domingo, 19 de março de 2017

A terra treme no Vaticano


por The Observer
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Neste retiro de Quaresma, a agitação conservadora está no ar

Por Catherine Pepinster

Quando Francisco foi eleito, quatro anos atrás, em 13 de março de 2013, foi acompanhado, como todos os papas antes dele, da Capela Sistina à Sala das Lágrimas. É o lugar onde um novo pontífice faz uma pausa momentânea antes de sair ao balcão sobre a Praça de São Pedro para se apresentar ao mundo como novo líder da Igreja Católica.

Francisco, conhecido até então como Jorge Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, ao aparecer pela primeira vez naquela noite, parecia incrivelmente animado. Disse, em tom de brincadeira, que os cardeais tinham ido aos confins da Terra para escolher o próximo papa. Se ele tivesse alguma pista de como seriam esses últimos quatro anos, certamente teria chorado muito naquela sala.

Embora extremamente popular em todo o mundo, entre católicos e não católicos, Francisco enfrentou firme oposição no Vaticano para transportar a Igreja Católica ao século XXI, lutou para reformar seu governo, tentou convencer os cardeais a rever seu pensamento sobre os divorciados e os recasados e foi abertamente confrontado por prelados rebeldes.

A última semana marcou o início da Quaresma, um dos períodos mais importantes do calendário católico, momento em que os fiéis fazem jejum, dão esmolas e refletem sobre os pecados da humanidade ao se aproximar a comemoração da crucificação e da Páscoa.

É geralmente marcado por silêncio e oração, e no domingo o papa, ao lado de integrantes da Cúria Romana, deixou Roma para iniciar um retiro de cinco dias. Ficou para trás um Vaticano envolvido em tensão, tumulto e rebelião. Há até rumores de que um número crescente de autoridades defende sua abdicação.

Na Quarta-Feira de Cinzas, primeiro dia da Quaresma, veio um grande golpe, na verdade causado pelos inimigos do papa: Marie Collins, a última sobrevivente em sua comissão sobre abuso de crianças na Igreja, deixou o cargo, frustrada pelo que chamou de “vergonhosa falta de cooperação” das autoridades mais envolvidas nos casos.

Ela salientou a intransigência da Cúria Romana, o órgão governante do Vaticano, exatamente o que o papa Francisco quer reformar. Com Collins fora da Comissão para Proteção dos Menores, montada pelo papa para investigar o escândalo mundial de abusos sexuais cometidos por padres e irmãos religiosos, e o outro representante das vítimas, o britânico Peter Saunders, em uma licença de saúde indefinida, a entidade perdeu certa integridade.

Ao sair, Collins queixou-se de que a equipe foi despida de recursos, o progresso era lento e havia “resistência cultural” a seu trabalho.

A recomendação de que se criasse um tribunal para lidar com os bispos negligentes em relação aos abusos foi impedida por autoridades do Vaticano, apesar de o próprio papa aprová-la. “Há uma área da Cúria que não entrou no século XXI”, disse Collins. “É muito resistente a trabalhar com a comissão. Há quem ainda queira encobrir os fatos.”

A oposição enfrentada pelo papa Francisco coloca a Igreja em território não mapeado. Massimo Faggioli, importante teólogo e observador do Vaticano, disse: “A cúpula do Vaticano está por trás disso. É uma oposição cultural e política visível algumas semanas após a eleição de Francisco. Eles são contra mudanças no estilo e na posição da Igreja de uma religião ocidental para global”.

Nos primeiros dias de Francisco como papa, os comentários no Vaticano se concentravam nas reformas financeiras pretendidas. O papa Bento havia renunciado depois de uma série de revelações, conhecidas como VatiLeaks, que expuseram desvios de dinheiro no Vaticano, e Francisco pretendia acabar com eles.

Mas a oposição mais veemente se desenvolveu em relação a seu desejo de debater o casamento e o divórcio, os gays e as famílias.

Depois de dois sínodos sobre esses temas, em 2014 e 2015, o papa produziu o documento Amoris Laetitia, em que na verdade disse aos bispos da Igreja que tomassem decisões locais sobre se os divorciados e recasados poderiam receber a comunhão.A oposição ao papa coloca a Igreja em território não mapeado. A Cúria rejeita o século XXI (Vincenzo Pinto / AFP)

O ensinamento religioso tradicional prega que um católico que volte a se casar depois do divórcio pode receber a comunhão somente se a Igreja tiver anulado seu primeiro casamento. Alguns bispos viram a Amoris Laetitia como uma instrução para atender de modo compassivo a quem não anulou o casamento. Isso deixou os conservadores indignados.

Uma carta enviada por quatro cardeais avessos à mudança foi divulgada. A comunicação assumiu a forma conhecida como dúbia, que expressa dúvidas, exige sim ou não como respostas e de fato desafia a autoridade do papa ao lhe pedir para esclarecer pontos do ensinamento da Igreja sobre essa questão e a vida cristã.

Os quatro acusadores incluíam três cardeais aposentados, mais o cardeal Raymond Burke, um advogado canônico americano ultraconservador que chegou a ameaçar com a emissão de uma correção ao papa sobre a Amoris Laetitia. Burke é um espinho no flanco do papa Francisco há algum tempo.

Ele recebeu uma poderosa função judicial em Roma do papa Bento XVI, da qual Francisco o demitiu. No ano passado, Burke e outros conservadores foram expulsos do departamento do Vaticano que supervisiona a devoção.

No início deste ano, durante uma disputa entre o papa e os antigos Cavaleiros de Malta que levou à saída do líder britânico da ordem, Matthew Festing, o cardeal Burke foi posto de lado em seu papel de enviado à ordem. Em poucos dias apareceram cartazes contra Francisco nas ruas de Roma, assim como “notícias falsas” na forma de jornais satíricos do Vaticano a zombar dele.

As disputas não são só sobre choques de personalidades, ou mesmo sobre divórcio e comunhão. A coisa vai muito mais fundo. Trata-se do futuro da Igreja. Se papas anteriores tivessem implementado os desejos de modernização do Segundo Concílio Vaticano, realizado 50 anos atrás, a dominação da Igreja mais ampla pelo Vaticano teria diminuído.

Agora Francisco tenta implantar ao menos algumas mudanças, ao permitir que padres e bispos tomem decisões sobre dar a comunhão aos divorciados. Para os tradicionalistas, é o início do fim.

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