sábado, 27 de maio de 2017

Por que a esquerda está perdendo espaço?

     Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil


Não tenho a pretensão de escrever este texto como uma solução apresentada a partir de um ponto de vista neutro e exterior ao problema. Escrevo como alguém que se coloca à esquerda e que vive inúmeros fracassos. Escrevo a partir dos meus fracassos e das minhas percepções dos debates que, sobretudo na internet, parecem estar levando ao novo establishment da direita (de discursos “de direita”, que incluem coisas tão diversas quanto o apartidarismo de Macron, o Brexit, a boa pontuação de Bolsonaro nas pesquisas para 2018, o punitivismo, entre outros).

Dividi o texto em tópicos, para facilitar a leitura, mas, certamente, os temas são todos interconectados. 

Economia
Desinteresse

O campo liberal é progressista, na medida em que pautas liberais e libertárias (na economia ou na política) ainda não foram alcançadas. Mas é um campo muito tradicional e conservador no que tange a discussão econômica. Os princípios estancados por Locke e Smith há muitos séculos mudaram pouco; a proteção à propriedade privada e o estímulo ao livre comércio são mantras que se adaptam aos novos tempos, mas mantêm sua força ideológica.

Talvez porque esses dois tópicos são centrais no pensamento liberal, qualquer liberal que se preze precisa entender um mínimo de economia. Um liberal pode discordar da tese furtadiana de que há uma inflação estrutural no Brasil, que tende à concentração de renda e atrapalha o desenvolvimento – mas, em média, um liberal é capaz de sustentar seu ponto de vista com teses econômicas simples.

Na esquerda, de modo amplo, há um desinteresse pela economia.

Os temas da “moda” sempre ocupam um espaço excessivo nas “pautas” de esquerda e quando ocorre o recorte com a economia, ele é baseado em um esquema econômico engessado. Marx ou Keynes são chamados (veja bem, não são chamados os princípios que tentaram cunhar em suas análises econômicas, mas seus cadáveres) para rechear discussões como micro agressões, representatividade, sororidade, entre outros tópicos relevantes, mas que apenas reforçam um desinteresse pela economia.

Desconhecimento

Além do desinteresse, há desconhecimento. Claro, economia é um campo árido, terreno difícil de se navegar. Mas foi preciso um jornalista do Estadão para descrever as principais divergências entre as duas correntes heterodoxas dominantes na esquerda brasileira.

O caos começou quando o governo Dilma traiu seu portfólio eleitoral e começou a realizar cortes fiscais. Havia apoio e divergência, mas pouco debate aprofundado – salvo entre os economistas, que, muitas vezes, têm dificuldade em traduzir sua linguagem para os reles mortais.

Continuou com as reformas trabalhistas e previdenciária e não chega perto de discutir questões “clássicas” levantadas por economistas brasileiros, como a sobrevalorização da moeda ou a já citada inflação estrutural.
Absoluto desconhecimento

Ok, há um grande desconhecimento sobre temas de economia na esquerda, mas esse desconhecimento ganha níveis críticos quando se trata de discutir o mercado financeiro e de capitais.

Isso impede que haja uma teoria econômica de esquerda chegando ao grande público (de esquerda), o qual desconhece o funcionamento da dívida pública, dos fundos de hedge e dos mecanismos de abertura de capital.

O monstro do capital rentista foge da lente de análise da esquerda, e fenômenos como a aquisição de parte significativa do banco XP pelo Itaú passam batidos como um simples fato qualquer no mercado. Voltamos rapidamente à programação normal, falando mal da Globo e, agora também, da Odebrecht, e enterramos J.P. Morgan e Merril Lynch sem um arranhão sequer.

Política
Debate moralista

Muitas vezes, pessoas de esquerda que defendem pautas específicas (sobretudo ligadas a questões de raça, sexualidade e gênero) entram para o debate como uma moralidade pré-definida, mas não necessariamente compartilhada.

E aí que está o problema: ao acreditar que “certas coisas são óbvias”, o debatedor já entra derrotado no ringue, sem fazer um pingo de esforço pelo convencimento do oponente, que ele crê já concordar com ele sobre o conteúdo ou o conceito do racismo, do machismo, das fobias sexuais, etc.

Algo semelhante ocorre com a guerra pelos “direitos humanos”. Defender direitos humanos dos presos, por exemplo, exige um difícil sacrifício para o humanista: se colocar no lugar da pessoa que quer ver o preso morto. Somente assim ela poderá acessar a rede do debate real, onde há chance de um acordo comum. Sem isso há apenas embate, não debate.

Nesse bolo, diversas pessoas também são cortadas do debate porque suas visões de mundo também são consideradas, por algum, como obviamente inaceitáveis no espaço público – é o que ocorre, em regra, com os religiosos.

O Não-Debate

Por medo de debater (e/ou para evitar microagressões sobre as quais todos concordam, obviamente), a esquerda se colocou em debates de facções internas, debates entre pessoa que concordam (e apenas estão ali para definir os últimos detalhes da revolução) e que atingem apenas o Olimpo do tema/da pauta X ou Y.

Ignorar os outros é uma forma de ser ignorado. E isso ocorre chamando-os de fascistas, bolsominions, coxinhas, ou de qualquer outro nome que os rotule como pessoas “indignas do debate”.

