sexta-feira, 10 de março de 2017

Queda de Park Geun-hye, Ocaso de Washington


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Em primeiro lugar, vamos ao ponto: Park Geun-hye, a deposta primeira presidenta da Coreia do Sul, é o exato oposto de Dilma Rousseff.

Ela é filha e sucessora política de Park Chung-hee, ditador coreano que governou a Coreia do Sul com mão de ferro por quase duas décadas (1961-1979). Ele foi o responsável pela implantação do modelo econômico e político coreano baseado em (1) absoluto alinhamento aos interesses dos EUA, (2) beligerância constante contra a Coreia do Norte e o "comunismo", (3) criação, mediante incentivos fiscais, de grandes grupos econômicos (chaebols), dedicados à exportação, (4) superexploração da mão de obra e dura repressão contra sindicatos, (5) geração de um sistema político e partidário totalmente dominado pelo poder econômico e caracterizado por corrupção ampla e sistêmica e (6) domínio absoluto da mídia e da informação.

Durante a gestão de Park, dezenas de milhares de pessoas foram torturadas e presas pelo simples fatos de discordar do regime. De fato, discordar ou criticar o regime era proibido por lei. Estudantes e trabalhadores que ousavam protestar eram imediatamente presos, torturados e sentenciados. Mesmo após a morte de Park, assassinado por seu chefe o serviço de inteligência, em 1979, a Coreia do Sul continuou sob forte ditadura militar, que elegia seus presidentes em colégios eleitorais rigidamente controlados, tal como aconteceu no Brasil, e com o apoio total de Washington.

A primeira eleição presidencial pelo voto popular só ocorreu em 1987, após protestos virulentos contra o assassinato de vários estudantes e líderes políticos. Mesmo assim, seu resultado sofreu influência externas. Duas semanas antes das eleições, com os candidatos da oposição na liderança das pesquisas, ocorreu o estranho incidente da derrubada voo 858 da Korean Air, abatido quando invadiu o espaço aéreo da União Soviética. A comoção causada pelo incidente e o rumores propagados de envolvimento da Coreia do Norte levaram à vitória Roh Tae-woo, candidato do antigo regime.

Desde então, a Coreia do Sul vive uma situação híbrida, que combina democracia formal com um sistema político fortemente dominado pelos chaebols e pelos conservadores, saudosos do regime de Park.

Somente há cerca de quatro anos (2013), a Suprema Corte da Coreia do Sul reconheceu os crimes da ditadura de Park e sucessores. A sentença da corte constitucional foi motivada pela petição de alguns sobreviventes da tortura. Uma delas, Oh Jong-sang, foi barbaramente torturado e encarcerado, incomunicável, durante três anos. Seu crime? Criticou o regime de Park numa conversa em um ônibus.

A presidenta deposta foi eleita pelos saudosos do regime de Park, com o apoio decidido de Washington e dos chaebols. Seu partido, o Liberty Korea Party, alinhado aos interesses de Washington e marcado pela ideologia da Guerra Fria, quer um enfrentamento com a Coreia do Norte e se opõe à crescente influência da China no Leste da Ásia. Visceralmente corrupta, Park Geun-hye associou-se a sua amiga de infância, Choi Soon-sil, para pedir dezenas de milhões de dólares para grupos como a Samsung, que pagaram de bom grado, sem pestanejar. Não se trata de doações para campanhas eleitorais, que na Coreia do Sul, como nos EUA, são inteiramente liberadas e escancaradas. Trata-se de propinas destinadas ao enriquecimento pessoal.

Até esse episodio, essas relações espúrias entre os grandes grupos econômicos e os políticos conservadores coreanos eram vastamente toleradas.

Mas há dois fatores que mudaram o quadro.

O primeiro foi a recessão. Embora a economia sul-coreana tenha reagido bem à crise em 2010 e 2011, desde 2012 que as exportações sul-coreanas, estão patinando ou caindo. Muito dependente das exportações de navios e de produtos derivados de petróleo (a Coreia do Sul não tem petróleo, mas tem grande capacidade de refino), sua economia vem sendo prejudicada pela estagnação do comércio mundial e pela queda dos preços da gasolina e do óleo diesel. A redução do crescimento da China é também outro fator quer vem desacelerando a economia sul-coreana.

