Por Luis Felipe Miguel. // https://blogdaboitempo.com.br/
Assim como sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura de novo tipo – a palavra “ditadura” pode parecer excessiva, mas é exatamente disto que se trata.
Entrei na universidade no mesmo mês em que um civil voltou à presidência da República no Brasil. Depois de mais de vinte anos de regime autoritário, estávamos frente à possibilidade de reconstruir um governo baseado na soberania popular. Esta conjuntura impactou o ambiente em que eu estava entrando; em toda a minha formação acadêmica, da graduação ao doutorado, um tema central de debate, se não o tema central do debate, foi a transição à democracia. Pois na quadra atual da vida brasileira, uma nova agenda de pesquisa se abre: a transição à ditadura.
A palavra “ditadura” pode parecer excessiva, mas é exatamente disto que se trata. Sem discutir extensamente o conceito, é possível afirmar que “ditadura” remete a dois sentidos principais, aliás interligados. Por um lado, como oposto de democracia, indica um governo que não tem autorização popular. Por outro, em contraste com o império da lei, sinaliza um regime em que o poder não é limitado por direitos dos cidadãos e em que a igualdade jurídica é abertamente desrespeitada. O Brasil após o golpe de 2016 caminha nas duas direções.
A destituição da presidente Dilma Rousseff, sem respaldo na Constituição, representou um golpe de novo tipo, desferido no parlamento, com apoio fundamental do aparato repressivo do Estado, da mídia empresarial e do grande capital em geral. Foi um golpe sem tanques, sem tropas nas ruas, sem líderes fardados. Mas foi um golpe, ainda assim, uma vez que representou o processo pelo qual setores do aparelho de Estado trocaram os governantes por decisão unilateral, modificando as regras do jogo em benefício próprio.
Assim como sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura de novo tipo. Alguns talvez prefiram o termo “semidemocracia”, mas eu não acredito nesse eufemismo. O regime eleitoral já é uma “semidemocracia”, uma vez que a soberania popular é muito tênue, muito limitada. Estaríamos entrando, então, numa “semi-semidemocracia”. “Ditadura” é mais direto, corresponde ao núcleo essencial do sentido da palavra e tem a grande vantagem de sinalizar claramente a direção que tomamos: concentração do poder, diminuição da sensibilidade às demandas populares, retração de direitos e ampliação da coerção estatal.
Essa ditadura não será o regime de um ditador pessoal, até porque nenhum dos possíveis candidatos ao posto tem força suficiente para alcançá-lo. Não será uma ditadura das forças armadas, ainda que sua participação na repressão tenda a crescer. Provavelmente, muitos dos rituais do Estado de direito e da democracia eleitoral serão mantidos, mas cada vez mais esvaziados de sentido.
Ou seja: a transição que vivemos é de uma democracia insuficiente para uma ditadura velada. As debilidades do arranjo democrático anterior, que era demasiado vulnerável à influência desproporcional de grupos privilegiados, não serão desafiadas, muito pelo contrário. Ao mesmo tempo, alguns procedimentos até agora vigentes estão sendo cortados, seletivamente, de maneira que mesmo o arranjo formal da democracia liberal vai sendo desfigurado.
A Constituição não foi revogada, mas opera de maneira deturpada e irregular. O caso mais emblemático certamente é a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no dia 22 de setembro, concedendo ao juiz Sérgio Moro poderes de exceção. O tribunal alegou que as características excepcionais das questões nas quais está envolvido Moro tornam facultativo, para ele, o respeito às regras processuais vigentes. É a própria definição de exceção. Na prática, as garantias constitucionais ficaram suspensas para qualquer um que seja alvo do juiz curitibano. Em suma, lei e Constituição vigoram – ou não – dependendo das circunstâncias e da interpretação que alguns, dotados desse poder, delas fazem.
