por Eduardo Nunomura, Jotabê Medeiros e Pedro Alexandre Sanches
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A Corte acolheu um recurso do Ecad, que representa sobretudo os criadores mais bem-sucedidos e suas produtoras, editoras e gravadoras
Após mais de uma década de quedas nas vendas, a indústria da música começou a experimentar uma recuperação nos últimos três anos, graças a um novo formato: o streaming, em que o ouvinte escuta música sem precisar carregá-la no computador.
Ao oferecerem serviços de assinaturas, empresas como Spotify, Apple Music, Deezer, Google Play, Pandora e Napster recuperaram parcialmente um mercado que rumava para a extinção, corroído pela pirataria.
Novos formatos ressuscitam velhos debates. Os criadores de música estão sendo remunerados adequadamente? Os repasses de direitos autorais são satisfatórios? O público consumidor pagará a conta ao final da batalha entre gigantes corporativos? Na quinta-feira 9, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu tintas visíveis à controvérsia que se arrasta longe da atenção do consumidor.
O STJ acolheu recurso do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), que representa sobretudo os criadores mais bem-sucedidos e suas produtoras, editoras e gravadoras, contra a emissora de rádio Oi FM, entendendo que o streaming de música oferecido pela rádio era passível de pagar direitos autorais.
Atendendo ao que defendia o Ecad, os juízes do STJ decidiram que a música que ouvimos em casa, no computador ou no fone de ouvidos do celular representa execução pública, não privada. Se tal cobrança vier a ser repassada ao consumidor, guardadas as épocas, é como se ele pagasse uma taxa a cada vez que reouvisse uma música num LP, fita cassete ou CD. A antiga venda dos suportes físicos rendia lucros à velha indústria e amortizava a cobrança na ponta, mas essa venda não existe mais.
Armado com a decisão do STJ, o Ecad prepara-se para uma ofensiva de cobrança que pode atingir inicialmente cerca de 500 emissoras de rádio, além de serviços de streaming em vídeo como YouTube e Vevo e de plataformas de streaming de áudio como Deezer, Napster e Pandora.
A decisão parece também conter um substrato de marco regulatório, o que poderá futuramente impactar outros tipos de streaming, como Netflix e Amazon.
O olho gordo do Ecad não é à toa. A Warner Music anunciou no dia 7 que entrou para o seleto clube de bilionárias do streaming. Em 2016, faturou 1 bilhão de dólares com a execução musical em serviços como Spotify e Apple Music, acima das vendas de 700 milhões de dólares em CDs físicos e 437 milhões de dólares em downloads. A Universal Music foi a primeira a ingressar no grupo, seguida da Sony Music. A gigante japonesa ganha 167 mil dólares a cada hora em streaming.
No caso do Brasil, o impacto da medida é incerto. O Ecad diz considerar insondáveis as consequências da medida. Todo o universo da radiodifusão pode ser afetado, mas as webrádios autorais e sem finalidade lucrativa não terão de pagar nada, segundo o escritório. As maiores pagarão, porém, dificilmente serão abordadas, de acordo com a superintendente do Ecad, Gloria Braga: “O foco é nas grandes plataformas”.
Ela diz que a relação será mais ou menos como acontece hoje nas emissoras comerciais: uma rádio pequena do interior paga cerca de 200 reais de direitos autorais, algo insignificante em comparação com uma grande da capital, que paga cerca de 60 mil reais. “Essa decisão joga uma pá de cal sobre a história. O voto é muito didático em relação a isso”, afirma.
A decisão do STJ (por 8 votos a 1) analisava o caso do simulcasting da Oi FM. Trata-se da transmissão simultânea da programação pelo dial e via internet. O relator da ação, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, compreendeu que, enquanto o simulcasting é a retransmissão simultânea do conteúdo em outro meio, o webcasting e as playlists de música oferecem ao usuário a possibilidade de interferir na ordem da transmissão.
“O acesso à plataforma musical é franqueado a qualquer pessoa, a toda a coletividade virtual, que adentrará exatamente no mesmo local e terá acesso ao mesmo acervo musical, e esse fato, por si só, é que configura a execução como pública”, afirmou. No entendimento do ministro, as duas formas de streaming contêm um fato novo gerador de direitos autorais devidos ao Ecad.
