quarta-feira, 28 de junho de 2017

Denúncia vazia: com crença e convicção, mas sem provas nem razões, por Marcelo Neves

Denúncia vazia: com crença e convicção, mas sem provas nem razões
por Marcelo Neves
http://jornalggn.com.br/

No regime legal do inquilinato, a chamada denúncia vazia é aquela em que o locador tem o poder jurídico de pedir a retomada do bem imóvel sem qualquer razão ou justificativa.  Na locação residencial, dada a suposição da hipossuficiência do locatário, a legislação atual é restritiva, só a admitindo para contratos de locação por trinta meses ou mais, no fim de sua vigência.
A expressão do direito privado pode ser aplicada, com a devida contextualização, à denúncia do Ministério Público Federal contra o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, especialmente às alegações finais apresentadas em 2 de junho de 2017, mediante peça encabeçada pelo Procurador da República Deltan Martinazzo Dallagnol. As alegações finais revelam crença e convicção, mas carecem de provas e razões.

Dallagnol e seus colegas sustentam (p. 52):  
“Antes de se passar à análise das provas, para, a partir delas, concluir pela presença de juízo de convicção, suficiente para uma condenação criminal, da existência dos crimes e da sua autoria, é necessário, ainda que brevemente, abordar algumas premissas teóricas relevantes.”
Essas premissas teóricas são baseadas exclusivamente em uma monografia do próprio Dallagnol. Os procuradores recorrem ao “explanacionismo”, que enfatiza as inferências abdutivas no campo do realismo científico. A respeito, citam, sem referências bibliográficas, de Charles Sanders Peirce a Sherlock Holmes (pp. 58-59):
“O explanacionismo tem por base a lógica abdutiva, desenvolvida por Charles Sanders Peirce no início do século XIX [sic]. Para se ter ideia da força que assumiu a abdução, que foi denominada inferência para uma melhor explicação (“inference to the best explanation”) pelo filósofo [Gilbert] Harman, pode-se citar uma obra da década de 80 em que Umberto Eco, junto com outros renomados autores, examinaram exemplos do uso dessa lógica em inúmeras passagens de Sherlock Holmes.”
Tal uso de autores e obras importantes em um contexto em que não se aplicam revela antes um tipo de folhetim bacharelesco do que uma argumentação jurídica consistente. A inferência abdutiva defendida no realismo científico de Charles Sanders Peirce aplica-se ao campo das ciências em sentido estrito, nas quais a verdade ou a falsidade decorrente de uma inferência não prejudica diretamente nenhum ser humano. Tal inferência pode ser revista a qualquer momento, sem prejudicar uma pessoa humana. Isso porque a inferência abdutiva tem a seguinte estrutura na obra de Charles Peirce (Collected Papers, 5, Cambridge, MA, 1934-1935, p. 189):
“O fato surpreendente, C, é observado. Mas se A fosse verdade, C seria um fato natural. Logo, há razões para suspeitar que A seja verdade” (grifei).
Como se verifica, a inferência abdutiva é digna para amparar uma suspeição.  
No campo do normativo, especialmente no âmbito jurídico, seria absurda a admissão de provas simplesmente por inferências abdutivas. Enquanto na ciência propriamente dita (primariamente cognitiva) a argumentação permanece indefinidamente aberta sem prejuízo para nenhum dos envolvidos no discurso científico (pelo contrário), o direito (primariamente normativo) envolve um discurso que exige uma decisão que interrompe a cadeia argumentativa, para que se alcance um mínimo de segurança jurídica. Daí por que as provas no direito, particularmente no direito penal, são limitadas e exigem inferências indutivas inquestionáveis no momento da decisão condenatória, não sendo suficiente a suspeição. As inferências abdutivas de Sherlock Holmes a respeito de crimes servem ao romance ou à novela policial, dimensão da arte ou do entretenimento, mas não podem servir de padrão a um investigador, promotor ou juiz no Estado de direito.   
O grande risco de jovens estudantes brasileiros que, sem nenhuma base teórica sólida anterior, visitam centros acadêmicos dominantes no exterior, fazendo, por exemplo, um LLM em Harvard, um curso massificado para estrangeiros, é voltar ao Brasil sem nenhuma capacidade crítica em relação ao que ouviu dizer por lá. Tornam-se muitas vezes “papagaios”, sem capacidade reflexiva sobre os autores a quem se aproximaram em sua estada de estudo no exterior. Essa situação manifesta-se nos “pressupostos teóricos” das alegações finais do MPF a respeito da suposta aquisição de um apartamento tríplex pelo ex-Presidente Lula, da qual se infere abdutivamente crime de lavagem de capital e corrupção passiva.
A fragilidade dos pressupostos teóricos combina com a carência de prova capaz de motivar um convencimento judicial. Dallagnol e seus colegas recorrem à noção de prova indiciária”, relacionando-a à inferência abdutiva. Esse tipo de prova é superestimado pelos senhores procuradores, que recorrem até mesmo ao Supremo Tribunal Federal. Entretanto, não levam a sério a advertência do próprio STF, por eles citada (p. 58), de que “seu uso requer cautela e exige que o nexo com o fato a ser provado seja lógico e próximo” (HC 70.344). De acordo com a peça dos procuradores, bastam, sem qualquer cautela, os indícios, mas não o nexo lógico e próximo com o fato a ser provado.
Dallagnol e seus colegas reconhecem expressamente “a dificuldade probatória”, mas se concentram “em medir o ônus da acusação” (p. 53) na busca desesperada por indícios, escolhidos arbitrariamente, como se formassem verdadeira “prova indiciária”. A alegações finais referem-se frequentemente, de maneira genérica, com um quê de mantra, a um “caixa geral de propinas”, mas em nenhum momento esclarece-se do que se trata. E qual a relação do suposto “caixa” com uma ação ou omissão ou benefício do ex-Presidente Lula? Não há nenhuma prova de tal conexão.
Enfim, as “provas” invocadas nas alegações finais dos procuradores são decorrentes de “colaborações premiadas” de homens de empresa, as quais, segundo a lei, servem para a “obtenção de provas”, mas não constituem provas; de planilhas de custos das empresas referentes ao imóvel da praia de Guarujá e outros imóveis; e de conversas telefônicas ou e-mails em que homens de empresa discutem a reforma do apartamento de Guarujá, com a suposta intenção de servirem ao ex-Presidente e à sua falecida esposa. Não consta nenhuma ação ou omissão, nenhum benefício potencial ou atual do ex-Presidente em relação à obtenção do referido imóvel localizado em Guarujá. Não se prova, em nenhum momento, que o ex-Presidente tenha sido proprietário do mencionado apartamento.
As alegações finais de Dallagnol e seus colegas são um misto de fundamentalismo jurídico-religioso (muita crença e convicção em prejuízo das provas e razões), neoconstitucionalismo (princípios, conceitos e métodos vagos, facilmente manipuláveis, em detrimento de regras) e direito alternativo às avessas (postura punitiva contra legem, em detrimento dos direitos assegurados legalmente).                

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