Muitos economistas coreanos agora questionam se os chaebols serão capazes de mudar a atual configuração da economia, de modo a instituir um novo ciclo de crescimento. Outro questionamento tange à imposição, por parte de Washington, de um enfrentamento constante com a Coreia do Norte, que é visto, com razão, como fator de instabilidade política e limitador de crescimento.

O outro fator diz respeito justamente a essa relação com a Coreia do Norte. As novas gerações sul-coreanas já não concordam mais com a ideologia da Guerra Fria que anima muitos políticos conservadores apoiados por Washington, como a presidenta deposta. Eles desejam um entendimento com Pyonyang e sonham com a reunificação do país, que está oficialmente em guerra desde 1950.

Assim, essas novas gerações não aparecem mais dispostas a tolerar passivamente as imposições geopolíticas de Washington e os conluios pouco republicanos entre os chaebols e os políticos conservadores. Querem uma renovação do sistema político e uma maior independência da Coreia do Sul em sua política externa.

O fato concreto é que a deposição da presidenta sul-coreana representa uma derrota para Washington e uma vitória para a Beijing, que quer a paz na península coreana e deseja ter mais influência política no Leste da Ásia.

Com efeito, a China vem erodindo a antiga influência norte-americana (e japonesa) em todo o leste asiático. As Filipinas, por exemplo, outra fortaleza norte-americana na região, assim como a Coreia do Sul , agora faz movimentos para se aproximar cada vez mais da China. Com isso, a China poderia controlar o chamado Mar do Sul da China (conhecido como Mar do Sul pelos chineses), por onde passam cerca de 50% do comércio marítimo mundial e cujo subsolo abriga reservas de petróleo estimadas, até agora, em mais de 8 bilhões de barris.

A reação principal às mudanças geoeconômicas e geopolíticas provocadas pela ascensão estrondosa da China foi, na administração Obama, a Parceria Transpacífica (TPP), que ambicionava reforçar os laços econômicos e políticos de Washington com o Leste e o Sul da Ásia e conter o avanço da China.

Entretanto, com o abandono do TPP por parte de Trump, a contraofensiva estratégica norte-americana concentra-se, agora, na área militar, o que é algo muito perigoso.

Os EUA querem instalar na Coreia do Sul, a toque de caixa, o moderno sistema antimíssil Terminal High Altitude Area Defense (THAAD), que detecta mísseis em altitude elevada e os destrói com antimísseis que voam a mais de 8 vezes a velocidade do som. A China alega, com razão, que esse sistema não se destina, na realidade, a impedir lançamentos de mísseis na Coreia do Norte, cujos mísseis são primitivos, mas sim a abater quaisquer mísseis que sejam lançados a partir do território chinês.

O presidente interino, Hwang Kyo-ahn, instado por Washington, declarou estado de alerta máximo, e se propõe a instalar o sistema antes do prazo de 60 dias, determinado pela constituição sul-coreana para novas eleições, para desgosto da oposição sul-coreana e da China.

Tudo indica que a queda de Park Geun-hye será apenas o primeiro capítulo de uma longa disputa entre China e EUA na península coreana e no Leste da Ásia.

Por enquanto, a China está ganhando, mas o relativo ocaso de Washington na região não ocorrerá sem reação. Os EUA mantêm a península coreana na Guerra Fria e em guerra oficial desde 1950. Não parecem dispostos a ceder na manutenção do isolamento da Coreia do Norte e na contenção da influência da China, mesmo que a população sul-coreana pense de outra maneira e assim o decida em novas eleições.

Os EUA sempre foram um perigo para democracia no mundo, como prova a história da América Latina. E Trump, que vai militarizar ainda mais a diplomacia dos EUA, com sua visão xenófoba e primitiva do planeta, é uma bomba geopolítica prestes a explodir. Seu entendimento com Putin provou-se frágil e parcial, como se revela pela recente escalada do conflito ucraniano.

Sem controle, não haverá sistema antimíssil que resolva. Um possível entendimento na península coreana poderá ser a primeira vítima da contraofensiva estratégica de Trump. Melhor dizendo, a segunda. A primeira foi a política externa do golpe, que apostou nos EUA contra os BRICS e a integração regional. Os coreanos, ao menos, são inteligentes.
Marcelo Zero

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