Boa parte das plataformas de streaming já paga direitos autorais, os chamados mechanical rights, recolhidos para as editoras. Os serviços consideram que possuem tecnologia para pagar diretamente às editoras que detêm os direitos dos autores, e veem a chegada do Ecad como a de um intermediário desnecessário.
“A decisão em favor da cobrança pelo Ecad é uma interpretação de uma lei que não foi pensada para o ambiente internet”, diz Henrique Fares Leite, do Deezer. “Precisamos de uma nova legislação que dê estabilidade jurídica, trazendo novos conceitos do consumo de música pela internet, como blanket license, performance (não pública) ou simplesmente repensando os direitos que compõem a música”, afirma.
“O Ecad é um intermediário completamente desnecessário e anacrônico”, opina o sociólogo e ativista digital Sergio Amadeu. “A cobrança obrigatória de copyright desconsidera a existência de artistas que liberam suas obras com licenças flexíveis.
O grupo Procure Saber afirma que o resultado de acordos secretos não chega aos criadores (Victor Moriyama/FolhaPress, Silvia Zamboni/ Valor, Leo Pinheiro/ Valor e Sérgio Lima/STJ)
Arrebenta a ideia de compartilhamento de músicas e bens culturais sem objetivos de lucro. Nem a velha indústria cultural nem os atuais gigantes das redes digitais devem ter maior benefício que os criadores e produtores de bens culturais.”
Para o artista e professor de música da Unicamp Cacá Machado, o reconhecimento do streaming como execução pública é uma conquista. “Depois de muitas discussões, concordo com esse entendimento. Porém, o assunto é complexo. A princípio, não teria por que haver repasse para os usuários, mas isso facilmente pode virar um argumento das empresas que exploram o streaming.
Na prática, como ainda não conseguimos atualizar nossa Lei de Direitos Autorais, essa grana provavelmente não vai para os artistas imediatamente. É por isso que lutamos pela transparência do complexo Ecad-arrecadadoras”, afirma.
O argumento das plataformas de streaming de que o Ecad é mais um atravessador soa “perigoso” a Machado. “A ideia que está por trás, ao meu ver, é a de que a gestão individual entre artista e empresa seria mais eficaz. Penso que uma boa gestão coletiva é sempre melhor, mas desde que ela seja realmente transparente.”
O Ecad estima que um terço das emissoras de rádio já pagam o simulcasting, num total de cerca de 1,6 mil. Assim, projeta cobrança de mais de 2 mil emissoras de rádio pelo País. Pelo simulcasting, as rádios são cobradas em 10% do total do que pagam pela execução pública no dial. “Procuraremos todos e perguntaremos: vocês querem persistir nessa situação?”, provoca Gloria Braga.
Por três anos, o YouTube, que pertence ao Google, questionava judicialmente a legitimidade do Ecad para cobrar direitos pelos acessos aos seus vídeos musicais. Para o Ecad, a decisão do STJ encerra essa questão.
As plataformas de streaming serão também cobradas, com exceção das que já têm acordos com o escritório, casos de Spotify e Apple. Procurados por CartaCapital, Apple, Spotify e Google são uníssonos num padrão de transparência que não fica a dever aos todo-poderosos de temporadas passadas: não se pronunciarão publicamente sobre o litígio.
Integrado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Milton Nascimento, entre outros, o grupo Procure Saber fechou questão com o Ecad neste caso, à parte os embates recentes travados contra o escritório.
“Os serviços de streaming negociam com as gravadoras os chamados Global Deals, que são contratos confidenciais assinados no exterior, sem qualquer participação dos principais interessados, e aos quais os criadores musicais não têm acesso”, afirma a porta-voz do grupo, a empresária musical Paula Lavigne. “O vazamento do contrato da Spotify com a Sony, denominado Sonyleaks, revelou ao mundo o pagamento de adiantamentos fabulosos, que não chegam às mãos dos criadores.”
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