mas a utilização do termo já se desgarrou da obra do Ferrajoli e se tornou um termo pejorativo. Quando há manifestações de que tal pessoa é muito garantista, há um sentido que não é técnico. Não dá para dizer se a jurisprudência brasileira é garantista ou não porque não se sabe o que é ser garantista. Em um país que tem uma Constituição da República democrática, o que se espera do juiz não é que seja garantista, mas que respeite a Constituição. E só. É preciso abrir mão desses slogans que povoam os discursos jurídicos e jornalísticos e focar no essencial. O termo garantismo não faria falta a ninguém.
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