Duas semanas depois, no dia 5 de outubro, o Supremo Tribunal Federal decidiu permitir o encarceramento de réus sem que os recursos tenham sido esgotados, anulando o princípio constitucional da presunção de inocência. Vendida como medida para impedir a impunidade dos poderosos, amplia o poder discricionário de um Judiciário que é notoriamente enviesado em suas decisões. Apenas como ilustração, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro afirmou em nota que mais de 40% de seus recursos ao STJ têm efeito positivo. É, portanto, um contingente muito expressivo de pessoas que começariam a cumprir penas depois consideradas injustas.
No mesmo dia, o STF ratificou e normatizou decisão anterior, permitindo que a polícia invada domicílios sem mandado judicial. Isso se vincula ao aumento generalizado da truculência policial, contra manifestantes, contra estudantes, contra trabalhadores. É algo que vem desde o final do governo Dilma, estimulado pelo clima político de avanço da reação – e também, é necessário ser dito, pela legislação que o próprio governo Dilma aprovou.
Cumpre assinalar também a volta da tortura a prisioneiros, com motivação política. O encarceramento por tempo indefinido, com o objetivo expresso de “quebrar a resistência” de suspeitos (pois nem réus são) e levá-los à delação, tornou-se rotina no Brasil e é uma forma de abuso de poder, de constrangimento ilegal e, enfim, de tortura. (E antes de que alguém lembre que a tortura a presos comuns nunca se extinguiu no Brasil, cabe ponderar que a extensão da prática em nada melhora a situação dos presos comuns; ao contrário, pode piorá-la.)
Fica claro que o poder judiciário não está cumprindo o papel de garantidor das regras, o que já fora demonstrado durante o processo de impeachment ilegal. Como sabemos, parte do judiciário foi partícipe ativa do golpe, parte foi cúmplice silenciosa, mas não se encontra ninguém, nas cortes superiores, que tenha se levantado em defesa da democracia brasileira.
Continuamos a ter eleições. No entanto, as condições da disputa, que sempre foram desiguais, dado o controle dos recursos materiais e dos meios de comunicação de massa, estão ainda mais assimétricas, com a campanha incessante de criminalização do Partido dos Trabalhadores e de todo o lado esquerdo do espectro político. Para as eleições presidenciais de 2018, a grande questão que se coloca à esquerda é se o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva terá condições legais de concorrer. Em relação a seus potenciais concorrentes à direita, todos atingidos por denúncias de corrupção mais graves e com evidências mais sólidas do que aquelas apontadas contra Lula, tal preocupação não existe. E a delegação de poder por via eleitoral foi desmoralizada com a destituição da presidente legítima. Caminhamos para uma situação de disputa eleitoral quase ritualística, com cerceamento das opções colocadas à disposição do eleitorado e tutela dos eleitos.
Essa criminalização do PT e da esquerda em geral é alimentada pelos meios de comunicação empresariais e pelos poderes de Estado, com destaque agora para a campanha do governo Temer sobre “tirar o país do vermelho”. A agressividade crescente dos militantes da direita, produzida de forma deliberada, tenta emparedar as posições à esquerda, progressistas e democráticas, ao mesmo tempo em que a cassação de registros partidários torna-se uma possibilidade mais palpável.
O cerco ao ex-presidente Lula, em que uma parte importante do aparelho repressivo do Estado vem sendo mobilizada com o intuito de conseguir provas de uma culpa determinada de antemão, é outro sintoma claro de que deslizamos para um estado de exceção. Quando vigora o império da lei, a investigação sucede à descoberta de evidências que sustentem suspeitas. Se, ao contrário, decide-se promover uma devassa na vida de alguém na esperança de encontrar algo incriminatório, estando depois os juízes “condenados a condenar”, como disse o próprio Lula, não temos mais a igualdade legal. O sistema judiciário funciona na sua aparência, mas perdemos a possibilidade de evocar os valores que deveriam presidi-lo a fim de garantir a vigência das liberdades.
