Ives Gandra da Silva Martins Filho
De olho numa vaga no STF, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra Martins Filho, resolveu agradar os poderosos, jogar para a arquibancada e boicotar o próprio tribunal que preside. Ives pediu ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, a retirada de pauta dos projetos que ali tramitam prevendo a criação de 100 novas Varas do Trabalho, 200 novas vagas de juízes trabalhistas e 8 mil de servidores da Justiça (esta semana, a Anamatra, associação dos magistrados da Justiça do Trabalho, conseguiu uma liminar em mandado de segurança para manter os projetos em tramitação, mas a ameaça persiste).
Conforme as contas de Ives Gandra, o impacto anual nas contas públicas, caso aprovados todos os projetos, será de R$ 1 bilhão. Segundo Maia, o presidente do TST o procurou “pela compreensão que ele tem de que não é momento de se criar despesa”.
A atitude de Ives, como era de esperar, rendeu aplausos no noticiário da mídia tradicional, eternamente alinhada ao discurso econômico neoliberal da austeridade pela austeridade. Mas no meio do confete, mal se dissimula o real intuito dessa iniciativa: esvaziar a Justiça do Trabalho até a inanição final.
O mesmo presidente do TST tão preocupado com o ajuste fiscal estimou, em entrevista ao Estadão de 10 de maio passado, que em razão da crise econômica devem chegar este ano à Justiça nada menos que 3 milhões de ações trabalhistas, um crescimento de quase 13% em relação a 2015 – ano que, por sua vez, já registrara um crescimento de 5% diante de 2014.
“O tsunami vai chegar até nós”, alertava Ives na época, referindo-se à sobrecarga da Justiça do Trabalho.
Agora, contraditoriamente, o mesmo Ives impede que a Justiça do Trabalho amplie sua estrutura para conter a onda gigante.
A iniciativa é incompreensível e conspira contra a própria instituição que Ives comanda. Não havia necessidade de pedir a retirada dos projetos. Caso não os visse como prioritários – o que já seria questionável, dada a posição que ocupa e a crescente demanda social pelos serviços da Justiça – bastaria permitir que sua tramitação no Congresso seguisse o curso normal, ou, quando muito, negociar um corte no limite do essencial.
A vitória da direita na recente crise institucional abriu a temporada de caça a tudo que significa trabalhismo no país. A criminalização da esquerda – notadamente, não por acaso, justamente de um partido que é “dos trabalhadores” – e o combate sem quartel a suas políticas refletem-se de modo mais agudo no revanchismo das propostas encampadas pelo governo golpista, que visam claramente desmantelar as relações de trabalho e os direitos do trabalhador.
Destacam-se o projeto que permite a terceirização indiscriminada de mão-de-obra, inclusive para as atividades principais das empresas, rebaixando salários, precarizando direitos, potencializando acidentes de trabalho; e o que faz prevalecer a negociação coletiva sobre a legislação, mesmo quando prejudicial ao trabalhador, uma grave ameaça aos trabalhadores vinculados a sindicatos mais fracos.
Trata-se de duas propostas que prejudicam quase 50 milhões de trabalhadores com carteira assinada e atingem o coração da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), que, com todos os defeitos, representa há sete décadas o freio histórico e mais eficaz à exploração absoluta da classe trabalhadora.
Nesse contexto, a Justiça do Trabalho entrou na linha de tiro. Aos 75 anos de existência, vista como “protecionista” pelas elites, tanto a oligárquica quanto a neoliberal, e criticada mesmo à esquerda, ela ainda é, apesar dos inúmeros defeitos, uma instituição fundamental para a estabilidade das relações de trabalho no país, e última trincheira do trabalhador contra o abuso do poder econômico.
A maior velocidade e eficácia de seus processos individuais e coletivos – fruto da dedicação de juízes e servidores, da especialização e da ênfase na conciliação, e da proibição de recursos na fase anterior às sentenças – propiciou a redistribuição, aos trabalhadores, de nada menos que R$ 33 bilhões em direitos descumpridos pelos empregadores nos últimos dois anos – 2014 e 2015. É dinheiro que contribuiu diretamente para a redução da desigualdade no país.
E mais. A arrecadação de custas e recolhimentos ao INSS ultrapassou R$ 5 bilhões de reais no mesmo período – mais que o dobro da economia que Ives declara pretender com a retirada dos projetos de expansão da Justiça do Trabalho.
Não bastasse isso, dados do Ministério do Trabalho mostram que, nos últimos 20 anos, a Justiça do Trabalho ajudou a resgatar mais de 50 mil trabalhadores de condições análogas à de escravos.
Talvez seja exatamente por essa relativa eficácia que a Justiça do Trabalho sofra os mais duros ataques dentre todos os ramos do Judiciário brasileiro. Na esteira da caça ao trabalhismo, está em curso uma nítida orquestração para esvaziá-la, iniciada pela draconiana asfixia orçamentária imposta por um único deputado, o inacreditável Ricardo Barros, que hoje, no Ministério da Saúde, dedica-se com afinco a destruir a saúde pública.
No cargo de relator do Orçamento de 2016, Barros promoveu um drástico corte na dotação da Justiça do Trabalho, da ordem de 50%. À época do relatório, justificou o corte sob o ridículo argumento de que a Justiça do Trabalho “não tem se mostrado cooperativa” (ou seja, não estaria julgando conforme os interesses que ele defende), acrescentando: “Nós vamos apresentar um corte mais significativo para que eles reflitam um pouco”.
A irresponsabilidade – para não falar em chantagem – de Ricardo Barros causou a penúria de diversos Tribunais Regionais, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Distrito Federal, até com ameaça de fechamento de suas atividades no fim do ano, postergando o acesso dos trabalhadores à Justiça, adiando milhares de audiências, a tramitação de milhões de processos, o pagamento de verbas alimentares a trabalhadores lesados (rescisões contratuais, diferenças salariais, horas extras) e causando grave insegurança jurídica para os próprios empresários que o tosco deputado-ministro imaginou defender.
Nesse contexto, a iniciativa de Ives – homem notoriamente ligado ao grupo ultraconservador católico Opus Dei – é gravíssima. Soa como dormir com o inimigo. Guardadas as devidas proporções, é como o presidente da República pedir a algum organismo internacional que promova um embargo econômico ao próprio país. Portanto, só pode ser entendida como uma insólita afronta à própria instituição que preside e a todos os trabalhadores do país.
* Raymundo Gomes é jornalista
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