sexta-feira, 19 de maio de 2017

Fala de Ives Filho sobre automutilação de trabalhadores é grave e precisa ser denunciada

        Foto: Reprodução 

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O Ministro Presidente do TST, Ives Gandra Martins Filho, disse em audiência conjunta das comissões de assuntos sociais e econômicos do Senado, esta semana, que o trabalhador, se receber indenização significativa por acidente ocorrido no ambiente de trabalho, poderá “provocar um acidente” ou “deixar que aconteça” “porque para ele vai ser melhor”. Após comparar os trabalhadores brasileiros com os soldados que para “não enfrentar a batalha arranjavam um ferimento”, afirma que altas indenizações podem estimular a automutilação dos trabalhadores.

A manifestação do Ministro Presidente do Tribunal Superior do Trabalho é grave e sobre ela precisamos refletir. Ives comanda hoje uma instituição que está na berlinda, junto com a própria Justiça do Trabalho, colocou em curso uma proposta de alteração legislativa (PLC38/2017, atualmente em tramitação no Senado) que, unida a outras propostas que também tramitam no Congresso Nacional (PEC 300 e PL 6442/2016), sem dúvida poderá provocar, em curto espaço de tempo, a extinção do Poder Judiciário Trabalhista.

É certo que os eventos das últimas horas determinaram a suspensão do andamento dessas reformas, mas isso não significa que o assunto deva ser esquecido. Aliás, não podemos sequer estar tranquilos quanto ao futuro imediato dessas investidas do capital, pois tudo depende de como as forças políticas reagirão às denúncias de corrupção por parte do Presidente da República.

Em todo caso, no que diz com a fala do Ministro Ives, já impressiona que em lugar de defender a instituição que representa, ele venha se manifestando reiteradamente no sentido de que a Justiça do Trabalho comete “excessos protecionistas”, precisa de reforma e de simplificação das normas processuais. Afirmar que trabalhadores são responsáveis pelos acidentes que sofrem e que a redução do valor das indenizações é necessária para desestimular a autoflagelação é ainda mais impressionante.

A afirmação de que os trabalhadores brasileiros se autoflagelam apenas para receber indenizações nos leva a duas conclusões possíveis. Ou essa afirmação é mentirosa, e apenas distorce a real intenção por trás de todo o movimento de desmanche trabalhista, ou é verdadeira e revela um flagelo social.

No primeiro caso, a afirmação é de uma perversidade atroz por atribuir ao trabalhador a razão da perda de sua saúde (física e mental) e, ao mesmo tempo, da necessidade de redução da reparação jurídica por essa perda. Ou seja, o trabalhador torna-se seu próprio algoz e o fato de que os acidentes existem, e crescem assustadoramente no Brasil, especialmente nas atividades terceirizadas, passa a constituir decorrência de sua própria ação. Com isso, ao mesmo tempo tornamos o trabalhador responsável pela própria mutilação e redimimos o empregador que não fiscaliza, não atualiza suas máquinas, impõe jornadas estendidas, nega direito aos intervalos, etc.

No segundo caso, é ainda pior. Se vivemos em um país no qual um único trabalhador tenha algum dia pensado que vale a pena perder parte do corpo para receber um valor de indenização, falhamos como sociedade. Precisamos repensar o sistema, alterar radicalmente as bases do convívio social. Ou, no mínimo, aumentar significativamente a remuneração paga pelo trabalho assalariado e reduzir em muito o tempo de trabalho, para permitir que essa pessoa conviva mais com sua família, possa estudar, ler e pensar sobre o que realmente importa durante seu tempo de vida na Terra.

De acordo com números oficiais, divulgados no último dia 28 de abril (Dia Internacional das Vítimas de Acidentes de Trabalho) foram registrados mais de 700 mil acidentes de trabalho no último ano em nosso país. O Brasil está em quarto lugar no mundo nesse índice, segundo a OIT, perdendo apenas para a China, a Índia e a Indonésia.

O aumento significativo do número de acidentes e doenças profissionais também tem relação com a terceirização, incentivada pelo PLC 38. Um dossiê sobre a terceirização, realizado em 2011 pelo DIEESE e pela CUT, comprova o potencial lesivo da terceirização, apresentando dados que impressionam. Em 2005, a cada dez acidentes de trabalho, oito envolveram trabalhadores terceirizados. Entre 2006 e 2008, morreram 239 trabalhadores por acidente de trabalho, dentre os quais 193, ou 80,7% eram trabalhadores terceirizados. A taxa de mortalidade média entre os trabalhadores diretos no mesmo período foi de 15,06 enquanto que entre trabalhadores terceirizados foi de 55, 53. No setor elétrico, o risco de um trabalhador terceirizado morrer por acidente de trabalho é “5,66 vezes maior que nos demais segmentos produtivos”. Em 2009 e 2010, “o número de trabalhadores acidentados com afastamento das empresas contratadas é quase o dobro dos trabalhadores diretos”. Em 2009, foram “4 mortes de trabalhadores diretos contra 63 de terceirizados; em 2010, 7 mortes de trabalhadores diretos, contra 75 de trabalhadores terceirizados”.

Nesse quadro, discursos que desconstituem os trabalhadores, atribuindo-lhes a responsabilidade pelo trágico destino de sobreviver do trabalho em um país de poucos direitos e nenhuma garantia de emprego, e ainda pretender com isso justificar novas perdas, são inaceitáveis.

O que resta, das reflexões necessárias a partir da fala do Ministro Ives Gandra, é a certeza de que vivemos em um momento triste de nossa história. Estamos diante de uma realidade social que reclama urgentemente alterações radicais. Essas alterações, porém, são o exato contrário do que vinha sendo proposto na chamada “reforma” trabalhista. A perda de direitos sociais nunca auxiliou o desenvolvimento econômico ou implicou melhoria das condições de vida em sociedade. Ao contrário, a história nos mostra que os direitos sociais são limites importantes à barbárie. É preciso construir uma racionalidade que volte a se comprometer com a questão social, que previna acidentes, que torne a reparação pelo dano um péssimo negócio e, com isso, altere as estatísticas, tirando o Brasil do rol dos países em que os empregadores mais mutilam seres humanos nos ambientes de trabalho.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

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