Em suma, a ditadura se expressa no alinhamento dos três poderes em torno de um projeto claro de retração de direitos individuais e sociais, a ser implantado sem que se busque sequer a anuência formal da maioria da população, por meio das eleições.
O sintoma mais claro da ditadura que se implanta é a paulatina redução da possibilidade do dissenso. Ela vem aos poucos, mas continuamente. Dentro do Estado, do Itamaraty ao IPEA, não há praticamente espaço em que a caça às bruxas não seja pelo menos insinuada. Vista como foco potencial de divergências, a pesquisa universitária está sendo estrangulada. Decisões judiciais coibindo críticas – em primeiro lugar ao próprio Judiciário e seus agentes, mas não só – tornaram-se cada vez mais costumeiras. Juízes e procuradores, embalados pela onda da campanha mistificadora do Escola Sem Partido, intimidam professores e estudantes que queiram debater em escolas e universidades. O MEC se junta à campanha, exigindo, como fez na semana passada, que estudantes mobilizados sejam denunciados pelas administrações universitárias. É todo um processo de normalização do silenciamento da divergência que está em curso.
O avanço da censura está ligado à imposição da narrativa única pelos oligopólios da comunicação, parceiros de primeira hora da ditadura em implantação. Isso se dá em várias frentes. Há o estrangulamento econômico dos meios de comunicação independentes, uma política buscada deliberadamente pelo governo Temer – que, ao mesmo tempo, ampliou de forma significativa a remuneração oferecida aos grupos da mídia empresarial.
Enquanto isso, medidas que impactam seriamente a vida nacional, mudando a lei e a Constituição, são levadas adiante sem qualquer tipo de debate – seja com a sociedade, seja dentro do próprio Congresso Nacional. É um governo que impõe sua vontade, escorado na cumplicidade dos meios de comunicação e no apoio fisiológico da maior parte dos parlamentares. Com isso, não há sequer uma pantomima para fingir que ocorre discussão no Congresso; os projetos tramitam com velocidade recorde, atropelando todos os prazos. Por vezes, praticamente só a oposição discursa – os governistas querem simplesmente cumprir o ritual, o mais rápido que possam. Não há espaço para negociação, nem necessidade de justificação pública aprofundada.
São muitos os exemplos, mas cito apenas três. A reforma do ensino médio, apresentada sem discussão com pedagogos, professores ou estudantes, por meio de medida provisória. Sem discutir os méritos da reforma ou mesmo o fato de que ela foi justificada com a apresentação de dados falsificados do ENEM, trata-se de uma medida com profundas e complexas implicações, que não poderia prescindir de amplo debate.
O segundo exemplo é a entrega do pré-sal a empresas estrangeiras, rompendo o consenso sobre a exploração do petróleo brasileiro, construído ao longo de décadas. Por fim, a proposta de emenda constitucional nº 241, que congela o investimento social por vinte anos. Num caso como no outro, são decisões de enorme gravidade, na contramão da vontade popular sistematicamente expressa nas eleições – jamais, na história brasileira, o entreguismo ou a ideia de redução do investimento social foram capazes de ganhar eleições competitivas. Quando chegaram ao governo, foi em períodos de exceção ou por meio de manipulação e ocultamento na campanha eleitoral.
Seja no caso da entrega do pré-sal, seja no caso da PEC de estrangulamento do investimento público, o debate foi próximo do zero. Com os diferentes grupos da sociedade civil, não se travou nenhum tipo de discussão. Com a opinião pública, o debate foi trocado por uma ofensiva de desinformação, que culminou na equívoca campanha publicitária governamental já citada, a do “tirar o país do vermelho”. No Congresso, a base governista sequer tentou fingir que não estava apenas cumprindo o ritual da aprovação parlamentar. Não houve qualquer engajamento em discussões com a oposição.