O papelão que a esquerda cinematográfica está passando, agora, é constrangedor. Como reação ao fato de que um filme com a participação de Olavo de Carvalho entrou no roteiro de um festival de cinema, vários diretores retiraram seus filmes do festival. Desde quando a esquerda tem medo de Olavo de Carvalho?

O Voto Útil

O partidarismo está em crise no mundo e, no Brasil, está em metástase-Lava-Jato. Apesar disso, a discussão do voto útil foi tratada ou como traição a princípios ou como obviedade (sempre ela, a obviedade óbvia demais que não vale a pena ser debatida).

Essa talvez seja a grande discussão das próximas eleições (como foi em 2014 no Brasil, como foi nos EUA recentemente e na França, de modo gritante). Discutir o voto útil é discutir a forma de organização política da esquerda. Talvez ela apenas se acabe com uma nova Revolução Francesa. E por que não?

Dois Pesos e Duas Medidas

Quando a delação de Joesley saiu e abalou o governo de Temer, muitos críticos ferrenhos da Lava Jato e das delações publicaram suas #DiretasJá.

Incoerências gritantes como essa não passam batidas pelos críticos da esquerda, e com razão. Se lutar contra a corrupção é um plano de esquerda, ele não pode valer para A e não valer para B (o que mostra a complexidade da discussão do voto útil).

*A incoerência está em bancar uma medida política (as eleições diretas) com base em “provas” tão criticáveis como as que afetaram o governos e governantes de esquerda.

Sociologia e Direito
Prisão e Punição

Difícil ser de esquerda em um mundo onde pessoas de esquerda querem resolver os problemas do mundo criando novos crimes, amentando penas e lotando prisões. Só isso.
A Mulher (e o Homem)

Ainda não sabemos o que é a Mulher. Isso não é necessariamente algo ruim. Mas não estamos discutindo muito o que é (ou o que resta do) Homem. Quem é o homem e, especialmente, qual espaço sobra para o vilão “homem-branco-cis-hétero-cristão”.

O maior problema aqui é a existência de muitos caminhos conflitantes: as saídas “científicas” (que procuram uma biogênese das diferenças sexual e de gênero, bem como de orientação sexual) e as saídas “sociológicas” (as “construções sociais”, as performances, etc.).

Uma gera um conforto maior, cria uma certeza universal e encerra o debate, a outra não. Com qual vamos ficar?
Recortes

É cada vez mais comum ouvirmos falar dos recortes “interseccionais” nos estudos sociológicos e jurídicos de esquerda.

Eles, porém, costumam se esquecer dos aspectos econômicos (não de assertivas econômicas generalistas, que podem ser verdadeiras, mas são pouco transformadoras, como, por exemplo, “a mulher ganha menos que o homem”; mas aspectos que ajudem a pautar a tese de que “é bom para a economia que a mulher ganhe o mesmo que o homem”).
Piadas

A aversão da esquerda ao humor ainda vai ser morta por um stand-up reacionário.

Filosofia
O Comunismo morreu

Adorno escreveu sua Dialética Negativa nos anos 50-60 do século passado para salvar (adivinhe quem…) a metafísica nos seus dias de decadência. Hoje, essas questões parecem ser exclusivamente filosóficas, distantes da política. Infelizmente, a esquerda tem se formado (no sentido de formação cultural) distanciada da filosofia.

Isso faz com que a dialética perca força (o que reflete grandemente na qualidade decadente do debate) e que o comunismo – essa palavra-monstro – viva seus dias de decadência sem ter direito a um fôlego.

2016 foi o ano em que um candidato autodeclarado socialista conseguiu abalar a imprensa estadunidense, e ainda assim, temos medo de falar sobre o comunismo, sobre a dialética, sobre o materialismo. Isso pode ser fatal para algum comunismo que ouse nascer no Século XXI.

Análises macro

Reza a lenda, Kojève teria dito que a revolução comunista na China era a entrada do Código Civil no Oriente.

A postura fria de Kojève segue um padrão de análise macro, reproduzido na França por Bataille e, depois, por Althusser. Além de ter acertado o futuro (o código civil romano é realidade no Oriente), Kojéve também teria dado um palpite sobre o processo: da revolução ao código civil estabelecido, a China penderia para o código civil, ou seja, para uma comunidade mercantil e não para o comunismo. Em grande medida, essa frase de Kojève era marxista, tecendo críticas ao próprio Marx.

Análises macro nos ajudam a pautar políticas de médio e longo prazo. Hoje, porém, são os pensadores pós-Kojève que dominam o cenário, com suas teorias marginais, reducionistas, avessas à sistematização (pensem nos três porquinhos pós-estruturalistas, Deleuze, Foucault e Derrida). O fato de aprendermos a fazer micropolítica não pode nos travar na análise política, porém.

E agora?

Essas 13 razões que apresentei são, como disse, falhas minhas. Não são todas as possíveis razões, nem todos as possíveis soluções, mas confissões. Meu intuito é melhorar a minha participação no debate público por uma comunidade mais igualitária e mais livre (ao mesmo tempo, sim). E é para esse debate que eu chamo o leitor.
Pedro da Conceição é Mestrando em Direito pela Universidade de São Paulo, advogado. Autor do livro “Mito e Razão no Direito Penal” (2012).

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