O fim do monopólio sobre a exploração do pré-sal e a PEC 241 indicam, não por acaso, o programa da ditadura em implantação. A conciliação de classes que os governos do PT tentavam implementar foi rompida unilateralmente pela burguesia. Afinal, são necessários dois para conciliar – adaptando o dito popular, quando um não quer, dois não conciliam. Trata-se, então, de reverter quaisquer vantagens que as classes trabalhadoras e outros grupos subalternos tenham obtido.
Um elemento importante é o caráter misógino do retrocesso. O golpe retirou da presidência uma mulher, e o fato de que era uma mulher não foi irrelevante. Nós vimos as faixas ofensivas à presidente Dilma Rousseff nas manifestações pelo impeachment. Nós vimos os adesivos pornográficos nos automóveis. Nós vimos as reportagens na imprensa que serviu ao golpe, requentando estereótipos sexistas contra a presidente da República. Nós testemunhamos os integrantes da elite política com suas falas desdenhosas, em que o preconceito de gênero ocupava um lugar que não era desprezível.
Não se trata apenas do processo de construção da derrubada da presidente eleita. O governo atual está comprometido com o retrocesso na condição feminina, com o reforço de sua posição subordinada e do fechamento da esfera pública a elas. Não se trata apenas do retrocesso simbolizado no ministério formado exclusivamente por homens brancos, embora ele seja significativo. Como também é significativo o retorno do chamado “primeiro-damismo”, em que o papel concedido à mulher na política é o da bem-comportada auxiliar de seu marido, sorrindo nos jantares e patrocinando programas assistenciais. Além disso, há o recrudescimento do discurso familista, que é aquele de exaltação da família tradicional, marcada exatamente pela submissão da mulher. Esse discurso não ressurge por acaso ou apenas por algum tipo de reacionarismo atávico dos novos donos do poder, mas vinculado à política de retração do investimento social e de destruição do nosso incipiente sistema de bem-estar social. Com isso, a responsabilidade pelo cuidado com os mais vulneráveis recai integralmente sobre as famílias, isto é, sobre as mulheres, como o celebrado discurso de estreia de Marcela Temer indicou com clareza exemplar.
A implantação desse programa exige o silenciamento das vozes contrárias a ele. Trata-se de um projeto extraordinariamente lesivo para a grande maioria do povo brasileiro. Graças à baixíssima educação política da maior parte da população e à campanha incessante da mídia, para muita gente a ficha não caiu. Mas os efeitos da redução dos salários, do aumento do desemprego, do subfinanciamento do Estado e do desmonte dos serviços públicos logo se farão sentir de forma plena. Para conter a inevitável reação popular, será necessária uma escalada repressiva e restrições cada vez maiores aos direitos.
Essa é a agenda de pesquisa que se abre no momento. Uma dimensão é a retração dos direitos e o desfiguramento das instituições democráticas. Outra é resistência popular que certamente se construirá. Torço para que esta segunda dimensão nos dê muito material para pesquisar, o mais rapidamente possível.
(Este artigo é baseado na intervenção que fiz na mesa-redonda “Conjuntura política”, na última terça-feira, durante o 40º Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais – Anpocs.).
O dossiê especial de intervenção “Não à PEC 241”, do Blog da Boitemporeúne artigos, entrevistas, análises e vídeos que destrincham de perspectivas diversas o contexto, o processo, a agenda e os efeitos da PEC 241. Lá você encontrará reflexões de Laura Carvalho, Ruy Braga, Flávia Biroli, Guilherme Boulos, Luis Felipe Miguel, Vladimir Safatle, Silvio Luiz de Almeida, João Sicsú, Adalberto Moreira Cardoso, Rosane Borges, Mauro Iasi, Giovanni Alves, Jorge Luiz Souto Maior, Maurílio Lima Botelho, Antonio Martins, Renato Janine Ribeiro, Jessé Souza, entre outros, além de uma agenda das manifestações de rua contra a Proposta de Emenda à Constituição 241.
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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). É um dos autores do livro de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.
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